Migalhas Contratuais

Riscos de solidez e segurança na empreitada: Entre o CC/02 e o PL 04/25

A coluna aborda o contrato de empreitada, o art. 618 do CC e o PL 4/25, destacando responsabilidade, prazos de garantia e aplicação ao consumo.

18/8/2025

1. Introdução

Não há dúvidas quanto à importância do contrato de empreitada na construção civil, setor de grande relevância para o PIB nacional. A construção civil figurou como o terceiro setor de maior crescimento no PIB em 2024, ficando atrás apenas de Serviços de Informação e Comunicação (6,2%) e Outras Atividades de Serviços (5,3%), além de ocupar posição destacada na criação de vagas formais de emprego.1

O contrato de empreitada, embora não seja o único, e tampouco se restrinja à construção civil, é, sem dúvidas, um dos principais instrumentos jurídico-econômicos que dão sustentação a essa atividade, sobretudo por se aplicar tanto às relações civis-empresariais (como nos casos em que uma construtora contrata uma empreiteira), quanto às consumeristas (quando um particular contrata um empreiteiro).

O referido contrato é disciplinado pelo CC de 2002, dos arts. 610 a 626. O PL 4/25, que propõe a revisão e atualização do Código, sugere alterações em dois desses dispositivos: o art. 618 e o art. 620. O primeiro deles, o art. 618, trata da responsabilidade do empreiteiro nos contratos de empreitada de “edifícios ou outras construções consideráveis”.

Diante de sua relevância e das controvérsias interpretativas que o cercam, faremos, neste breve estudo, uma análise crítica comparativa entre a norma vigente e aquela proposta pelo PL 4/25.

2. O art. 618 do CC vigente: interpretação e controvérsias

O art. 618 atual possui a seguinte redação:

Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.

Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito.

Não são poucas as controvérsias que cercam a norma. Dentre elas: a) o tipo de construção a que se refere o artigo; b) quais modalidades de empreitada são contempladas pela norma; c) qual a natureza do prazo previsto em seu “caput” e em seu parágrafo único, e se são aplicáveis aos contratos de consumo; d) e que tipo de vício desafia a sua aplicação.

Analisaremos brevemente cada uma destas questões a fim de mapear o estado atual da interpretação do artigo em comento.

2.a. Empreitada de edifícios e construções consideráveis

O legislador de 2002 criou um conceito aberto ao mencionar, após o paradigma “edifícios”, a expressão “outras construções consideráveis”. Mais do que uma referência ao tamanho da construção - seja um grande prédio de apartamentos ou uma casa de oitenta metros quadrados de área construída -, tal expressão serve para afastar construções provisórias, como sustentam Cláudio Luiz Bueno de Godoy2 e Marco Aurélio Bezerra de Melo3.

2.b. Empreitada de materiais e construções

O art. 618 primariamente faz referência às empreitadas mistas, ou seja, aquelas, constantes da segunda parte do “caput”, do art. 6104, em que o empreiteiro fornece a mão-de-obra e o material. Logo, o empreiteiro que  tão somente fornece a mão-de-obra, não estaria sujeito ao prazo de garantia de cinco anos, do “caput”, da norma, como entende a Doutrina dominante.

Embora o art. esteja inserido no Capítulo VIII, que trata exclusivamente do contrato de empreitada, é de se mencionar a possibilidade de sua aplicação ao construtor ou aos contratos de construção. Segundo Cláudio Luiz Bueno de Godoy, ao se referir à “empreitada de edifícios ou outras construções”, o dispositivo visa, sobretudo, delimitar a responsabilidade do construtor, que pode atuar por empreitada, por administração ou por conta própria. Aliás, o autor vai além ao sustentar que:

Seja por empreitada (inclusive a de lavor), como por administração surge uma obrigação de resultado para o construtor, de executar a obra tal como lhe foi encomendada, de forma a garantir a sua solidez.5

No sentido da aplicabilidade ao construtor, há ainda o enunciado 34 da I Jornada de Direito Comercial:

Com exceção da garantia contida no art. 618 do CC, os demais artigos referentes, em especial, ao contrato de empreitada (arts. 610 a 626) aplicar-se-ão somente de forma subsidiária às condições contratuais acordadas pelas partes de contratos complexos de engenharia e construção, tais como EPC, EPC-M e Aliança.

