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A luta geopolítica oculta pela predominância da narrativa

O texto aborda uma mudança significativa nas políticas de moderação de uma grande plataforma digital, que decidiu substituir a moderação centralizada por um sistema de "notas da comunidade".

10/1/2025

A recente decisão de uma das maiores plataformas digitais do mundo de substituir a moderação centralizada por um sistema de "notas da comunidade" revela uma complexa disputa global. Essa mudança, inicialmente apresentada como uma solução democrática, levanta questionamentos profundos sobre o papel das grandes corporações no controle da informação e na definição das narrativas que moldam o mundo contemporâneo. 

O cenário atual: Tecnologia e geopolítica 

O anúncio do novo modelo ocorre em um contexto de intensas disputas geopolíticas, onde a tecnologia tem papel central. Em declarações recentes, a liderança da plataforma ressaltou uma visão que rejeita a regulação estatal, apontando supostos "tribunais secretos" na América Latina e uma "censura institucionalizada" na Europa. Esse discurso se alinha a uma agenda mais ampla que privilegia a desregulamentação como resposta às demandas de liberdade de expressão, muitas vezes interpretadas como um escudo para a ausência de responsabilidade. 

Nos Estados Unidos, a plataforma encontrou um novo aliado político, enquanto a Europa reforça legislações que buscam limitar os danos de conteúdos desinformativos e discursos de ódio. Essa polarização reflete não apenas diferenças regionais, mas um verdadeiro embate ideológico e comercial, onde as big techs tornam-se peças-chave em disputas estratégicas. 

O Brasil no epicentro do debate 

No Brasil, a mudança nas políticas de moderação reacendeu debates já intensificados pelo julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet no Supremo Tribunal Federal (STF). Esse dispositivo, que exime plataformas da responsabilidade pelo conteúdo de terceiros, está sob revisão, com votos que variam entre posturas rígidas e conciliatórias. 

A presença massiva da plataforma no Brasil – com mais de 100 milhões de usuários e um papel central no comércio digital – dificulta a possibilidade de ações contundentes, como a suspensão temporária, já aplicada em outros casos. A relevância econômica da plataforma coloca o STF diante de um dilema: equilibrar a preservação da liberdade de expressão com a proteção contra conteúdos prejudiciais, sem comprometer a economia digital. 

Notas da comunidade: Democracia ou anarquia informacional? 

A substituição da moderação por "notas da comunidade" representa um movimento arriscado. Embora promova maior envolvimento dos usuários, o modelo carrega o potencial de amplificar conflitos, enviesamentos e desinformação, especialmente em períodos sensíveis, como eleições. Experiências similares em outras redes sociais mostraram que sistemas descentralizados podem se transformar em verdadeiras arenas de polarização, com esclarecimentos que carecem de rigor técnico e são fortemente influenciados por agendas ideológicas. 

Essa abordagem levanta ainda questões jurídicas sobre a responsabilização por danos causados por notas enganosas ou prejudiciais. A introdução gradual do modelo, prevista para os próximos anos, coloca o Brasil em uma posição crítica, considerando o impacto que essas políticas podem ter em um cenário eleitoral próximo. 

A nova "vibe" global: Desregulação e poder econômico 

A convergência de interesses entre lideranças empresariais e políticas nos Estados Unidos ilustra a "vibe" da época, como apontam analistas. Grandes empresários do setor tecnológico, ao rejeitarem regulações tradicionais, promovem uma visão que mistura liberdade de expressão com ausência de controle, muitas vezes ignorando os riscos de anomia. Esse movimento, que remete ao conceito de "Zeitgeist" (espírito do tempo), agora adaptado ao mundo digital, reflete as tensões de um mundo em transformação. 

Essa aliança estratégica entre empresas e governos representa não apenas uma ameaça à regulação estatal, mas também um desafio ao equilíbrio democrático. Enquanto plataformas como a Meta consolidam seu poder econômico e informacional, governos e instituições enfrentam dificuldades para impor limites, especialmente em países onde a dependência dessas redes é significativa. 

Conclusão: A guerra informacional e o futuro da sociedade digital 

O cenário que emerge é de uma verdadeira guerra informacional, onde grandes corporações buscam moldar as narrativas globais, muitas vezes em aliança com interesses políticos específicos. A desregulação, apresentada como um ideal de liberdade, esconde os riscos de uma concentração de poder que ultrapassa fronteiras e coloca em xeque os princípios fundamentais da democracia. 

A luta pela predominância da narrativa não é apenas uma questão técnica ou jurídica, mas um reflexo de disputas geopolíticas profundas. O futuro da sociedade digital dependerá de como essas tensões serão resolvidas, equilibrando inovação tecnológica, responsabilidade corporativa e a proteção dos direitos fundamentais. Neste embate, as plataformas digitais não são apenas arenas, mas também jogadores com interesses próprios, moldando o destino das sociedades conectadas. 

Acordos estratégicos e a transformação do debate sobre liberdade de expressão 

A evolução recente das políticas de moderação em grandes plataformas digitais reflete um cenário de intensas negociações estratégicas e reposicionamentos geopolíticos. Em um ambiente onde as alianças moldam decisões corporativas e influenciam narrativas globais, observa-se uma transição do discurso tradicional de regulação para um modelo mais permissivo, centrado na desregulamentação. 

Por trás dessas movimentações, há um claro alinhamento com discursos que priorizam a desregulação como forma de proteger a liberdade de expressão. Contudo, esse posicionamento muitas vezes oculta os riscos de anomia informacional, onde a ausência de regras favorece a propagação de discursos prejudiciais, como preconceitos e desinformação. 

