CPC na prática

Negócios processuais e dez anos de CPC/15

A coluna analisa o avanço dos negócios processuais no CPC/15 e seu uso crescente no Judiciário, destacando limites, aplicações práticas e validações recentes.

13/6/2025

O CPC/15 prevê o instituto dos negócios processuais, valendo destacar o art. 190: “Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo”.

Antonio do Passo Cabral1 define o negócio processual da seguinte forma:

“Convenção ou acordo processual é o negócio jurídico plurilateral, pelo qual as partes, antes ou durante o processo e sem a necessidade de intermediação de nenhum outro sujeito, determinam a criação, modificação e extinção de situações jurídicas processuais, ou alteram o procedimento”.

Em essência, o art. 190 do CPC/15 prevê que as partes podem convencionar sobre aspectos procedimentais, estabelecendo mudanças no rito processual.

A portaria 33/18 da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional incentiva o uso do negócio processual atípico nas execuções fiscais. Merece aplausos o art. 38 da portaria 33/18 da PGFN que autoriza expressamente a Fazenda Pública a celebrar negócios processuais, com vistas a promover o recebimento do crédito.

As portarias 360 e 742, ambas da PGFN, prestigiam claramente o manejo do art. 190 do CPC/15 para fins de obtenção de uma maior efetividade no trâmite das execuções fiscais.

Na lei 13.874/19, reforça-se ainda mais a ideia do uso do art. 190 do CPC/15 pelo Poder Público: “Art. 19. § 12.  Os órgãos do Poder Judiciário e as unidades da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderão, de comum acordo, realizar mutirões para análise do enquadramento de processos ou de recursos nas hipóteses previstas neste artigo e celebrar negócios processuais com fundamento no disposto no art. 190 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (CPC)”.

Não é demais lembrar que a resolução 118/14 do Conselho Nacional do Ministério Público também já estimulava as convenções processuais: “Art. 15. As convenções processuais são recomendadas toda vez que o procedimento deva ser adaptado ou flexibilizado para permitir a adequada e efetiva tutela jurisdicional aos interesses materiais subjacentes, bem assim para resguardar âmbito de proteção dos direitos fundamentais processuais. Art. 16. Segundo a lei processual, poderá o membro do Ministério Público, em qualquer fase da investigação ou durante o processo, celebrar acordos visando constituir, modificar ou extinguir situações jurídicas processuais. Art. 17. As convenções processuais devem ser celebradas de maneira dialogal e colaborativa, com o objetivo de restaurar o convívio social e a efetiva pacificação dos relacionamentos por intermédio da harmonização entre os envolvidos, podendo ser documentadas como cláusulas de termo de ajustamento de conduta”.

Ademais, há situações em que o próprio CPC/15 estipula o escopo do negócio processual. Trata-se dos negócios processuais típicos. São as situações, por exemplo, do art. 63 do CPC/15, para fins de escolha de foro nas hipóteses de competência relativa, do art. 471 do CPC/15, para fins de escolha consensual de perito, e do art. 373, parágrafo terceiro, do CPC/15, para fins de distribuição dinâmica e consensual do ônus da prova.

O STJ já enfrentou o tema dos limites das convenções processuais, bem como a questão do controle judicial dos negócios processuais atípicos, no julgamento do RE 1738656/RJ, tendo sido relatora a ministra Nancy Andrighi. Naquele julgamento, restou-se consolidado o entendimento de que os negócios processuais entabulados pelas partes podem ser prestigiados, mas que: “a interpretação acerca do objeto e da abrangência do negócio deve ser restritiva, de modo a não subtrair do Poder Judiciário o exame de questões relacionadas ao direito material ou processual que obviamente  desbordem  do  objeto convencionado entre os litigantes, sob pena de ferir de morte o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal e do art. 3º, caput, do novo CPC.”

O STJ, por sua vez, em importantíssimo julgado, no REsp 1810444 / SP, tendo como relator o ministro Luis Felipe Salomão, já delimitou que a negociação processual não pode versar sobre poderes do magistrado e sobre questões que podem afetar o devido processo legal.

No julgamento do REsp 1361869 / SP, por sua vez, com a relatoria do ministro Raul Araújo, a segunda seção do STJ prestigiou a negociação processual, nos seguintes termos: “1. Pedido de Homologação de Acordo firmado entre KIRTON BANK S.A. (nova denominação de HSBC BANK BRASIL S.A - BANCO MÚLTIPLO - sucessor parcial do BANCO BAMERINDUS S.A) e BANCO SISTEMA S.A. (nova denominação da massa liquidanda do BANCO BAMERINDUS S.A.). 2. Conquanto o presente negócio jurídico processual se apresente perante os peticionantes como, efetivamente, um acordo, em sua projeção para os interessados qualificados, em especial para o Estado-Juiz, o instrumento descortina-se como "Pacto de Não Judicialização dos Conflitos", negócio processual que, após homologado sob o rito dos recursos repetitivos, é apto a gerar norma jurídica de eficácia parcialmente erga omnes e vinculante (CPC, art. 927, III). 3. Homologa-se o acordo entabulado entre KIRTON BANK S.A. (nova denominação de HSBC BANK BRASIL S.A - BANCO MÚLTIPLO - sucessor parcial do BANCO BAMERINDUS S.A) e BANCO SISTEMA S.A. (nova denominação da massa liquidanda do BANCO BAMERINDUS S.A.), como "Pacto de Não Judicialização dos Conflitos", com: a) desistência de todos os recursos acerca da legitimidade passiva para responderem pelos encargos advindos de expurgos inflacionários relativos à cadernetas de poupança mantidas perante o extinto Banco Bamerindus S/A, em decorrência de sucessão empresarial parcial havida entre as instituições financeiras referidas; b) os compromissos assumidos pelos pactuantes de: b.1) não mais litigarem recorrerem ou questionarem em juízo, perante terceiros, especialmente consumidores, suas legitimidades passivas, passando tal discussão a ser restrita às próprias instituições financeiras pactuárias, sem afetar os consumidores; b.2) encerrarem a controvérsia jurídica da presente macrolide, com parcial desistência dos recursos; b.3) conferir-se ao Pacto ora homologado, nos moldes do regime dos recursos repetitivos, eficácia erga omnes e efeito vinculante vertical”.

