Família e Sucessões

A reforma do Código Civil e o testamento particular

A coluna aborda as propostas da reforma do Código Civil que modernizam o testamento particular, prevendo formas digitais e reduzindo burocracias sem comprometer segurança jurídica.

23/7/2025

Seguimos neste espaço a tratar das propostas da reforma do CC a respeito do testamento, sendo pertinente sempre lembrar que uma das linhas metodológicas seguidas pela Comissão de Juristas nomeada no Senado Federal foi a de reduzir as burocracias, destravando a vida das pessoas, o que se aplica ao testamento particular.

Essa modalidade é também chamada de testamento hológrafo, uma vez que escrito pelo próprio testador, sem maiores formalidades. Apesar de ser a forma mais fácil de ser concretizada, não tem a mesma segurança do testamento público, não sendo tão comum a sua celebração em nosso País.

De acordo com o art. 1.876, caput, do CC em vigor, o testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico, como por máquina de escrever ou computador. Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade que seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever, confirmando o ato de última vontade (§ 1.º). Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de tê-lo lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão (§ 2.º desse art. 1.876).

Sobre o § 1.º do art. 1.876, julgado do TJ/MG manteve regra da confirmação pelas testemunhas mesmo com a pandemia de Covid-19, como se extrai da seguinte ementa:

“Apelação cível. Direito de sucessões. Testamento particular. Ação de confirmação e cumprimento. Art. 1.876, § 1º, do CC. Formalidades legais. Ausência de testemunhas. Situação excepcional. Art. 1.879 do CC. Não configuração. Nulidade confirmada. O art. 1.876, § 1.º, do CC prevê os requisitos essenciais para a validade do testamento particular. Embora se reconheçam as dificuldades trazidas pela pandemia da Covid-19, com o fechamento de cartórios de registro público, como também diante da internação da autora por outra doença grave, não há como confirmar-se o testamento particular, que não observou os requisitos legais de art. 1.879, § 1.º, do CC, na falta de declaração, no próprio instrumento, da excepcionalidade que justificasse a dispensa das testemunhas testamentárias e a condição mental da testadora, especialmente sem qualquer prova de que a testadora estivesse em completa situação de isolamento no hospital do SUS. Recurso não provido” (TJ/MG, Apelação Cível 5000637-85.2021.8.13.0002, 8.ª câmara Cível Especializada, rel. juiz conv. Paulo Rogério de Souza Abrantes, j. 5/8/2022, DJEMG 11/8/2022).

Com o devido respeito, não estou filiado, a priori, ao entendimento transcrito, pois penso que em tempos pandêmicos, e a depender das circunstâncias fáticas, a regra do art. 1.876, § 1.º, do CC poderia ser mitigada, em prol da autonomia privada e da conservação do negócio jurídico testamentário.

A propósito dessa última afirmação, observa-se que a jurisprudência superior tem mitigado os requisitos formais do testamento particular sem, todavia, eliminar todos eles. A título de ilustração, tem-se entendido que “a jurisprudência desta Corte se consolidou no sentido de que, para preservar a vontade do testador, são admissíveis determinadas flexibilizações nas formalidades legais exigidas para a validade do testamento particular, a depender da gravidade do vício de que padece o ato de disposição. Precedentes. (...). São suscetíveis de superação os vícios de menor gravidade, que podem ser denominados de puramente formais e que se relacionam essencialmente com aspectos externos do testamento particular, ao passo que vícios de maior gravidade, que podem ser chamados de formais-materiais porque transcendem a forma do ato e contaminam o seu próprio conteúdo, acarretam a invalidade do testamento lavrado sem a observância das formalidades que servem para conferir exatidão à vontade do testador. (...). Na hipótese, o vício que impediu a confirmação do testamento consiste apenas no fato de que a declaração de vontade da testadora não foi realizada na presença de três, mas, sim, de somente duas testemunhas, espécie de vício puramente formal incapaz de, por si só, invalidar o testamento, especialmente quando inexistentes dúvidas ou questionamentos relacionados à capacidade civil do testador, nem tampouco sobre a sua real vontade de dispor dos seus bens na forma constante no documento. (...)” (STJ, REsp 1.583.314/MG, 3.ª turma, rel. min. Nancy Andrighi, j. 21/8/2018, DJe 23/8/2018).

Em 2020, essa mitigação consolidou-se de tal forma no âmbito do STJ que a sua 2ª seção passou a admitir a feitura de um testamento particular com a assinatura digital do testador. Conforme parte da ementa do acórdão, “em se tratando de sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado é a preservação da manifestação de última vontade do falecido, devendo as formalidades previstas em lei serem examinadas à luz dessa diretriz máxima, sopesando-se, sempre casuisticamente, se a ausência de uma delas é suficiente para comprometer a validade do testamento em confronto com os demais elementos de prova produzidos, sob pena de ser frustrado o real desejo do testador. Conquanto a jurisprudência do STJ permita, sempre excepcionalmente, a relativização de apenas algumas das formalidades exigidas pelo CC e somente em determinadas hipóteses, o critério segundo o qual se estipulam, previamente, quais vícios são sanáveis e quais vícios são insanáveis é nitidamente insuficiente, devendo a questão ser examinada sob diferente prisma, examinando-se se da ausência da formalidade exigida em lei efetivamente resulta alguma dúvida quanto à vontade do testador” (STJ, REsp 1.633.254/MG, 2ª seção, rel. min. Nancy Andrighi, j. 11/3/2020, DJe 18/3/2020).

