Insolvência em foco

A concursalidade do crédito com garantia fiduciária de terceiro no âmbito da recuperação judicial: Análise crítica sobre o posicionamento adotado pelo STJ

O texto trata da discussão jurídica sobre a classificação dos créditos garantidos por alienação fiduciária prestada por terceiros em processos de recuperação judicial, regulados pela lei 11.101/05 (LRF).

9/9/2025

A lei 11.101/05, reformada pela lei 14.112/20 (“LRF”), tem como eixo central o equilíbrio entre a preservação da atividade econômica e a observância dos direitos dos credores.

Dentre os inúmeros temas que suscitam controvérsias em sua aplicação prática, destaca-se a definição dos créditos sujeitos e não sujeitos aos efeitos do processo de recuperação judicial, especialmente nos casos que envolvem garantias fiduciárias constituídas por terceiros, ou seja, situações em que o bem alienado fiduciariamente não integra o patrimônio da sociedade em recuperação.

Como se sabe, o artigo 49, §3º da LRF exclui da submissão à recuperação judicial o crédito garantido por propriedade fiduciária. Entre os principais argumentos utilizados para afastar a submissão do crédito fiduciário à recuperação judicial destacam-se: (i) o fato de que o bem dado em garantia deixa de integrar o patrimônio do devedor, uma vez que sua propriedade é transferida ao credor fiduciário no momento da constituição da alienação; e (ii) a compreensão de que a sujeição desse crédito ao processo recuperacional enfraqueceria a própria eficácia da garantia, comprometendo a segurança do sistema de crédito, com potenciais impactos negativos na previsibilidade jurídica e no aumento do spread bancário.

Partindo do princípio de que a LRF regula temas relacionados ao acervo patrimonial do devedor, e que, portanto, o §3º do artigo 49 da LRF não diz respeito às garantias prestadas por terceiros, conclui-se pela ausência de vínculo entre o bem objeto da garantia e o devedor fiduciário, de modo que o crédito não poderia ser classificado como extraconcursal, devendo ser tratado como crédito quirografário. No entanto, esse não é o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), e não há entendimento pacificado do Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”) sobre a matéria, ainda que esteja vigente o Enunciado VI das Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP, conforme se verá adiante.

A jurisprudência do STJ e do TJ/SP sobre o tema

O caso paradigmático que trata do tema é o recurso especial nº 1.938.706/SP, julgado em 14 de setembro 2021, em que a Terceira Turma do STJ, por unanimidade, reafirmou o entendimento fixado no Recurso Especial nº 1.549.529/SP (julgado em 28.10.2016) no sentido de que o crédito garantido fiduciariamente por bem de terceiro deve ser classificado como extraconcursal, nos termos do artigo 49, § 3º, da LRF, sendo irrelevante se o bem é de terceiro ou da empresa em recuperação, dado que o dispositivo legal “afasta por completo dos efeitos da recuperação judicial não apenas o bem alienado fiduciariamente, mas o próprio contrato por ele garantido.”

 A justificativa adotada foi a de que o referido dispositivo legal não distingue se o bem dado em garantia pertence à devedora ou a terceiro, sendo seu objetivo principal a proteção do instituto da garantia fiduciária. Tal posicionamento também foi adotado pela Quarta Turma, no Recurso Especial nº 1.875.972/SP (julgado em 2.12.2020) e no Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.806.698/SP (julgado em 4.3.2024), consolidando o entendimento de que o bem de terceiro em garantia fiduciária deve ser excluído dos efeitos da recuperação judicial. No mesmo sentido, o Recurso Especial nº 1.933.995/SP (julgado em 25.11.2021), e o Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.810.708/SP (julgado em 15.5.2023).

Foi com a consolidação desse entendimento que o STJ passou a não conhecer dos recursos1 que buscavam o reconhecimento da concursalidade do crédito garantido por terceiro, aplicando a súmula 568 do STJ, a qual dispõe que “O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema”.

