Seguimos neste espaço a tratar das propostas da reforma do CC a respeito do testamento, na linha metodológica seguida pela Comissão de Juristas nomeada no Senado Federal, para a redução de suas burocracias e a inclusão das pessoas com deficiência, destravando a vida das pessoas, o que se aplica ao testamento cerrado, tema deste quarto artigo da série.
O instituto é também denominado como testamento místico, pois não se sabe qual o seu conteúdo, que permanece em segredo até a morte do testador. Trata-se de instituto sem grande aplicação no presente, tendo pouca operabilidade na prática sucessionista. Como se sabe, o fato de não se saber o conteúdo gera vantagens e desvantagens.
Como enorme desvantagem, se a integralidade do documento for atingida de alguma forma, por uma enchente ou água de chuva, por exemplo, o testamento pode não gerar efeitos. Nos termos da lei, o testamento cerrado que o testador abrir ou dilacerar, ou que for aberto ou dilacerado com seu consentimento, será tido como revogado (art. 1.972 do CC). Assim, a lei trata as hipóteses de abertura ou estrago do conteúdo do testamento cerrado como de revogação tácita total. Não se pode admitir a revogação parcial do testamento cerrado, pois a sua finalidade mística é seriamente atingida nos casos descritos no comando. Nos termos de um dos raros julgados sobre o tema, do TJ/SP, destaque-se:
"APELAÇÃO CÍVEL. SUCESSÕES. TESTAMENTO CERRADO. Envelopes contendo dois testamentos que foram abertos e dilacerados pelo testador, com seu consentimento e na presença de testemunhas. Quebra de sigilo da cédula testamentária que implica em revogação e nulidade do ato de última vontade. Inteligência dos art. 1.875 e 1.972 do Código Civil. Preliminar de cerceamento de defesa. Afastamento. Demonstração nos autos que o testador encontrava-se lúcido à época dos fatos. Recurso desprovido" (TJSP, Apelação n. 0000251-40.2014.8.26.0418, Acórdão n. 11155578, Paraibuna, 6.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Rodolfo Pellizari, j. 08.02.2018, DJESP 15.03.2018, p. 2160).
Diante dessa realidade, na elaboração do projeto de reforma do CC, pela Comissão de Juristas nomeada no Senado Federal, chegou-se a cogitar a sua retirada da lei privada, como está sendo proposto para as modalidades especiais - militar, marítimo e aeronáutico -, prevalecendo a tese pela sua manutenção, mas com ajustes necessários para a mitigação de solenidades, a inclusão das pessoas com deficiência, a extrajudicialização e a digitalização.
Pois bem, no sistema atual e nos termos do art. 1.868 da vigente codificação, o testamento cerrado escrito pelo testador, ou por outra pessoa, a seu rogo ou pedido, e por aquele assinado, será válido se aprovado pelo Tabelião ou seu substituto legal, observadas as seguintes formalidades: “I) Que o testador o entregue ao tabelião em presença de duas testemunhas. II) Que o testador declare que aquele é o seu testamento e quer que seja aprovado. III) Que o tabelião lavre, desde logo, o auto de aprovação, na presença de duas testemunhas, e o leia, em seguida, ao testador e testemunhas. IV) Que o auto de aprovação seja assinado pelo tabelião, pelas testemunhas e pelo testador”.
Em complemento, prescreve o parágrafo único do dispositivo em vigor que o testamento cerrado pode ser escrito mecanicamente, isto é, digitado, desde que seu subscritor numere e autentique, com a sua assinatura, todas as páginas.
O Tabelião deve começar o auto de aprovação imediatamente depois da última palavra do testador, declarando, sob sua fé, que o testador lhe entregou para ser aprovado na presença das testemunhas. Após isso, o Tabelião passa a cerrar e a coser o instrumento aprovado, com cinco pontos de retrós, como é costume, sendo o testamento lacrado nos pontos de costura, nos termos do art. 1.869, caput, do CC. Se não houver espaço na última folha do testamento para início da aprovação, o Tabelião colocará nele o seu sinal público, mencionando a circunstância no auto (art. 1.869, parágrafo único, do CC).
Consigne-se que, assim como ocorre com o testamento público e o particular, a jurisprudência superior tem mitigado algumas das exigências formais para o testamento cerrado. Nessa linha, entre os primeiros precedentes superiores, ainda na vigência da codificação de 1916, destaco:
“Testamento cerrado. Auto de aprovação. Falta de assinatura do testador. Inexistindo qualquer impugnação à manifestação da vontade, com a efetiva entrega do documento ao oficial, tudo confirmado na presença das testemunhas numerárias, a falta de assinatura do testador no auto de aprovação é irregularidade insuficiente para, na espécie, causar a invalidade do ato. Art. 1.638 do CCivil. Recurso não conhecido” (STJ, REsp 223.799/SP, 4.ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 18.11.1999, DJ 17.12.1999, p. 379).
No que concerne a aspectos formais, concluiu a jurisprudência superior que é válido o testamento cerrado elaborado por testadora com grave deficiência visual. A conclusão foi no sentido de que deve prevalecer o respeito à vontade real do testador, o que orienta as propostas de atualização do CC. Vejamos a ementa dessa decisão:
“Ação de anulação de testamento cerrado. Inobservância de formalidades legais. Incapacidade da autora. Quebra do sigilo. Captação da vontade. Presença simultânea das testemunhas. Reexame de prova. Súmula 7/STJ. 1. Em matéria testamentária, a interpretação deve ser voltada no sentido da prevalência da manifestação de vontade do testador, orientando, inclusive, o magistrado quanto à aplicação do sistema de nulidades, que apenas não poderá ser mitigado, diante da existência de fato concreto, passível de colocar em dúvida a própria faculdade que tem o testador de livremente dispor acerca de seus bens, o que não se faz presente nos autos. 2. O acórdão recorrido, forte na análise do acervo fático-probatório dos autos, afastou as alegações da incapacidade física e mental da testadora; de captação de sua vontade; de quebra do sigilo do testamento, e da não simultaneidade das testemunhas ao ato de assinatura do termo de encerramento. 3. A questão da nulidade do testamento pela não observância dos requisitos legais à sua validade, no caso, não prescinde do reexame do acervo fático-probatório carreado ao processo, o que é vedado em âmbito de especial, em consonância com o enunciado 7 da Súmula desta Corte. 4. Recurso especial a que se nega provimento” (STJ, REsp 1.001.674/SC, 3.ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 05.10.2010, DJe 15.10.2010).
