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O silêncio do algoritmo e a palavra do Direito: Reflexões sobre o voto do desembargador César Zalaf, do TJ/SP, no caso Telegram

A coluna aborda como o voto do desembargador Zalaf reforça que decisões digitais devem respeitar direitos do usuário, transparência e proporcionalidade, garantindo proteção ao patrimônio virtual.

10/10/2025

O recente voto proferido pelo desembargador César Eduardo Temer Zalaf, da 14ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, reacende o debate sobre os limites do poder das plataformas digitais e o alcance dos direitos fundamentais no ambiente virtual.

A decisão, que analisou o recurso interposto pelo Telegram Messenger Inc., trouxe à tona um tema cada vez mais relevante: a necessidade de controle jurídico sobre decisões automatizadas de banimento e exclusão de perfis de usuários.

O caso e a controvérsia

O processo teve origem em uma ação ajuizada por um usuário do Telegram que, de forma inesperada, teve sua conta bloqueada sob a alegação genérica de “atividade atípica” ou envio de “spam”.

A exclusão foi automática e sem qualquer explicação concreta. O usuário não recebeu aviso prévio, nem teve oportunidade de contestar a medida.

Diante da falta de resposta da plataforma, buscou o Judiciário para reaver o acesso ao seu perfil - onde mantinha registros pessoais, profissionais e familiares acumulados ao longo dos anos.

O juízo de primeiro grau reconheceu o caráter abusivo do bloqueio, determinou a reativação da conta em 48 horas, sob pena de multa diária, e condenou a empresa ao pagamento de custas e honorários advocatícios.

Inconformada, a ré interpôs apelação, sustentando inexistência de relação de consumoincompetência da jurisdição brasileira e regular exercício do direito contratual.

Foi nesse contexto que o desembargador César Zalaf, ao relatar o caso, apresentou voto que merece atenção especial não apenas pelo desfecho, mas pela profundidade da análise e pelo equilíbrio entre técnica e prudência.

A competência da jurisdição brasileira

Logo de início, o voto afastou a alegação de incompetência internacional, afirmando que os efeitos do serviço prestado se produzem no território nacional, o que atrai a aplicação da legislação brasileira.

Nos termos do art. 22 do CPC, compete à Justiça brasileira processar e julgar ações quando o fato ou seus efeitos ocorrem no Brasil, ainda que o réu tenha sede no exterior.

O desembargador observou também que, sendo a relação de consumo evidente, aplica-se o art. 101, inciso I, do CDC, que estabelece o domicílio do consumidor como foro competente.

A decisão reafirma a soberania jurídica brasileira sobre atividades econômicas e comunicacionais que impactam cidadãos no país, independentemente da localização geográfica dos servidores ou da matriz da empresa.

A relação de consumo e o dever de informação

Outro ponto importante do voto foi o reconhecimento de que a prestação de serviços digitais, ainda que gratuita, configura relação de consumo. Segundo o relator, as plataformas auferem benefício econômico indireto pela coleta de dados, pelo tráfego de informações e pela exibição de publicidade direcionada. Logo, incidem as normas protetivas do CDC, inclusive quanto ao dever de informação e transparência.

O desembargador destacou que o bloqueio unilateral de uma conta, sem justificativa adequada e sem comunicação prévia ao usuário, representa falha na prestação do serviço e violação dos princípios da boa-fé e da confiança legítima. A ausência de prova concreta sobre a suposta conduta irregular reforça a conclusão de que o ato foi arbitrário e desproporcional.

As decisões automatizadas e o dever de motivação

Um dos aspectos mais relevantes do voto está na reflexão sobre o uso crescente de sistemas automatizados para moderação e exclusão de perfis. O relator lembrou que a LGPD (art. 20) assegura ao titular o direito de solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais. Assim, o bloqueio de uma conta decidido por algoritmos, sem supervisão humana e sem possibilidade de recurso, contraria não apenas a LGPD, mas também princípios estruturantes do Estado de Direito, como o devido processo legal e o contraditório.

