A convivência entre arbitragem e insolvência empresarial tem gerado frutíferos debates na doutrina e jurisprudência, especialmente diante da expansão do uso de métodos privados de resolução de conflitos em disputas contratuais complexas. Embora a lei reconheça a validade da cláusula compromissória e permita que a constituição de créditos ocorra fora da jurisdição estatal — inclusive após a instauração de um processo de recuperação judicial ou de falência —, decerto que nem todos os aspectos relacionados à formação e reconhecimento dos créditos podem ser resolvidos no âmbito da arbitragem. Essa limitação foi recentemente reafirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 2.163.463/SP, que traçou um importante limite à atuação dos tribunais arbitrais em cenários de crise empresarial.
A arbitragem como via de constituição do crédito
A arbitragem constitui um método de resolução de conflitos fundado na autonomia da vontade das partes, permitindo que controvérsias relativas a direitos patrimoniais disponíveis sejam resolvidas por um tribunal arbitral, mediante a prolação de sentença arbitral com eficácia idêntica à da sentença judicial, sem a necessidade de intervenção do Estado (art. 1º da lei 9.307/961).
Quando validamente pactuada, a opção pela arbitragem – concretizada na convenção de arbitragem – produz efeitos imediatos que delimitam a jurisdição competente para a resolução de eventuais disputas. São os denominados imediatos efeitos positivo e negativo da convenção de arbitragem que, por um lado, obrigam as partes a submeterem qualquer controvérsia abrangida pela cláusula arbitral à jurisdição arbitral, e por outro, impedem a intervenção do Poder Judiciário nesses mesmos litígios, resguardando a autonomia da vontade e evitando decisões conflitantes2.
Este raciocínio permanece válido mesmo quando uma das partes enfrenta um processo de insolvência empresarial, como a recuperação judicial ou a falência. Ainda que inicialmente tenha havido alguma discussão doutrinária e jurisprudencial sobre a possibilidade de se submeter litígios envolvendo partes insolventes à arbitragem, há muito se consolidou na jurisprudência o entendimento de que a cláusula compromissória mantém sua eficácia mesmo após a instauração de um processo de insolvência empresarial. Atualmente, trata-se de regra expressa no art. 6º, §9º, da Lei 11.101/2005 (LRF), segundo a qual a existência de um processo de insolvência não impede a instauração ou o prosseguimento de procedimentos arbitrais, confirmando, portanto, os já mencionados imediatos efeitos positivo e negativo da convenção arbitral:
Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: (...)
§9º O processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impedindo ou suspendendo a instauração de procedimento arbitral.
Mesmo antes da inclusão do referido dispositivo na lei 11.101/2005, ocorrida com a reforma promovida pela lei 14.112/2020, o Superior Tribunal de Justiça já chancelava este entendimento desde o emblemático caso envolvendo a sociedade Interclínicas Planos de Saúde S.A., ao decidir que, tendo sido validamente firmada, a eficácia da cláusula compromissória não é afetada pela decretação da liquidação extrajudicial, em raciocínio que pode ser aplicado também à falência e à recuperação judicial3. Em outro caso relevante, ao analisar a aplicabilidade do art. 1174 da LRF a contrato que continha cláusula arbitral, o Superior Tribunal de Justiça já havia destacado que a referida cláusula é autônoma em relação ao contrato em que está inserida, consubstanciando um ato jurídico perfeito e acabado, de modo que o administrador judicial não poderia recusar o seu cumprimento e sequer precisaria de autorização judicial ou do Comitê de Credores para cumpri-la.
Assim, para fins de constituição de créditos eventualmente submetidos ao processo de insolvência empresarial, nos casos em que há cláusula arbitral validamente pactuada, é o juízo arbitral que detém competência para a análise do tema, seja para arbitragens em curso ou a serem iniciadas; apurando a existência, valor e exigibilidade da obrigação.