2.c. Natureza dos prazos do art. 618 e sua aplicabilidade ao CDC

Não há dissenso doutrinário ou jurisprudencial relevante quanto à natureza do prazo previsto no caput do art. 618 do CC, o qual configura verdadeira garantia legal. Já o prazo estabelecido no parágrafo único, conforme expressamente indicado, tem natureza decadencial. O termo inicial da garantia legal é a data da entrega da obra; o prazo decadencial, por sua vez, conta-se do surgimento do vício ou defeito.

Assim, segundo a norma vigente, caso o vício estrutural se manifeste dentro do prazo de cinco anos da garantia legal, o prejudicado dispõe de 180 dias, contados a partir da constatação do defeito, para propor a ação cabível, seja com o intuito de redibir o negócio e rejeitar a obra, seja para pleitear sua reparação.

Merece destaque a hipótese de haver pretensão ressarcitória causada pelo defeito estrutural. Neste caso, é tranquila a aplicação do enunciado 181, da  III Jornada de Direito Civil do CJF com a seguinte redação:

O prazo referido no art. 618, parágrafo único, do CC refere-se unicamente à garantia prevista no caput, sem prejuízo de poder o dono da obra, com base no mau cumprimento do contrato de empreitada, demandar perdas e danos.

Quanto aos prazos para o exercício de pretensão ressarcitória, quer  no caso de relações civis/empresariais, ou consumeristas, não há uniformidade na doutrina e jurisprudência. Flávio Tartuce6 e Pablo Stolze/Rodolfo Pamplona7 entendem que o prazo prescricional para as relações civis é de três anos, conforme o art. 206, § 3.º, V, do CC, e de cinco anos, se a relação for de consumo, nos termos do art. 27 do CDC. Marco Aurélio Bezerra de Melo8, porém, considera inaplicável o art. 27, do CDC. Esta posição foi prestigiada pelo STJ, que entendeu pela aplicação da súmula 194 (em interpretação adaptada), com a aplicação do prazo decenal, em contrato consumerista.9

3. A proposta do PL 4/2025: avanços e limites

Pelo PL 04/25, elaborada por uma comissão de notáveis juristas brasileiros, o art. 618 passaria a ter  seguinte redação:

Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras  construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução estará sujeito ao regime dos vícios ocultos, durante o prazo irredutível de cinco anos, respondendo pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.

§ 1º Decairá do direito à garantia assegurada no caput dono de obra que não notificar o empreiteiro, judicial ou extrajudicialmente, no prazo decadencial de cento e oitenta dias, contados do aparecimento do vício.

§ 2º A decadência do direito à garantia legal prevista neste artigo não extingue a pretensão de reparação de danos em face do  empreiteiro, sujeita ao prazo geral previsto neste Código.

3.a. O “caput”, do novo art. 618

A cabeça do artigo manteve a mesma redação inicial, de modo que as questões suscitadas acerca da norma em vigor não foram aclaradas. Para tanto, talvez o dispositivo pudesse mencionar expressamente os contratos de empreitada para construção de imóveis e outras construções não transitórias. Seria igualmente desejável consignar que apenas o empreiteiro nas empreitadas mistas estaria sujeito à garantia legal.

A referência explícita à natureza do prazo também pode ser salutar. O acréscimo da expressão “vícios ocultos”, referentes à solidez e segurança do trabalho - incluindo, como na norma atual, menção aos materiais e ao solo -, já permite identificar tratar-se de garantia legal.

Ainda quanto ao prazo, aplaude-se a sua manutenção em cinco anos, bem como sua irredutibilidade, independentemente do tipo de relação contratual - simétrica ou assimétrica - que se estabeleça. Nesse aspecto, mesmo que o dono da obra tenha maior poderio econômico, a assimetria informacional em favor do empreiteiro justifica a manutenção da garantia como regra de ordem pública. O acréscimo do termo inicial - entrega da obra - poderia ter sido incluído na proposta, embora não haja controvérsia relevante sobre isso, e tal ponto possa ser dessumido da interpretação sistemática (mormente a do art. 615).

Considerando a lógica da própria Comissão Revisora, que, na Parte Geral dos Contratos, fez questão de distinguir os contratos empresariais, civis e de consumo - como se vê, por exemplo, no art. 421-B -, talvez fosse o caso de se inserir no art. 618 alguma referência ao CDC, o que poderá fazer diferença nos dois parágrafos agregados pelo Projeto (infra).

3.b) Notificação do empreiteiro e prazo decadencial (§1º)

O parágrafo ora proposto mantém a previsão do prazo decadencial de 180 dias, cujo termo inicial é o surgimento do vício - que, por sua vez, deve ocorrer dentro do prazo de garantia de cinco anos. A novidade está na exigência de que o dono da obra, dentro desse interregno, notifique o empreiteiro, judicial ou extrajudicialmente.