Ainda conforme o julgado e analisando diretamente a questão, vejamos o seguinte trecho, que serviu como base para a elaboração das propostas constantes do projeto de reforma do CC:

“Em uma sociedade que é comprovadamente menos formalista, na qual as pessoas não mais se individualizam por sua assinatura de próprio punho, mas, sim, pelos seus tokens, chaves, logins e senhas, ID’s, certificações digitais, reconhecimentos faciais, digitais e oculares e, até mesmo, pelos seus hábitos profissionais, de consumo e de vida captados a partir da reiterada e diária coleta de seus dados pessoais, e na qual se admite a celebração de negócios jurídicos complexos e vultosos até mesmo por redes sociais ou por meros cliques, o papel e a caneta esferográfica perdem diariamente o seu valor e a sua relevância, devendo ser examinados em conjunto com os demais elementos que permitam aferir ser aquela a real vontade do contratante. A regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é requisito de validade do testamento particular, pois, traz consigo a presunção de que aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma presunção juris tantum, admitindo-se, ainda que excepcionalmente, a prova de que, se porventura ausente a assinatura nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real vontade do testador. Hipótese em que, a despeito da ausência de assinatura de próprio punho do testador e do testamento ter sido lavrado a rogo e apenas com a aposição de sua impressão digital, não havia dúvida acerca da manifestação de última vontade da testadora que, embora sofrendo com limitações físicas, não possuía nenhuma restrição cognitiva” (STJ, REsp 1.633.254/MG, 2.ª seção, rel. min. Nancy Andrighi, j. 11/3/2020, DJe 18/3/2020).

Pois bem, no citado PL 4/25, como não poderia ser diferente, almeja-se a redução de burocracias para o testamento particular, na mesma linha das proposições para as outras formas ordinárias de testamento. Assim, de início, projeta-se no art. 1.876 a possibilidade de o testamento particular ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico, ou pode ser gravado em sistema digital de som e imagem. Mais uma vez, portanto e assim como se dá com o testamento público, possibilita-se o testamento por vídeo, que já era pleiteado pela doutrina há tempos.

Nos termos do seu novo § 2º, reduzindo-se as burocracias, e o seu número de testemunhas de três para duas, “se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido diante de pelo menos duas testemunhas, que o subscreverão”. A redução do número de testemunhas consta de outras proposições do próprio projeto de reforma, que visa a facilitar a vida das pessoas no ambiente dos negócios jurídicos privados.

Eventualmente, consoante o novo § 3º desse art. 1.876 do CC, se o testamento particular for realizado por sistema digital de som e imagem, deve haver nitidez e clareza na gravação das imagens e sons, bem como declarar a data da gravação, sendo esses os requisitos essenciais à sua validade, além da intervenção simultânea de duas testemunhas identificadas nas imagens.

A norma proposta em seu quarto e último parágrafo estabelece que o testamento particular deverá ser gravado em formato compatível com os programas computadorizados de leitura existentes na data da celebração do ato, contendo a declaração do testador de que no vídeo consta o seu testamento, bem como sua qualificação completa e a das testemunhas. Tudo isso para que se possa efetivamente atestar a vontade do morto pelo testamento por vídeo.

Ainda quanto ao instituto, no projeto de reforma do CC sugere-se que o seu art. 1.878 também passe a mencionar o testamento por vídeo. Atualmente a norma estabelece em seu caput que, “se as testemunhas forem contestes sobre o fato da disposição, ou, ao menos, sobre a sua leitura perante elas, e se reconhecerem as próprias assinaturas, assim como a do testador, o testamento será confirmado”. E, nos termos do seu vigente parágrafo único, “se faltarem testemunhas, por morte ou ausência, e se pelo menos uma delas o reconhecer, o testamento poderá ser confirmado, se, a critério do juiz, houver prova suficiente de sua veracidade”.

Consoante o novo comando que é proposto para a norma, “se as testemunhas forem contestes sobre o fato da disposição, e se reconhecerem as próprias assinaturas, ou quando, por programa de gravação, reconhecerem as suas imagens e falas, assim como as do testador, o testamento será confirmado”. Se no caso concreto, nos termos do seu remodelado parágrafo único, faltarem as testemunhas, por morte ou ausência, o testamento poderá ser confirmado se, a partir dos demais elementos de prova, não houver dúvida fundamentada sobre a autenticidade da assinatura, das imagens ou sobre a higidez das declarações manifestadas pelo testador. Não se pode negar que a aprovação dessas proposições é mais do que necessária, para a tão citada redução de burocracias e para que seja possível a efetivação do ato de última vontade por vídeo, sem se perder a necessária segurança jurídica.