Se o Tabelião tiver escrito o testamento a pedido do testador, poderá, não obstante, aprová-lo, conforme está no art. 1.870 do CC. O testamento cerrado pode ser escrito em língua nacional ou estrangeira, pelo próprio testador, ou por outrem, a seu pedido (art. 1.871 do CC).
Por razões óbvias, não pode dispor de seus bens em testamento cerrado quem não saiba ou não possa ler, caso do analfabeto (art. 1.872 do CC). Porém, pode fazer testamento cerrado o surdo-mudo ou pessoa surda, contanto que o escreva todo, e o assine de sua mão, e que, ao entregá-lo ao oficial público, ante as duas testemunhas, escreva, na face externa do papel ou do envoltório, que aquele é o seu testamento, cuja aprovação lhe pede (art. 1.873 do CC).
Depois de aprovado e cerrado, será o testamento entregue ao testador, e o Tabelião lançará no seu livro nota do lugar, dia, mês e ano em que o testamento foi aprovado e entregue (art. 1.874 do CC). Ocorrendo o falecimento do testador ou autor da herança, o testamento cerrado será apresentado ao juiz, que o abrirá e o fará registrar, ordenando que seja cumprido, se não achar vício externo que o torne eivado de nulidade ou suspeito de falsidade (art. 1.875 do CC).
No atual projeto de reforma do CC (PL 4/25), como antes pontuado, há propostas que almejam a redução de burocracias, a extrajudicialização, a digitalização e a inclusão das pessoas com deficiência para as disposições de última vontade, o que é necessário, pelas mudanças recentes pelas quais passou a sociedade brasileira.
Nesse contexto, o caput e o inciso I do seu art. 1.868 passarão a prever que “o testamento escrito ou gravado em sistema digital de som e imagem pelo testador, será válido se aprovado pelo tabelião ou seu substituto legal, observadas as seguintes formalidades: I – que o testador entregue a declaração escrita em documento físico ou o arquivo digital de som e imagem ao tabelião diante de pelo menos duas testemunhas”.
São mantidos na sequência os incisos II e III do preceito, passando o seu inciso IV a prever que o auto de aprovação seja assinado pelo Tabelião, pela testemunha e pelo testador ou por outra pessoa, a seu rogo ou pedido, sendo esta última proposta incorporadora do atual art. 1.870, que será revogado expressamente. E, conforme o reformado parágrafo único que é proposto para a norma, quando digitado o testamento cerrado, o subscritor deve numerar e autenticar, com a sua assinatura, todas as páginas. Pela mesma proposição, quando for gravado em sistema digital de som e imagem, na tão almejada modalidade de testamento por vídeo, deve o testador verbalizar, com a própria voz, antes de encerrar a gravação, ser aquele o seu testamento.
O art. 1.869 do CC, como não poderia ser diferente, passará a mencionar que o Tabelião deve começar o auto de aprovação declarando, sob sua fé, que o testador lhe entregou a declaração escrita em documento físico ou o arquivo digital de som e imagem para ser aprovado diante das testemunhas, passando a lacrar o invólucro em que inserido o arquivo digital.
Também passará a ser permitido ao testador, pelo seu parágrafo único, inserir no mesmo invólucro em que colocado o instrumento ou o arquivo digital do testamento, outros dispositivos eletrônicos que tenham sido dispostos em favor de herdeiros ou legatários, cabendo ao Tabelião mencioná-los no auto de aprovação. Como se pode notar, portanto, existem amplas propostas de digitalização do testamento cerrado.
No mesmo sentido, o sugerido e novo art. 1.871 do CC, que procura a inclusão da pessoa com deficiência para o testamento cerrado, assim como se dá com as modalidades pública e particular, estudadas em textos anteriores a este: “o testamento pode ser manuscrito, gravado ou digitado em língua nacional ou estrangeira, em Braille ou arquivo digital acessível, pelo próprio testador, ou por outrem, a seu rogo”.
Quanto à pessoa analfabeta, a nova redação do art. 1.872 prescreverá, em boa hora, que “quem não saiba ou não possa ler e escrever, só pode dispor de seus bens em testamento cerrado gravado em arquivo digital de áudio visual”. Por fim, com as mesmas premissas, o novel art. 1.873 da lei civil: “as pessoas com deficiência visual ou auditiva podem fazer testamento cerrado por escrito ou por gravação em sistema digital de som e imagem, sendo-lhes facultada a utilização de Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), braille ou qualquer tecnologia assistiva de sua escolha”.
Como se observa, assim, com as propostas feitas para as outras modalidades de testamento, as proposições estão mais do que justificadas, sendo urgente a sua aprovação pelo Parlamento Brasileiro.
No próximo artigo da série, o último que pretendemos desenvolver sobre a temática, veremos a questão relativa à abertura e ao cumprimento dos testamentos, no sistema atual e no projetado, com vistas a uma necessária extrajudicialização dos procedimentos.