Insolvência em foco

A cláusula de barreira da ordem pública na insolvência transnacional: Elementos para uma interpretação funcional no Direito brasileiro

O artigo explora como a cláusula de ordem pública deve evoluir de barreira rígida a instrumento funcional, permitindo que o Brasil coopere no reconhecimento de insolvências globais sem perder seus valores jurídicos essenciais.

15/7/2025

Este artigo analisa a cláusula de barreira da ordem pública no contexto da insolvência transnacional, com foco na interpretação funcional dessa cláusula à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Parte-se da premissa de que o desenvolvimento da cooperação jurídica internacional em matéria falimentar exige a superação de uma visão restritiva e protecionista da ordem pública, devendo-se privilegiar a preservação da empresa, a segurança jurídica e a boa-fé. O estudo utiliza como referência técnica fundamentos doutrinários e legislativos aplicáveis ao tema, com base na experiência brasileira recente.

  1. Introdução

A globalização das relações econômicas, intensificada a partir da década de 1960, promoveu o crescimento exponencial do comércio internacional e a internacionalização das cadeias de produção. Empresas passaram a operar de maneira integrada em diversos países, com ativos, operações e credores espalhados por diferentes jurisdições. Esse fenômeno trouxe benefícios econômicos relevantes, mas também complexos desafios jurídicos, especialmente no campo do direito da insolvência.

Com o aumento de casos envolvendo grupos empresariais com presença global, tornou-se evidente a ineficiência dos sistemas jurídicos que tratavam os processos de falência e recuperação com base estrita no princípio da territorialidade. Essa abordagem, baseada na lógica de que cada Estado exerce soberania exclusiva sobre os bens e pessoas em seu território, gerava fragmentação, insegurança jurídica e dificuldades na coordenação internacional.

Nesse contexto, emergiram discussões na doutrina internacional sobre a superação do modelo territorialista, com destaque para a teoria do universalismo, que propõe o tratamento unitário da insolvência transnacional sob a liderança de uma jurisdição principal. A evolução desse debate culminou na consolidação da teoria do universalismo mitigado, que busca equilibrar a centralização do processo com o respeito às peculiaridades locais. Essa abordagem foi consagrada na lei modelo da UNCITRAL sobre insolvência transnacional, adotada em 1997, que inspirou reformas legislativas em diversos países, incluindo o Brasil, especialmente com a introdução do capítulo VI-A na lei 11.101/2005.

Nesse cenário, a cláusula de barreira da ordem pública surge como um dos principais elementos de equilíbrio entre a soberania estatal e a cooperação internacional. A sua correta interpretação é fundamental para compatibilizar a soberania estatal com a crescente demanda por cooperação internacional eficaz no tratamento de insolvências com repercussões transfronteiriças.

  1. Conceito e função da cláusula de ordem pública

A cláusula de ordem pública tem como finalidade proteger os valores essenciais do ordenamento jurídico nacional. No Brasil, encontra fundamento no art. 17 da LINDB - lei de introdução às normas do Direito brasileiro e é reiterada na lei 11.101/2005, especialmente após a reforma introduzida pela lei 14.112/20, que instituiu o capítulo VI-A, sobre o reconhecimento de processos estrangeiros de insolvência.

Tradicionalmente, essa cláusula era interpretada de maneira rígida, como uma salvaguarda contra qualquer elemento externo que pudesse comprometer a soberania nacional ou os princípios fundamentais do direito interno. No entanto, a evolução da jurisprudência e da doutrina tem apontado para a necessidade de uma leitura mais funcional e pragmática.

  1. A cláusula de ordem pública na insolvência transnacional

No campo da insolvência transnacional, a cláusula de ordem pública atua como limite ao reconhecimento de decisões estrangeiras. O art. 167-A, § 1º, da lei 11.101/2005 prevê expressamente que o juiz brasileiro poderá negar o reconhecimento de processo estrangeiro se tal reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública.

É consenso na doutrina especializada que a ordem pública, nesse contexto, deve ser interpretada de forma restrita e excepcional, evitando-se o uso da cláusula como barreira automática ou discricionária. O objetivo é evitar o "nacionalismo judicial" que impede a cooperação internacional e compromete a eficiência da jurisdição global.

  1. Elementos para uma interpretação funcional da ordem pública

A interpretação funcional da cláusula de ordem pública deve partir de três premissas fundamentais:

a) A preservação da empresa como vetor interpretativo: conforme o art. 47 da lei 11.101/2005, o objetivo da recuperação judicial é viabilizar a superação da crise econômico-financeira do devedor, com vistas à manutenção da atividade produtiva. Esse princípio deve orientar a recepção de medidas estrangeiras que contribuam para a preservação do grupo econômico, ainda que contrariem aspectos formais do direito nacional.

b) A boa-fé e a segurança jurídica como parâmetros de avaliação: o reconhecimento de processos estrangeiros deve ser condicionado à ausência de fraude ou abuso, sendo compatível com a ordem pública brasileira toda solução que observe os padrões mínimos de Justiça processual e tratamento equitativo entre credores.

c) A confiança mútua entre jurisdições: a adoção do modelo de cooperação internacional previsto na lei 11.101/2005 exige o fortalecimento da confiança entre as jurisdições envolvidas, com base no reconhecimento recíproco das decisões judiciais e da legitimidade dos processos estrangeiros.

  1. Aplicação da cláusula de ordem pública na jurisprudência brasileira

Ainda não existe farta jurisprudência nacional sobre os parâmetros de aplicação da cláusula de barreira da ordem pública, mas já há dezenas de pedidos de reconhecimento de decisões estrangeiras acolhidos pelos Tribunais brasileiros. Cita-se, como exemplo, o primeiro desses casos, da empresa norueguesa PROSAFE, que ajuizou pedido de recuperação judicial em Cingapura, e buscou no Rio de Janeiro o reconhecimento da decisão asiática de proteção de navios da devedora contra credores brasileiros. A decisão foi reconhecida e a proteção foi implementada no Brasil de maneira eficiente. Embora não tenha havido aprofundamento nessa discussão, a razão de decidir da Justiça brasileira foi no sentido de que a cláusula de ordem pública deve ser invocada apenas diante de graves violações aos princípios fundamentais do processo ou à moralidade pública, não bastando a mera divergência de modelos normativos.

  1. Desafios e perspectivas para o reconhecimento de processos estrangeiros

Apesar dos avanços legislativos e jurisprudenciais, ainda persistem desafios à efetivação do modelo cooperativo de insolvência. Entre eles, destacam-se:

Nesse cenário, a adoção de uma interpretação funcional da cláusula de ordem pública mostra-se essencial para que o Brasil se consolide como jurisdição alinhada aos princípios da UNCITRAL e às boas práticas internacionais.

  1. Considerações finais

A cláusula de ordem pública, embora necessária como mecanismo de proteção do núcleo essencial do ordenamento jurídico brasileiro, não deve ser utilizada como pretexto para obstar o reconhecimento de processos estrangeiros de insolvência que observem os princípios da boa-fé, da cooperação e da preservação da empresa. O desenvolvimento de uma hermenêutica funcional, pragmática e alinhada à realidade econômica global é o caminho adequado para o fortalecimento da jurisdição brasileira no cenário internacional da insolvência.

A experiência recente com casos complexos, como o de grandes grupos empresariais em recuperação com ativos e credores em múltiplas jurisdições, oferece oportunidades para consolidar uma prática jurídica mais aberta, previsível e comprometida com os valores estruturantes do Estado de Direito e da economia de mercado.

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Colunistas

Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.