O recente voto proferido pelo desembargador César Eduardo Temer Zalaf, da 14ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, reacende o debate sobre os limites do poder das plataformas digitais e o alcance dos direitos fundamentais no ambiente virtual.
A decisão, que analisou o recurso interposto pelo Telegram Messenger Inc., trouxe à tona um tema cada vez mais relevante: a necessidade de controle jurídico sobre decisões automatizadas de banimento e exclusão de perfis de usuários.
O caso e a controvérsia
O processo teve origem em uma ação ajuizada por um usuário do Telegram que, de forma inesperada, teve sua conta bloqueada sob a alegação genérica de “atividade atípica” ou envio de “spam”.
A exclusão foi automática e sem qualquer explicação concreta. O usuário não recebeu aviso prévio, nem teve oportunidade de contestar a medida.
Diante da falta de resposta da plataforma, buscou o Judiciário para reaver o acesso ao seu perfil - onde mantinha registros pessoais, profissionais e familiares acumulados ao longo dos anos.
O juízo de primeiro grau reconheceu o caráter abusivo do bloqueio, determinou a reativação da conta em 48 horas, sob pena de multa diária, e condenou a empresa ao pagamento de custas e honorários advocatícios.
Inconformada, a ré interpôs apelação, sustentando inexistência de relação de consumo, incompetência da jurisdição brasileira e regular exercício do direito contratual.
Foi nesse contexto que o desembargador César Zalaf, ao relatar o caso, apresentou voto que merece atenção especial não apenas pelo desfecho, mas pela profundidade da análise e pelo equilíbrio entre técnica e prudência.
A competência da jurisdição brasileira
Logo de início, o voto afastou a alegação de incompetência internacional, afirmando que os efeitos do serviço prestado se produzem no território nacional, o que atrai a aplicação da legislação brasileira.
Nos termos do art. 22 do CPC, compete à Justiça brasileira processar e julgar ações quando o fato ou seus efeitos ocorrem no Brasil, ainda que o réu tenha sede no exterior.
O desembargador observou também que, sendo a relação de consumo evidente, aplica-se o art. 101, inciso I, do CDC, que estabelece o domicílio do consumidor como foro competente.
A decisão reafirma a soberania jurídica brasileira sobre atividades econômicas e comunicacionais que impactam cidadãos no país, independentemente da localização geográfica dos servidores ou da matriz da empresa.
A relação de consumo e o dever de informação
Outro ponto importante do voto foi o reconhecimento de que a prestação de serviços digitais, ainda que gratuita, configura relação de consumo. Segundo o relator, as plataformas auferem benefício econômico indireto pela coleta de dados, pelo tráfego de informações e pela exibição de publicidade direcionada. Logo, incidem as normas protetivas do CDC, inclusive quanto ao dever de informação e transparência.
O desembargador destacou que o bloqueio unilateral de uma conta, sem justificativa adequada e sem comunicação prévia ao usuário, representa falha na prestação do serviço e violação dos princípios da boa-fé e da confiança legítima. A ausência de prova concreta sobre a suposta conduta irregular reforça a conclusão de que o ato foi arbitrário e desproporcional.
As decisões automatizadas e o dever de motivação
Um dos aspectos mais relevantes do voto está na reflexão sobre o uso crescente de sistemas automatizados para moderação e exclusão de perfis. O relator lembrou que a LGPD (art. 20) assegura ao titular o direito de solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais. Assim, o bloqueio de uma conta decidido por algoritmos, sem supervisão humana e sem possibilidade de recurso, contraria não apenas a LGPD, mas também princípios estruturantes do Estado de Direito, como o devido processo legal e o contraditório.
O voto evidencia a importância da motivação das decisões digitais. Não se trata de exigir das plataformas uma justificativa extensa, mas sim de assegurar que o usuário compreenda o motivo da restrição e tenha oportunidade de defesa. Em um ambiente em que decisões são tomadas por sistemas opacos e autorreferenciais, o dever de motivação torna-se o elo entre o poder tecnológico e a legitimidade jurídica.
A nulidade da cláusula potestativa e a boa-fé objetiva
Outro ponto central do voto foi o reconhecimento da nulidade das cláusulas contratuais que permitem o encerramento unilateral da conta sem justificativa e sem contraditório.
Com base no art. 51, inciso XI, do CDC, o Desembargador considerou que tais disposições configuram cláusulas potestativas, proibidas pela legislação de consumo, por colocarem o usuário em posição de completa vulnerabilidade.
Além do CDC, o Marco Civil da Internet (arts. 7º e 20) impõe às plataformas o dever de manter práticas de lealdade e transparência, reforçando que o controle sobre o conteúdo não pode ser exercido de modo arbitrário. O voto, assim, reafirma o papel do Judiciário como guardião da confiança pública e do equilíbrio nas relações digitais.
A proporcionalidade e o patrimônio digital
O desembargador também destacou o impacto concreto que o bloqueio causa na vida do usuário. Perder o acesso a uma conta não significa apenas deixar de enviar mensagens: significa perder memórias, contatos, registros de trabalho e vínculos pessoais. O voto reconhece que o perfil digital é, em muitos casos, uma extensão da identidade e da atividade econômica do indivíduo. Por isso, o bloqueio deve observar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, e ser utilizado apenas em situações excepcionais e devidamente comprovadas.
A decisão e seu alcance
Ao final, o Tribunal negou provimento à apelação do Telegram, mantendo integralmente a sentença que determinou a reativação da conta em 48 horas, sob pena de multa diária.
O acórdão reafirma que o ambiente digital não é um território à margem do Direito e que a liberdade de expressão não pode ser condicionada à vontade unilateral das plataformas.
Mais do que uma vitória individual, a decisão representa um avanço institucional no reconhecimento de que os direitos fundamentais acompanham o cidadão também em sua existência digital. O voto de César Zalaf recorda que o contrato eletrônico não pode converter-se em instrumento de exclusão, nem o algoritmo pode substituir a razão jurídica.
Considerações finais
O caso julgado pelo TJ/SP revela um fenômeno contemporâneo: a crescente transferência de poder decisório para sistemas automatizados que modulam o espaço público digital. A decisão do desembargador César Zalaf restitui equilíbrio a essa relação, ao lembrar que a técnica deve servir ao Direito, e não o contrário.
O voto é sereno, mas firme.
Sem retórica excessiva, afirma o que o tempo parecia querer esquecer: a Constituição ainda fala mais alto que o código.
A soberania tecnológica não substitui a soberania jurídica; o algoritmo não é sujeito de direito; e o cidadão digital não pode ser reduzido à condição de objeto processado por uma máquina.
Mais do que resolver um litígio, o julgamento reacende o sentido de humanidade que deve acompanhar toda forma de decisão - seja ela escrita por um juiz ou executada por uma linha de código.
E talvez essa seja a mensagem mais importante do voto: a justiça, mesmo na era digital, continua a ser um ato profundamente humano.