O juízo da insolvência e a competência para organização do passivo
Ainda que a jurisdição arbitral seja competente para apurar a existência e o valor de um crédito, com base em cláusula compromissória válida, as consequências desse crédito no processo de insolvência devem ser apreciadas exclusivamente pelo juízo estatal, cuja atuação — distinta da jurisdição arbitral — é voltada à preservação da legalidade da reorganização ou liquidação e à garantia do tratamento isonômico entre credores. Isso porque a lei 11.101/2005 estabelece um regime jurídico específico para o enfrentamento da crise econômico-financeira do devedor empresário, estruturado a partir do princípio da preservação da empresa (art. 475). O modelo legal busca equilibrar os interesses do devedor, dos credores e da coletividade, promovendo, sempre que possível, a reestruturação da atividade empresarial ou, se inviável, a liquidação ordenada de seus ativos por meio da falência. Ocorre que antes de se definir a melhor estratégia para superação da crise (seja por meio da recuperação judicial, extrajudicial ou da falência) é essencial mapear e qualificar adequadamente o passivo da devedora, incluindo eventuais créditos reconhecidos em sede arbitral: em outras palavras, traçar um retrato preciso do passivo da devedora. Somente com um diagnóstico preciso do passivo do agente econômico em crise é que será possível adotar a solução mais compatível com a sua realidade econômico-financeira, viabilizando-se ainda o tratamento coletivo da crise – em oposição a abordagens individuais fragmentada de cada credor, que, ao promoverem uma corrida pelos ativos do devedor, poderiam comprometer o sucesso da reestruturação ou liquidação6.
No caso da recuperação judicial, o juízo exerce função predominantemente supervisora, enquanto os credores deliberam sobre o plano proposto pelo devedor. Já na falência, o foco recai sobre a liquidação do ativo e a observância da ordem de pagamentos. Em ambos os regimes, como exposto, a definição da existência e do valor de créditos oriundos de contratos com cláusula compromissória cabe à jurisdição arbitral — e não ao juízo da insolvência7. Isso decorre da própria natureza da convenção de arbitragem, que produz efeitos imediatos ao afastar a jurisdição estatal e garantir às partes o acesso ao foro privado de solução de disputas. Contudo, há determinados aspectos do crédito arbitral que escapam à jurisdição arbitral e que permanecem sob a jurisdição do juízo da insolvência, como é o caso das matérias diretamente ligadas aos procedimentos coletivos (seja a falência, seja a recuperação judicial), a exemplo da verificação, habilitação e classificação de créditos, bem como o pedido de reserva8.
Essa distinção de competências tem implicações práticas relevantes. O tribunal arbitral não pode, por exemplo, alterar a classificação do crédito, afastar a sua sujeição ao plano de recuperação ou autorizar sua compensação com obrigações da devedora – esta última hipótese foi objeto do recurso especial em comento. O papel da arbitragem é diretamente ligado à constituição do crédito; seus efeitos e consequências no âmbito do procedimento de insolvência empresarial, porém, pertencem exclusivamente à jurisdição estatal.
O caso paradigmático do Recurso Especial n.º 2.163.463/SP
Essa distinção entre os papéis dos juízos arbitral e estatal foi claramente afirmada pela Terceira Turma do STJ quando do recente julgamento do Recurso Especial 2.163.463/SP, que analisou o caso de uma sentença arbitral que havia reconhecido a possibilidade de compensação de créditos entre uma sociedade empresária em recuperação judicial e outra parte contratual.