Se por um lado o STJ consolidou o entendimento no sentido de que os créditos garantidos fiduciariamente, mesmo que por bens de propriedade de terceiros, serão extraconcursais, as Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJ/SP, inclusive em julgamentos posteriores à fixação do entendimento do STJ, vêm se posicionando de forma não uníssona sobre o tema.

As Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJ/SP por muito tempo se posicionaram pela concursalidade do crédito garantido fiduciariamente por bem de propriedade de terceiro, tendo inclusive aprovado em 2021 o Enunciado VI que sintetiza o posicionamento do colegiado:  “Inaplicável o disposto no art. 49, § 3º, da lei 11.101/2005, ao crédito com garantia prestada por terceiro, que se submete ao regime recuperacional, sem prejuízo do exercício, pelo credor, de seu direito contra o terceiro garantidor”.

Entretanto, a análise recente dos casos revela a existência de precedentes divergentes a respeito do tema, ora reconhecendo a natureza concursal do crédito2, ora conferindo-lhe natureza extraconcursal3.

Cabe destacar que os precedentes anteriormente proferidos pelo TJSP, antes da consolidação da tese pelo Superior Tribunal de Justiça, continham ressalvas quanto à possibilidade de revisão do entendimento por aquela Corte. Por essa razão, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP preservava a prerrogativa de alterar sua posição, caso verificasse que as decisões do STJ — reconhecendo a extraconcursalidade do crédito garantido por bem de terceiro — estivessem efetivamente consolidadas.

No mais, a fundamentação para não seguir o entendimento pacificado do STJ se justifica no fato de que não se trata de entendimento vinculante, abarcado pelas hipóteses do artigo 927 do Código de Processo Civil (“CPC”). Isso porque os julgados do STJ analisados não são precedentes qualificados, os quais são formados pelo julgamento de casos repetitivos (artigo 928 do CPC) e o de incidente de assunção de competência (artigo 947 do CPC). Diante disso, em São Paulo muitos julgadores têm seguido o disposto no Enunciado VI do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP.

A jurisprudência não é uníssona no TJSP e demonstra uma fragilidade e insegurança jurídica aos credores e devedores, pois ainda que o STJ tenha se posicionado pela extraconcursalidade do crédito mesmo nos casos em que a garantia fiduciária é prestada por terceiro, é possível e recomendável se entender pela concursalidade dos referidos créditos.

Reflexos práticos e críticas ao entendimento adotado pelo STJ

Ao longo dos anos o STJ tem desempenhado papel central na consolidação da jurisprudência em matéria de insolvência empresarial. Mas, quando se trata do crédito garantido por alienação fiduciária prestada por terceiro, a Corte parece ter ultrapassado os limites da lei e da lógica interpretativa.

Como dito acima, o TJSP no passado construiu sólida posição no sentido de que tais créditos devem ser submetidos à recuperação judicial. E a razão é simples: o §3º do art. 49 da LRF foi pensado para proteger o credor que recebeu garantia fiduciária diretamente do devedor em recuperação, e não para criar mais um credor supostamente blindado da recuperação judicial apenas porque o bem alienado fiduciariamente que garante seu crédito pertence a terceiro.

A justificativa do STJ, no sentido de preservar a eficácia da garantia fiduciária e a segurança do sistema de crédito, não se sustenta. Na verdade, o efeito é justamente o inverso. Isso porque o credor originário detentor da garantia deverá primeiro excuti-la e se pagar com o produto da alienação do bem garantido. A consequencia desse pagamento perante o terceiro garantidor é a sub-rogação deste no crédito, e sua habilitação na recuperação com um crédito quirografário (diante da utilização da garantia para pagamento do credor originário). Na prática, essa dinâmica acaba desprotegendo os credores, que se veem tolhidos de qualquer participação na recuperação judicial. Explica-se: na grande maioria das vezes a excussão da garantia fiduciária até a satisfação do credor originário leva mais tempo do que a negociação e votação de um plano de pagamento aos credores em Assembleia Geral. Logo, a tendência é a de que a coletividade dos credores aprove um plano antes que o terceiro garantidor, após se sub-rogar no crédito, possa se apresentar nos autos e exercer seus direitos de voz e voto em assembleia. 