Fecho 

A história nos ensina que todo poder que não encontra limites tende à tirania, seja ele político, econômico ou tecnológico. Na era digital, a convergência entre o poder das grandes corporações e a influência política redefine as fronteiras da soberania, colocando em risco os fundamentos da democracia. O desafio contemporâneo é resgatar o equilíbrio entre liberdade e responsabilidade, para que a tecnologia sirva à humanidade, e não se torne sua nova forma de submissão. Em tempos de desregulação e conflitos narrativos, a verdadeira sabedoria reside em não confundir ausência de lei com liberdade, pois é no ordenamento justo que se encontra a verdadeira emancipação.

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Colunistas

Coriolano Aurélio de Almeida Camargo Santos é advogado e Presidente da Digital Law Academy. Ph.D., ocupa o cargo de Conselheiro Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OAB/SP), com mandatos entre 2013-2018 e 2022-2024. É membro da Comissão Nacional de Inteligência Artificial do Conselho Federal da OAB. Foi convidado pela Mesa do Congresso Nacional para criar e coordenar a comissão de Juristas que promoveu a audiência pública sobre a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, realizada em 24 de maio de 2019. Possui destacada carreira acadêmica, tendo atuado como professor convidado da Università Sapienza (Roma), IPBEJA (Portugal), Granada, Navarra e Universidade Complutense de Madrid (Espanha). Foi convidado pelo Supremo Tribunal Federal em duas ocasiões para discutir temas ligados ao Direito e à Tecnologia. Também atua como professor e coordenador do programa de Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) da Escola Superior de Advocacia Nacional do Conselho Federal é o órgão máximo na estrutura da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB). Foi fundador e presidente da Comissão de Direito Digital e Compliance da OAB/SP (2005-2018). Atuou como Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (2005-2021) e fundou a Comissão do Contencioso Administrativo Tributário da OAB/SP em 2014. Na área de arbitragem, é membro da Câmara Empresarial de Arbitragem da FECOMERCIO, OAB/SP e da Câmara Arbitral Internacional de Paris. Foi membro do Conselho Jurídico da FIESP (2011-2020) e diretor do Departamento Jurídico da mesma entidade (2015-2022). Atualmente desempenha o papel de Diretor Jurídico do DEJUR do CIESP. Foi coordenador do Grupo de Estudos de Direito Digital da FIESP (2015/2020). Foi convidado e atuou como pesquisador junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2010, para tratar da segurança física e digital de processos findos. Além disso, ocupou o cargo de Diretor Titular do Centro do Comércio da FECOMERCIO (2011-2017) e foi conselheiro do Conselho de Tecnologia da Informação e Comunicação da FECOMERCIO (2006-2010). Desde 2007, é membro do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP. Atua como professor de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie desde 2007, nos cursos de Direito e Tecnologia, tendo lecionado no curso de Direito Digital da Fundação Getúlio Vargas, IMPACTA Tecnologia e no MBA em Direito Eletrônico da EPD. Ainda coordenou e fundou o Programa de Pós-Graduação em Direito Digital e Compliance do Ibmec/Damásio. É Mestre em Direito na Sociedade da Informação pela FMU (2007) e Doutor em Direito pela FADISP (2014). Lecionou na Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região, Academia Nacional de Polícia Federal, Governo do Estado de São Paulo e Congresso Nacional, em eventos em parceria com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, INTERPOL e Conselho da Europa. Como parte de sua atuação internacional, é membro da International High Technology Crime Investigation Association (HTCIA) e integrou o Conselho Científico de Conferências de âmbito mundial (ICCyber), com o apoio e suporte da Diretoria Técnico-Científica do Departamento de Polícia Federal, Federal Bureau of Investigation (FBI/USA), Australian Federal Police (AFP) e Guarda Civil da Espanha. Além disso, foi professor convidado em instituições e empresas de grande porte, como Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER), Banco Santander e Microsoft, bem como palestrou em eventos como Fenalaw/FGV.GRC-Meeting, entre outros. Foi professor colaborador da AMCHAM e SUCESU. Em sua atuação junto ao Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), apresentou uma coletânea de pareceres colaborativos à ação governamental, alcançando resultados significativos com a publicação de Convênios e Atos COTEPE voltados para a segurança e integração nacional do sistema tributário e tecnológico. Também é autor do primeiro Internet-Book da OAB/SP, que aborda temas de tributação, direito eletrônico e sociedade da informação, e é colunista em Direito Digital, Inovação e Proteção de Dados do Portal Migalhas, entre outros. Em sua atuação prática, destaca-se nas áreas do Direito Digital, Inovação, Proteção de Dados, Tributário e Empresarial, com experiência jurídica desde 1988.

Leila Chevtchuk, eleita por aclamação pelos ministros do TST integrou o Conselho Consultivo da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho – ENAMAT. Em 2019 realizou visita técnico científica a INTERPOL em Lyon na França e EUROPOL em 2020 em Haia na Holanda. Desembargadora, desde 2010, foi Diretora da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região. Pela USP é especialista em transtornos mentais relacionados ao trabalho e em psicologia da saúde ocupacional. Formada em Direito pela USP. Pós-graduada pela Universidade de Lisboa, na área de Direito do Trabalho. Mestre em Relações do Trabalho pela PUC e doutorado na Universidade Autôno de Lisboa.