Na ocasião, o STJ deu provimento ao recurso para declarar a nulidade parcial da sentença arbitral, ao entender que a matéria — compensação de créditos sujeitos à recuperação judicial — não se enquadra no conceito de direito patrimonial disponível e, portanto, não pode ser objeto de análise do juízo arbitral. A Corte destacou que, nesses casos, a compensação deixa de ser uma questão meramente contratual entre duas partes, pois impacta diretamente a ordem de pagamento dos credores e o equilíbrio do processo de recuperação – regras estas, repita-se, de competência exclusiva do juízo da insolvência empresarial. Nesse sentido, o relator do caso, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, destacou que “a organização da forma de pagamento dos créditos sujeitos à recuperação judicial constitui o alicerce do próprio modelo de superação do estado de crise das empresas”, o que é reafirmado em inúmeros dispositivos da lei 11.101/2005, como o art. 6º, ao impor a suspensão das execuções individuais ajuizadas contra a devedora por 180 dias, assim como a proibição de qualquer forma de constrição sobre os bens da devedora oriundas de obrigações submetidas à reestruturação, dentre outros. Destacou que a própria lógica disposta na lei 11.101/2005 está centrada na organização da crise da empresa e sua superação, por meio de regras que garantam o tratamento conjunto das questões que envolvam a disposição de bens, direitos e obrigações diretamente relacionados ao estado de crise e sujeitos aos termos do plano de recuperação judicial. Assim, ao se permitir a compensação decidida em sede arbitral a consequência seria o tratamento privilegiado a um credor específico, em detrimento dos demais, sem qualquer chancela do plano de recuperação. Nas palavras do Ministro Relator:
“(...) afastar do juízo da recuperação judicial a competência para decidir acerca da compensação de crédito sujeito à recuperação judicial permitiria que o juízo da ação individual decidisse acerca de uma forma de exclusão de crédito sujeito à recuperação, em prejuízo dos demais credores concursais, sem qualquer previsão no plano de recuperação judicial.”
Por esses fundamentos, o STJ concluiu que a análise sobre a compensação de créditos sujeitos à recuperação deve ser feita pelo juízo da recuperação, pois se trata de matéria inerente à reestruturação do passivo — tema de natureza indisponível e, por isso, fora do alcance da jurisdição arbitral. A decisão reafirma que tribunais arbitrais não podem interferir na lógica coletiva do processo de insolvência empresarial, tampouco comprometer a isonomia entre credores, cuja preservação é atribuição exclusiva do juízo responsável pelo procedimento de crise; preceito este que também é aplicável não apenas à recuperação judicial, mas também às hipóteses de falência.
O julgado evidencia ainda a importância de manter o diálogo entre o juízo arbitral e o juízo da insolvência, especialmente para evitar decisões contraditórias ou ineficazes. Embora a cláusula compromissória continue a produzir efeitos após o pedido de recuperação judicial, essa eficácia encontra limite nos temas que extrapolam a esfera privada das partes e tocam o interesse coletivo dos credores e da própria função social da empresa em crise. Nesses casos, é fortemente recomendado que haja cooperação entre o juízo arbitral e o estatal, na forma do art. 6º, § 7º-A da LRF.
Em julgado paradigma, a Corte de Cassação Francesa assertou que o princípio de “interdiction des paiements et arrêt de poursuites” (interdição dos pagamentos e suspensão das execuções) em relação ao crédito arbitral, deve ser interpretado da mesma forma engendrada no julgado do STJ em exame, ao recusar o cumprimento de sentença arbitral estrangeira, em face de companhia submetida à “sauvegarde” (salvaguarda)9 em desacordo com os ditames dos pagamentos previstos na legislação de insolvência francesa10.
A arbitragem, nesse contexto, continua a ser uma ferramenta valiosa — desde que seus efeitos não colidam com os princípios estruturantes da recuperação judicial e da falência, tais como o tratamento isonômico dos credores, a preservação da empresa viável e a transparência na composição do passivo.
Considerações finais
A decisão do STJ reforça o entendimento de que a habilitação de crédito arbitral nos processos de insolvência empresarial depende do respeito às regras do direito das empresas em dificuldade, e portanto parece-nos ser muito eficaz a plena cooperação entre as esferas arbitral e judicial. Assim, a arbitragem tem sua função preservada — mas não pode ultrapassar os limites traçados pela lógica coletiva do sistema de insolvência empresarial.