O voto evidencia a importância da motivação das decisões digitais. Não se trata de exigir das plataformas uma justificativa extensa, mas sim de assegurar que o usuário compreenda o motivo da restrição e tenha oportunidade de defesa. Em um ambiente em que decisões são tomadas por sistemas opacos e autorreferenciais, o dever de motivação torna-se o elo entre o poder tecnológico e a legitimidade jurídica.

A nulidade da cláusula potestativa e a boa-fé objetiva

Outro ponto central do voto foi o reconhecimento da nulidade das cláusulas contratuais que permitem o encerramento unilateral da conta sem justificativa e sem contraditório.
Com base no art. 51, inciso XI, do CDC, o Desembargador considerou que tais disposições configuram cláusulas potestativas, proibidas pela legislação de consumo, por colocarem o usuário em posição de completa vulnerabilidade.

Além do CDC, o Marco Civil da Internet (arts. 7º e 20) impõe às plataformas o dever de manter práticas de lealdade e transparência, reforçando que o controle sobre o conteúdo não pode ser exercido de modo arbitrário. O voto, assim, reafirma o papel do Judiciário como guardião da confiança pública e do equilíbrio nas relações digitais.

A proporcionalidade e o patrimônio digital

O desembargador também destacou o impacto concreto que o bloqueio causa na vida do usuário. Perder o acesso a uma conta não significa apenas deixar de enviar mensagens: significa perder memórias, contatos, registros de trabalho e vínculos pessoais. O voto reconhece que o perfil digital é, em muitos casos, uma extensão da identidade e da atividade econômica do indivíduo. Por isso, o bloqueio deve observar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, e ser utilizado apenas em situações excepcionais e devidamente comprovadas.

A decisão e seu alcance

Ao final, o Tribunal negou provimento à apelação do Telegram, mantendo integralmente a sentença que determinou a reativação da conta em 48 horas, sob pena de multa diária.
O acórdão reafirma que o ambiente digital não é um território à margem do Direito e que a liberdade de expressão não pode ser condicionada à vontade unilateral das plataformas.

Mais do que uma vitória individual, a decisão representa um avanço institucional no reconhecimento de que os direitos fundamentais acompanham o cidadão também em sua existência digital. O voto de César Zalaf recorda que o contrato eletrônico não pode converter-se em instrumento de exclusão, nem o algoritmo pode substituir a razão jurídica.

Considerações finais

O caso julgado pelo TJ/SP revela um fenômeno contemporâneo: a crescente transferência de poder decisório para sistemas automatizados que modulam o espaço público digital. A decisão do desembargador César Zalaf restitui equilíbrio a essa relação, ao lembrar que a técnica deve servir ao Direito, e não o contrário.

O voto é sereno, mas firme.

Sem retórica excessiva, afirma o que o tempo parecia querer esquecer: a Constituição ainda fala mais alto que o código.

A soberania tecnológica não substitui a soberania jurídica; o algoritmo não é sujeito de direito; e o cidadão digital não pode ser reduzido à condição de objeto processado por uma máquina.

Mais do que resolver um litígio, o julgamento reacende o sentido de humanidade que deve acompanhar toda forma de decisão - seja ela escrita por um juiz ou executada por uma linha de código.

E talvez essa seja a mensagem mais importante do voto: a justiça, mesmo na era digital, continua a ser um ato profundamente humano.