Como outra temática importante a respeito do testamento particular, o art. 1.879 da lei civil trata do testamento de emergência, que constitui uma forma simplificada de testamento particular. Nos seus termos literais vigentes, “em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz”.

Como exemplo recente de aplicação do instituto, cite-se o paciente que se encontrava na iminência de ser entubado, por ter contraído o coronavírus (Covid-19), e que quisesse fazer esse testamento de emergência ou hológrafo simplificado. Pontue-se que tentamos a inclusão de regra a respeito dessa hipótese no então projeto de lei que deu origem à lei 14.010/20, que criou o regime emergencial em Direito Privado em tempos de pandemia (RJET), o que não foi aceito no âmbito do Congresso Nacional. Todavia, isso não obsta que tal situação se enquadre na figura em estudo.

Ainda sobre essa forma de testamento, destaque-se que na VII Jornada de Direito Civil, promovida em setembro de 2015, aprovou-se o seguinte enunciado: “o testamento hológrafo simplificado, previsto no art. 1.879 do CC, perderá eficácia se, nos 90 dias subsequentes ao fim das circunstâncias excepcionais que autorizam a sua confecção, o disponente, podendo fazê-lo, não testar por uma das formas testamentárias ordinárias” (enunciado 611).

O objetivo da ementa doutrinária aprovada é a aplicação das mesmas premissas previstas para as modalidades especiais de testamento para a categoria tratada no art. 1.879 do CC, o que é correto tecnicamente. Vejamos as suas justificativas apresentadas naquela Jornada:

“O CC permite que, em circunstâncias extraordinárias (que deverão ser declaradas na cédula), o disponente elabore testamento particular de próprio punho sem a presença de testemunhas. As formalidades são flexibilizadas em função da excepcionalidade da situação em que se encontra o testador, permitindo-se que este exerça sua manifestação de última vontade. Ocorre que, em se verificando o desaparecimento das mencionadas circunstâncias extraordinárias, não se justifica a subsistência do testamento elaborado com mitigação de solenidades. Destaque-se que esta é a regra aplicável para as formas especiais de testamento (marítimo, aeronáutico e militar), para as quais de modo geral se aplica um prazo de caducidade de 90 dias, contados a partir da data em que se faz possível testar pelas formas ordinárias. Por essa razão, conclui-se que, não havendo mais o contexto de excepcionalidade, o testamento hológrafo simplificado perde sua razão de ser, devendo o testador se utilizar de uma das formas testamentárias revestidas das devidas e necessárias solenidades”.

No projeto de reforma do CC pretende-se a inclusão do citado enunciado doutrinário no texto de lei, além da viabilidade do testamento hológrafo simplificado digital ou por vídeo. Nesse contexto, o seu art. 1.879 passará a prever que, “em circunstâncias excepcionais declaradas pelo testador, o testamento particular escrito e assinado de próprio punho ou em meio digital, ou gravado em qualquer programa ou dispositivo audiovisual pelo testador, sem testemunhas ou demais formalidades, poderá ser confirmado, se, a partir dos demais elementos de prova, não houver dúvida fundamentada sobre a autenticidade da assinatura, das imagens ou sobre a higidez das declarações manifestadas pelo testador”. E, conforme o seu necessário parágrafo único, na linha do enunciado 611 da VII Jornada de Direito Civil: “perde a eficácia o testamento particular excepcional, se o testador não morrer no prazo de noventa dias, contados da cessação das circunstâncias excepcionais declaradas na cédula ou no dispositivo eletrônico”.

Mais uma vez, o objetivo é o de se incluir na norma jurídica a posição doutrinária majoritária, conforme enunciado aprovado em Jornada de Direito Civil, resolvendo-se dilema verificado nos mais de vinte anos de vigência da codificação privada de 2002, e encerrando debate que ainda se vislumbra na teoria e na prática.

Como último tema a ser tratado neste texto, o art. 1.880 do CC enuncia que o testamento particular pode ser escrito em língua estrangeira, contanto que as testemunhas a compreendam. Não se pode negar que é preciso incluir na norma a possibilidade do testamento com o uso das tecnologias assistivas, em prol da proteção das pessoas com deficiência, fazendo com que o preceito passe a prever o seguinte: “Art. 1.880. O testamento particular pode ser escrito em língua estrangeira ou em Braille, contanto que as testemunhas o compreendam. Parágrafo único. O testamento particular em sistema digital de som e imagem poderá ser gravado em língua estrangeira ou em LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais, compreensível das testemunhas”.

Em prol da dignidade da pessoa humana e da inclusão, e do que está previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência e na Convenção de Nova Iorque, espera-se a aprovação da proposição, assim como as anteriores, visando a trazer mais efetividade ao instituto do testamento particular em nosso País.

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Colunista

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.