Quando a Mossad israelense apanhou Adolf Eichmann na Argentina e o levou para ser julgado em Jerusalém pelos tantos crimes que cometeu no Holocausto, o sentimento dos líderes políticos de Israel (David Ben-Gurion à frente) era um só: é preciso punir com rigor aquela horda de nazistas para que aquilo nunca mais se repita.
Há “coisas” que simplesmente não podem ser negociadas. As nações, assim como as famílias e as pessoas, têm traumas, fantasmas que, se não tratados, comprometem o seu próprio desenvolvimento. Segregações raciais institucionalizadas (as leis Jim Crow nos Estados Unidos), assassinatos em escala industrial (a Shoah), genocídios (como o de Ruanda)... são algumas dessas “coisas”. Golpes de Estado também.
Mas se por um lado há dores nacionais agudas demais para serem desprezadas, por outro é preciso ter a consciência de que não se constrói uma nação pela vingança. Como equilibrar essa complexa balança que é tão histórica quanto humana?
Uma forma tem sido criar aparatos institucionais legalmente previstos capazes de promover encontros francos entre perpetradores e vítimas numa tentativa formal de reconciliação por meio das chamadas Comissões da Verdade, que envolvem tanto o reconhecimento de culpa como o necessário perdão (normalmente por meio de anistias).
Eleger datas especiais para serem lembradas (o Dia da Reconciliação, na África do Sul), permitir que as escolas tratem dos grandes traumas coletivos com transparência (como acontece na Alemanha) ou promover uma cultura profunda de perdão (como faz Ruanda) são iniciativas que se somam a outras formas adotadas pelos países, com maior ou menor êxito, em suas longas (às vezes intermináveis) jornadas reconciliatórias.
Acontece que não raramente os povos simplesmente deixam de lado tanta sofisticação metodológica e, em seu lugar, põem uma combinação por todos conhecida: um Tribunal, a lei e os juízes. Ocorreu na Argentina, no “Julgamento das Juntas” (1985).
Parece ser o caso do Brasil hoje. Vale, contudo, recordar antes o passado que percorremos e sem o qual não estaríamos atualmente no atoleiro que estamos.
Éramos uma exuberante democracia sul-americana que, numa demonstração rara de maturidade institucional, assistiu, em 1961, dois oponentes viscerais se colocarem um ao lado do outro acenando ao povo no Palácio do Planalto numa respeitável troca de faixa presidencial (Juscelino Kubitschek empossando o adversário Jânio Quadros).
De repente, sob uma abominável influência externa dos Estados Unidos (documentada pelos papéis desclassificados do Departamento de Estado sobre o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon), a nossa democracia nos é roubada por um grupo de militares golpistas que há tempos imaginavam uma forma de ascender ao poder, mesmo que lhes faltasse essa matéria prima tão singela chamada voto.
O que fizemos nós? Punimos esses democraticidas? Não, nós os perdoamos, como se desmantelar uma democracia fosse algo assim, para se sentar à mesa e deixar para lá.
A mentira de Castello Branco (que prometeu assumir apenas para convocar eleições e entregar o poder em 1966, como determinava a Constituição de 1946) fez com que por 21 anos ficássemos sem democracia. É pouca coisa? Não é. Foi erro nosso ter concebido um tipo de perdão irrefletido e pouco criterioso como se deu com a lei 6.683/79 (validada pelo STF no julgamento da ADPF 153). Mas assim foi.
Em 15/10/1988, a primavera saiu depois daquele inverno tão sombrio. Com a nova CF/88 (a sétima) e o retorno das eleições gerais, temos, depois de Collor/Itamar (1990/1994), dois mandatos de um governo de centro direita (Fernando Henrique Cardoso - 1995/2003), outros dois de centro esquerda (Luís Inácio Lula da Silva - 2003/2011) e mais dois de esquerda (Dilma Rousseff - 2011/2016, interrompido pelo impeachment). Vêm em seguida dois militares reformados legitimamente eleitos como representantes da direita: Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão.