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Colunistas

Coriolano Aurélio de Almeida Camargo Santos é advogado e Presidente da Digital Law Academy. Ph.D., ocupa o cargo de Conselheiro Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OAB/SP), com mandatos entre 2013-2018 e 2022-2024. É membro da Comissão Nacional de Inteligência Artificial do Conselho Federal da OAB. Foi convidado pela Mesa do Congresso Nacional para criar e coordenar a comissão de Juristas que promoveu a audiência pública sobre a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, realizada em 24 de maio de 2019. Possui destacada carreira acadêmica, tendo atuado como professor convidado da Università Sapienza (Roma), IPBEJA (Portugal), Granada, Navarra e Universidade Complutense de Madrid (Espanha). Foi convidado pelo Supremo Tribunal Federal em duas ocasiões para discutir temas ligados ao Direito e à Tecnologia. Também atua como professor e coordenador do programa de Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) da Escola Superior de Advocacia Nacional do Conselho Federal é o órgão máximo na estrutura da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB). Foi fundador e presidente da Comissão de Direito Digital e Compliance da OAB/SP (2005-2018). Atuou como Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (2005-2021) e fundou a Comissão do Contencioso Administrativo Tributário da OAB/SP em 2014. Na área de arbitragem, é membro da Câmara Empresarial de Arbitragem da FECOMERCIO, OAB/SP e da Câmara Arbitral Internacional de Paris. Foi membro do Conselho Jurídico da FIESP (2011-2020) e diretor do Departamento Jurídico da mesma entidade (2015-2022). Atualmente desempenha o papel de Diretor Jurídico do DEJUR do CIESP. Foi coordenador do Grupo de Estudos de Direito Digital da FIESP (2015/2020). Foi convidado e atuou como pesquisador junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2010, para tratar da segurança física e digital de processos findos. Além disso, ocupou o cargo de Diretor Titular do Centro do Comércio da FECOMERCIO (2011-2017) e foi conselheiro do Conselho de Tecnologia da Informação e Comunicação da FECOMERCIO (2006-2010). Desde 2007, é membro do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP. Atua como professor de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie desde 2007, nos cursos de Direito e Tecnologia, tendo lecionado no curso de Direito Digital da Fundação Getúlio Vargas, IMPACTA Tecnologia e no MBA em Direito Eletrônico da EPD. Ainda coordenou e fundou o Programa de Pós-Graduação em Direito Digital e Compliance do Ibmec/Damásio. É Mestre em Direito na Sociedade da Informação pela FMU (2007) e Doutor em Direito pela FADISP (2014). Lecionou na Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região, Academia Nacional de Polícia Federal, Governo do Estado de São Paulo e Congresso Nacional, em eventos em parceria com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, INTERPOL e Conselho da Europa. Como parte de sua atuação internacional, é membro da International High Technology Crime Investigation Association (HTCIA) e integrou o Conselho Científico de Conferências de âmbito mundial (ICCyber), com o apoio e suporte da Diretoria Técnico-Científica do Departamento de Polícia Federal, Federal Bureau of Investigation (FBI/USA), Australian Federal Police (AFP) e Guarda Civil da Espanha. Além disso, foi professor convidado em instituições e empresas de grande porte, como Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER), Banco Santander e Microsoft, bem como palestrou em eventos como Fenalaw/FGV.GRC-Meeting, entre outros. Foi professor colaborador da AMCHAM e SUCESU. Em sua atuação junto ao Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), apresentou uma coletânea de pareceres colaborativos à ação governamental, alcançando resultados significativos com a publicação de Convênios e Atos COTEPE voltados para a segurança e integração nacional do sistema tributário e tecnológico. Também é autor do primeiro Internet-Book da OAB/SP, que aborda temas de tributação, direito eletrônico e sociedade da informação, e é colunista em Direito Digital, Inovação e Proteção de Dados do Portal Migalhas, entre outros. Em sua atuação prática, destaca-se nas áreas do Direito Digital, Inovação, Proteção de Dados, Tributário e Empresarial, com experiência jurídica desde 1988.

Leila Chevtchuk, eleita por aclamação pelos ministros do TST integrou o Conselho Consultivo da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho – ENAMAT. Em 2019 realizou visita técnico científica a INTERPOL em Lyon na França e EUROPOL em 2020 em Haia na Holanda. Desembargadora, desde 2010, foi Diretora da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região. Pela USP é especialista em transtornos mentais relacionados ao trabalho e em psicologia da saúde ocupacional. Formada em Direito pela USP. Pós-graduada pela Universidade de Lisboa, na área de Direito do Trabalho. Mestre em Relações do Trabalho pela PUC e doutorado na Universidade Autôno de Lisboa.