ABC do CDC

Os defeitos do produtos e dos serviços - 5ª parte

A coluna aborda como o art. 12 do CDC impõe responsabilidade objetiva por acidentes de consumo, mas apresenta redundâncias e falhas ao definir defeito, uso esperado e impacto da tecnologia.

13/11/2025

Hoje continuo a análise dos defeitos que geram acidentes de consumo ou como diz o CDC (lei 8.078/1990), o fato do produto e do serviço.

Lembremos a redação do art. 12 do CDC:

“Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - sua apresentação;

II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III - a época em que foi colocado em circulação.

§ 2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado.

§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:

I - que não colocou o produto no mercado;

II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;

III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.”

A impropriedade do § 1º do art. 12 do CDC

O § 1º do art. 12 é dispensável, pois nada acrescenta ao conteúdo do caput, nem o excepciona. Isso porque apenas expressa o que já está dito. Está escrito: “o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera...”.

Ora, defeito dá origem, como já demonstrei, a acidente de consumo com dano ao patrimônio jurídico, moral e/ou material do consumidor. Não é óbvio que legitimamente sempre se espere que nenhum produto cause dano ao consumidor? Não existe produto que possa gerar alguma insegurança que cause dano sem ser defeituoso. Logo, não era necessário dizê-lo.

Contradição

E, pior que isso: ao contrário do que está dito, o produto pode ser defeituoso apesar de oferecer toda a segurança que legitimamente dele se espere. Aliás, esse é o elemento-chave e mais forte do defeito: a surpresa. O produto parece seguro, mas causa o dano. Esse é que é o problema. Bem o oposto do que diz a norma.

Aquele exemplo que eu dei do consumidor do caso do automóvel zero, que bateu o veículo em outro porque o freio não funcionou, por certo se sentiu muito seguro (feliz e confiável) quando recebeu o automóvel e saiu dirigindo da concessionária.

Uso e riscos razoáveis

A única parte realmente importante do § 1º é o inciso II, que registra como desqualificadores de defeito “o uso e os riscos que razoavelmente” o consumidor espera do produto.

Consigne-se desde já que essa redação deveria estar, também, e seria mais apropriada, no art. 18, já que o produto pode não ser considerado viciado, exatamente porque o problema estava dentro das legítimas expectativas razoáveis “de uso e riscos” pelo consumidor. Como não está lá, devemos fazer uma interpretação extensiva para considerar abarcada a hipótese também do vício.

Em cima dessas considerações lembre-se, então, que há produtos que naturalmente geram insegurança, tais como a faca, a tesoura, um remédio para dormir, um aquecedor elétrico etc., mas sua qualidade está exatamente ligada à essência da própria insegurança: faca que não corta tem vício; o mesmo se diga da tesoura, do remédio que não faz efeito (o que, dependendo do remédio, pode causar danos sérios), do aquecedor que não aquece etc.

Sem sentido

Quanto ao inciso I, é mera repetição do contido no caput. E o inciso III é ininteligível. Gerar acidente de consumo não depende da época em que o produto foi posto em circulação. Não há data que evite defeito. Não é a época que pode determinar se há defeito ou não. Talvez a norma quisesse tratar de garantia e prazos de garantia; se foi isso, fê-lo inadequadamente e de forma obscura. Mas nem precisaria, pois outros artigos cuidam disso1. A intenção do legislador parece ter sido a de salvaguardar as velhas tecnologias diante do avanço das novas. Mas escreveu mal. Assim, o inciso III está ligado ao § 2º, comentado na sequência.

O § 2º está deslocado

O § 2º do art. 12 está completamente deslocado da seção. Ele deveria estar no art. 18, uma vez que a hipótese aventada da colocação no mercado de outro produto “de melhor qualidade” em detrimento de produto de qualidade inferior pode apenas gerar vício, ou, em outros termos, a norma salvaguarda somente o vício eventual do produto antigo. Defeito, como dito, se existir, o será independentemente de ser o produto de pior ou melhor qualidade.

A lei somente poderia, como pode, excetuar problema por avanço tecnológico em caso de vício, não de defeito. Repita-se, com ou sem outro produto de melhor qualidade no mercado, havendo acidente de consumo - e, logo, defeito -, haverá responsabilidade em indenizar.

A norma pretende estabelecer certas garantias ao produtor, dizendo que o fato de certo produto similar de melhor qualidade ter sido colocado no mercado não transforma o seu em viciado por inadequação. Por exemplo, um novo ferro elétrico que passa melhor não transforma o mais antigo em viciado, embora este continue passando pior, comparativamente. Da mesma forma, um automóvel que economize mais combustível, diante do antigo que era gastão; ou a TV de melhor imagem contra a de imagem menos nítida.

Mas, em qualquer caso, se um automóvel que gaste mais ou que gaste menos se incendiar, há sempre defeito. E, ironicamente, há certos avanços tecnológicos que geram mais problemas ao consumidor. Por exemplo, se o motor de um automóvel é acionado por câmbio manual - no sistema de troca de marchas - e o motor não quer pegar, o consumidor sabe que empurrando o veículo e engatando uma marcha - de preferência a segunda - consegue fazer o motor ser acionado. Num carro com câmbio automático - supostamente mais moderno -, se o motor não pegar, não dá para utilizar o recurso do empurrão. O mesmo acontece com várias trocas de sistemas mecânicos por eletrônicos: um vidro elétrico de automóvel que não sobe ou não desce não consegue ser acionado pelo velho sistema de forçar com a mão o vidro enquanto se aciona a manivela.

A velha máquina de escrever é realmente muito ruim para a produção de textos. Mas, quando pifa, não faz com que o usuário perca de uma vez tudo o que escreveu2.

Deve-se, portanto, consertar o equívoco do legislador, preservando sua intenção de salvaguardar os produtos menos avançados tecnologicamente. A salvaguarda vale, mas para vício, não para defeito.

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Continua na próxima semana.

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1 Arts. 26, 27, 50.  E, de certa forma, também, o art. 49.

2 Aliás, diga-se que os sistemas eletrônicos são ótimos. Mas suas falhas são mais difíceis de serem detectadas e podem causar sérios danos.

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.