Ao traçar com nitidez as competências de cada esfera e ao reafirmar que a reorganização do passivo não pode ser delegada ao tribunal arbitral, o julgamento do Recurso Especial n.º 2.163.463/SP promove maior segurança jurídica e fortalece a coerência da atuação jurisdicional no contexto da insolvência empresarial.
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1 Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
2 Nesse sentido: “Entendida como negócio jurídico bilateral, a cláusula compromissória tem, essencialmente, dois efeitos, o positivo e o negativo. Tanto o efeito positivo (garantidor da possibilidade de instalar o juízo arbitral) quanto o negativo (o de afastar a competência da jurisdição estatal) são produzidos durante a concepção da clausula arbitral. A cláusula compromissória, portanto, é suficiente para excluir a jurisdição estatal e para estabelecer a arbitral como forma de resolução de conflitos. Por isso, produz todos os efeitos que dela se espera já no momento de sua celebração. Trata-se de contrato ou de pacto perfeito e acabado, com efeitos já realizados por meio da opção pela arbitragem, com o consequente afastamento da jurisdição estatal.” MORAES, Felipe. Arbitragem, falência e recuperação judicial. In: LEVY, Daniel; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (coord.). Curso de Arbitragem. Revista dos Tribunais, 2018, p. 551. No mesmo sentido, CORRÊA, Raphael Nehin. Arbitragem e Insolvência In: MELO, Marcelo (coord.). Arbitragem no Brasil. São Paulo: Impressão Régia, 2010, p. 81-91.
3 STJ; MC n. 14.295 (2008/0122928-4), Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe de 13/06/2008. Sobre o tema, GUIMARÃES, Márcio Souza. Insolvência e Arbitragem. In: PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Pereira; CUEVA, Ricardo Villas Bôas. (Org.). Direito Societário, Recuperação Judicial e Falência na jurisprudência do STJ. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024.
4 Art. 117. Os contratos bilaterais não se resolvem pela falência e podem ser cumpridos pelo administrador judicial se o cumprimento reduzir ou evitar o aumento do passivo da massa falida ou for necessário à manutenção e preservação de seus ativos, mediante autorização do Comitê.
5 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
6 É situação denominada por Thomas H. Jackson como common pool problem JACKSON, Thomas H. The Logic and Limits of Bankruptcy Law. Cambridge: Harvard University Press, 1986, p. 11-12.
7 Assim já tivemos a oportunidade de defender em diversas ocasiões: GUIMARÃES, Márcio Souza. Arbitration and Insolvency. In: CARVALHO, Evandro Menezes de; HU, Li; GUIMARÃES, Márcio Souza (Orgs.). Arbitration and Mediation in Brazil and China. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2023, p. 153-179; GUIMARÃES, Márcio Souza. A arbitragem e o Direito das empresas em dificuldade. Migalhas, Coluna Insolvência em Foco, 30 nov. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 11 mar. 2025.
8 Os arts. 6º, §3º,10, §§4º e 8º e 149, todos da lei 11.101/2005, tratam da possibilidade de reserva de crédito no âmbito dos procedimentos de insolvência.
9 Art. L620-1 do Código Comercial Francês - Il est institué une procédure de sauvegarde ouverte sur demande d'un débiteur mentionné à l'article L. 620-2 qui, sans être en cessation des paiements, justifie de difficultés qu'il n'est pas en mesure de surmonter. Cette procédure est destinée à faciliter la réorganisation de l'entreprise afin de permettre la poursuite de l'activité économique, le maintien de l'emploi et l'apurement du passif. (tradução livre: O processo de salvaguarda é aberto a pedido do devedor mencionado no artigo L. 620-2 que, sem estar em cessação de pagamento, demonstre dificuldades insuperáveis. Esse processo é destinado a facilitar a reorganização da empresa a fim de permitir o prosseguimento da atividade econômica, a manutenção do emprego e apuração do passivo)
10 Cour de cassation, civile, Chambre commerciale, 12 novembre 2020, 19-18.849.