Isso não aconteceria caso os credores originários já fossem classificados como quirografários na recuperação judicial, e exercessem seus direitos na construção de um plano coletivo de pagamento juntamente os com os devedores, num sistema colaborativo sustentado na teria dos jogos. Ainda que posteriormente tal credor excuta a garantia e se pague no curso da recuperação, o terceiro garantidor que pagou o crédito se sub-rogaria num direito de crédito que foi ativamente negociado pelo credor originário (isso sem considerar a possibilidade de o próprio terceiro garantidor já participar diretamente da assembleia no lugar do credor originário, por ser detentor de um crédito existente, ainda que ilíquido, no momento do ajuizamento, mas essa discussão fica para um futuro artigo).

Ou seja, o resultado prático da aplicação desse entendimento do STJ é perverso: representa o total alijamento do credor do esquema recuperacional, e a possibilidade de ser arrastado/dragado pela vontade de uma maioria, sem poder exercer qualquer direito de voz e voto.

Mais grave: o STJ legitima uma interpretação expansiva de exceção legal. Ora, se o legislador não distinguiu expressamente, caberia ao intérprete atuar com cautela, respeitando a teleologia do instituto. Ao inverter essa lógica, a Corte contribui para enfraquecer a função social da recuperação e criar insegurança jurídica no sistema.

O discurso da segurança jurídica, da proteção ao crédito e, especialmente, da salvaguarda do instituto da garantia fiduciária não pode ser utilizado como cortina de fumaça para desvirtuar os objetivos da LRF. A concursalidade deveria ser a regra; a extraconcursalidade, a exceção. Estender privilégios sem previsão normativa é uma hermenêutica perigosa, que mina a própria credibilidade da recuperação judicial.

Para além disso, esse entendimento impacta diretamente os próprios credores fiduciários, que ficam impedidos de participar da votação do plano de recuperação judicial. Isso porque, quando o valor obtido com a excussão do bem não é suficiente para quitar integralmente a dívida, o saldo remanescente deve ser habilitado na recuperação como crédito quirografário4. Ou seja, ao final, esse crédito acaba sendo incluído e reestruturado no processo de recuperação judicial.

Em suma: no tema da concursalidade do crédito fiduciário de terceiro, o STJ precisa rever o passo. Afinal, quando a exceção se transforma em regra, a recuperação judicial deixa de ser instrumento de reestruturação e se converte em palco de privilégios (neste caso, ao contrário do que a aparência inicial sugere, privilégio equivocado ao próprio devedor, já que o credor terá seus direitos de voz e voto tolhidos na recuperação).

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1 Recurso Especial nº 2.146.960/SP (julgado em 9.12.2024) e do Agravo em Recurso Especial nº 2.315.153/SC (julgado em 25.2.2025)

2 (i) Apelação Cível nº 1006421-10.2022.8.26.0554; Relator J.B. Paula Lima; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 15.10.2024;

(ii) Agravo de Instrumento nº 2093218-14.2024.8.26.0000; Relator Rui Cascaldi; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 19.8.2024;

(iii) Agravo de Instrumento nº 2117394-91.2023.8.26.0000; Relator Ricardo Negrão; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 27.7.2023;

(iv) Agravo de Instrumento nº 2289596-45.2021.8.26.0000; Relator Grava Brazil; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 12.4.2022;

(v) Agravo de Instrumento nº 2047161-06.2022.8.26.0000; Relator Cesar Ciampolini Neto; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 15.6.2022;

3 (i) Agravo de Instrumento nº 2359243-25.2024.8.26.0000; Relator Maurício Pessoa; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 10.2.2025;

(ii) Agravo de Instrumento nº 2171628-23.2023.8.26.0000; Relator Natan Zelinschi de Arruda; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 26.9.2023;

(iii) Agravo de Instrumento nº 2081920-59.2023.8.26.0000; Relator Jorge Tosta; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 20.8.2023;

4 Conforme Recurso Especial nº 1.933.995/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25.11.2021.

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Colunistas

Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.