Centro direita, centro esquerda, esquerda, direita..., a nossa democracia é tão plural que deu a todos a sua chance, múltiplos espectros políticos viram chegar a sua vez no poder, abençoados pelas águas sagradas das urnas (eletrônicas, diga-se de passagem).
Por qual razão, então, o ex-presidente Jair Bolsonaro colocou na cabeça que, se perdesse a eleição em 2022, decretaria um Estado de Sítio? Sim, Sua Excelência admitiu expressamente a sandice em depoimento ao STF. A confissão foi um eufemismo, pois tudo o que se apurou até o momento mostra que não, não era apenas isso (como se decretar um Estado de Sítio por perder uma campanha já não fosse um total disparate).
As nações têm seus fantasmas e o golpismo é o grande drama brasileiro, principalmente quando urdido (mais uma vez) por militares (reformados ou não). E se na África do Sul um presidente anunciasse a volta do apartheid? E se a Alemanha acordasse com um chanceler desenhando planos de um novo Holocausto? E se em Ruanda um presidente iniciasse uma transmissão de rádio pregando a morte dos Tútsis? E se um presidente dos Estados Unidos remetesse ao Congresso um projeto de lei retomando a segregação racial? São ideias mortas, e, como sabemos, com os mortos não se brinca.
Mas Bolsonaro brincou. Um país que se preze precisa ter meios de se defender desse tipo de provocação mórbida. O nosso, curiosamente, optou por uma fórmula de defesa que não é nova. Chama-se “julgamento”. Espanta o fato de algumas pessoas pensarem que se trata de uma invenção nossa. Não é. Data da Antiguidade.
Esse tão esperado momento tem data: 2, 3, 9, 10 e 12 de setembro. São os dias definidos para o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e dos demais réus do “Núcleo Crucial” na ação que apura a tentativa de golpe de Estado.
Sim, eles serão julgados. O Poder Judiciário não se senta à mesa com golpistas para promover trocas de interesses, não faz a eles favores com o chapéu alheio da democracia, não troca salamaleques institucionais, não entrega lisonja a quem desonrou nossas conquistas materializadas no rol dos direitos fundamentais.
Golpistas, em nossa história, são assassinos da democracia, inimigos do Estado Constitucional, “traidores da pátria” (como disse Ulysses Guimarães). Não há meio termo quanto ao modo de tratá-los, não há mesa de conciliação, apelo ao legislador, acenos, gestos ou tergiversações. Serão julgados por um Tribunal e, se culpados, punidos.
Com os inimigos da democracia Wiston Churchill não negociou (Acordo de Munique - 1938), o Marechal Teixeira Lott não negociou (“Novembrada” - 1955) e o ministro Alexandre de Moraes faz bem em não negociar. Quem vive de “costuras” são os alfaiates. Um país que passou pelo que passamos precisa é de juízes, dos bons.
Antes, em 1971, o ministro Adauto Lúcio Cardoso, já sem forças para frear as ações da Ditadura, arremessou a toga sobre a bancada e partiu do Supremo Tribunal para nunca mais voltar. O ministro Alexandre de Moraes e seus colegas da atual composição resolveram ficar. Reescrevem a história do Brasil ao fazê-lo. Dessa vez não teve golpe, tampouco anistia. Haverá justiça, ainda que imperfeita, pois emanada de seres humanos.
Ao barrar o golpe e julgar seus perpetradores (os mais ilustres e os menos ilustres), o STF agirá não apenas por si ou pela CF/88. Fará por Victor Nunes Leal, por Hermes Lima e por Evandro Lins e Silva, figuras públicas da maior dignidade que não resistiram às forças hostis do golpismo militar. Fará também por Gonçalves de Oliveira e por Lafayette de Andrada, que igualmente tombaram diante da onipresença dessa sombra golpista que tão mal tem feito ao nosso país.
O passado perdoou. Não adiantou. Agora, no lugar do perdão entrará um Tribunal, a lei e os seus juízes. Verificada a culpa e punidos os responsáveis, resta à democracia brasileira honrar a Palavra: “Vigiai e orai” (Mateus, 26:41). Essa gente (“vivandeiras”, na dicção do próprio Castello Branco) costuma voltar.