É certo, portanto, que os recentes julgados, no geral, prestigiaram a aplicação do art. 190 do CPC/15, e buscaram traçar uma leitura do instituto em conformidade com as normas fundamentais do CPC/15.

O STJ, também no que se refere à negociação processual do art. 471 do CPC/15, recentemente se manifestou no julgamento do REsp 1924452 / SP, tendo sido relator o ministro Ricardo Cueva, no sentido de que: “As partes podem, de comum acordo, escolher o perito, mediante requerimento dirigido ao magistrado, desde que sejam plenamente capazes e a causa admitir autocomposição”.

Logo, muito ao contrário do que parcela da doutrina imaginava quando dos debates acadêmicos acerca da utilidade do negócio processual, é certo que o Poder Judiciário já vem sendo instado a se posicionar sobre os requisitos de validade de tal instituto; sendo inegável que existem julgados que demonstram a inclinação do Poder Judiciário de prestigiar o manejo pelas partes dos negócios processuais.

O recente relatório de pesquisa “Convenções Processuais nos Tribunais”2, da UERJ, com a coordenação do Professor Antonio do Passo Cabral, comprova essa percepção.

A pesquisa bem concluiu que3: “Foram encontradas, entre 2016 e 2024, um total de 1653 decisões judiciais de tribunais sobre as convenções processuais”; “quase metade dos acordos processuais discutidos nos tribunais brasileiros diz respeito a convenções probatórias (47,8%). Em seguida, vêm os acordos sobre a suspensão do processo (9,8%), a execução e o cumprimento de sentença (9,1%), sobre os prazos (7%), as audiências (6,4%) e a competência (4,7%)”; “São Paulo, o Estado mais rico e populoso do país, lidera as estatísticas, sendo aquele onde mais o Judiciário debateu os negócios jurídicos processuais, seguido pelo Paraná. Em ambos os Estados, destacaram-se tanto o Tribunal de Justiça quanto o Tribunal Regional do Trabalho”; e “No mesmo sentido, as decisões dos tribunais sobre acordos processuais concentram-se na região Sudeste, que responde por 59% do total, seguida das regiões Sul, CentroOeste, Nordeste e Norte”; e “Em 77% dos casos, o Judiciário validou as convenções, prestigiando as regras negociadas e determinando sua aplicação tal como pactuado pelas partes”; e “A Justiça do Trabalho foi aquela que teve o menor percentual de invalidação, tendo admitido os acordos em 88,7% dos casos e anulado as convenções em apenas 11,3% deles”; e “A Justiça Estadual (74,5%) e a Justiça Federal (68,4%) também apresentaram altos índices de validação dos acordos”; e “A média de validação dos acordos entre todos os tribunais brasileiros foi de 77,6%. Alguns tribunais apresentaram índices bem altos, entre 90 e 100% de admissão e validação. Por exemplo, o TJ/SC teve 96%, o TJ/RJ 90%, o TJ/PE e o TJ/ES registraram 88%”.

As sinalizações do próprio Poder Judiciário quanto ao instituto em muito podem auxiliar as partes na elaboração de convenções processuais, norteando de forma mais aderente a cada caso concreto a forma de solução de disputas.

É fundamental, todavia, observar-se os requisitos e limites previstos na legislação para a celebração dos negócios processuais, bem como analisar-se as diretrizes já adotadas pelos tribunais pátrios acerca da validade desses acordos realizados entre as partes.

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1 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Jus Podium, 2016. p. 68.

2 3 Disponível aqui.

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Colunistas

André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto Pós-doutorados em Direito Processual Civil nas Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa (2015), da Universidade de Coimbra/IGC (2019) e da Universidade de Salamanca (2022). Visiting Scholar no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil, com Pós Doutorado pela Unimar (2023/2024). Pós Doutorado em Direito Processual Civil na Universitá degli Studi di Messina (2024/2026). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial (2012) e Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). MBA em Agronegócio pela USP (2025). MBA em Energia pela PUC/PR (2025). MBA em Economia pela USP (2026). Pós Graduação Executiva em Negociação (2013) e em Mediação (2015) na Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em diversos cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (ex.: EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, USP-AASP e CEU-Law). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Chambers, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2025), tendo sido Vice Presidente nas gestões 2019/2024. Presidente da Comissão de Processo Empresarial do IASP (desde 2025). Presidente da Comissão de Processo Civil da OABSP-Pinheiros (desde 2013). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor de 2013 a 2023. Conselheiro da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb, Camagro e da Amcham. Membro do IBDP e do CBar. Membro honorário da ABEP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do CFOAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021), Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021) e Presidente da Comissão de Direito de Energia do IASP (2013/2024).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).