Como se explicitou no caput da proposta que os vícios estruturais são espécie dos vícios ocultos, há de se entender, com base no art. 542, modificado pelo mesmo PL 04/25, que a notificação visa à exigência de uma das providências ali previstas: I - rejeitar a coisa, resolvendo o contrato, sem prejuízo das perdas e danos; II - reclamar o abatimento no preço; ou III - salvo pacto em contrário, exigir que o vício seja sanado, mediante o custeio dos reparos, salvo se o alienante se dispuser a realizá-los diretamente ou por terceiro.

3.c) Pretensão de reparação de danos em face do empreiteiro (§2º)

A redação deste novo parágrafo é merecedora de aplausos, por explicitar que os direitos de rejeitar a coisa, pedir abatimento ou exigir a reparação são os que estão sujeitos ao prazo decadencial de 180 dias. Já nos casos em que o defeito estrutural atinja a pessoa do dono da obra ou seus outros bens (como um telhado que destrua o seu carro, por exemplo), surgirá uma pretensão ressarcitória, sujeita, como tal, a prazo prescricional, conforme a lógica do CC. Trata-se, nesse caso, da prescrição decenal, prevista no art. 205 do CC, expressamente acolhida na parte final do parágrafo em estudo e já reconhecida pelo STJ.

E se se tratar de relação de consumo? Quer-nos parecer que seria salutar - e possível, pelo diálogo das fontes entre os dois diplomas legais - que se explicitasse que a norma abarca os contratos de empreitada de consumo. Afinal, isso encerraria a discussão sobre a aplicabilidade da norma em comento ou do prazo quinquenal do art. 27 do CDC.

4. Considerações finais

A proposta de alteração do art. 618 do CC, trazida pelo PL 04/25, representa avanço relevante ao esclarecer aspectos importantes da responsabilidade do empreiteiro, sobretudo ao integrar expressamente o regime dos vícios ocultos e ao reconhecer, com clareza, a distinção entre decadência da garantia legal e prescrição da pretensão indenizatória.

Ainda assim, algumas lacunas permanecem, notadamente quanto à delimitação do tipo de empreitada sujeita à garantia, à expressa menção ao marco inicial do prazo e à aplicabilidade da norma às relações de consumo.

Com base nas reflexões desenvolvidas ao longo deste artigo, propõe-se, para reflexão e debate, a seguinte redação alternativa para o art. 618:

Art. 618. Nos contratos de empreitada mista para construção de imóveis ou de outras construções não transitórias, o empreiteiro será responsável, nos termos da presente Seção, pelos vícios ocultos que comprometam a solidez e a segurança da obra, em razão dos materiais, da mão de obra ou do solo, pelo prazo irredutível de cinco anos, contados da entrega da obra.

§ 1º O dono da obra deverá notificar o empreiteiro, judicial ou extrajudicialmente, no prazo de cento e oitenta dias, a contar da constatação do vício, para exercer os direitos previstos no art. 542 deste Código.

§ 2º A decadência do direito à garantia legal prevista neste artigo não impede a pretensão de reparação de danos, sujeita ao prazo prescricional do art. 205, deste Código, independentemente de se tratar de contrato civil, empresarial ou de consumo.

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Referências bibliográficas.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no Agravo em Recurso Especial n.º 1.897.767 – CE. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. Brasília, DF, 25 nov. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 30 jul. 2025.

FEICOM. Entendendo a participação da construção civil no PIB brasileiro. Disponível aqui. Acesso em: 30 jul. 2025.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo Mário Veiga. Novo curso de direito civil – v. 4 – Contratos. 8. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2025.

GODOY, Claudio Luiz Bueno de et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406 de 10.01.2002. Coord. CEZAR PELUSO. 19. ed., rev. e atual. Barueri [SP]: Manole, 2025.

SCHREIBER, Anderson et al. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. 6. ed., rev., atual. e ampl. [3. reimp.]. Rio de Janeiro: Forense, 2025.

TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 20. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2025.

In: FEICOM: Disponível aqui. Acesso em 30/7/2025.

2 GODOY, Claudio Luiz Bueno de et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406 de 10.01.2002. Coord. CEZAR PELUSO. 19. ed., rev. e atual. Barueri [SP]: Manole, 2025, p. 618.

3 SCHREIBER, Anderson et al. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. 6. ed., rev., atual. e ampl. [3. reimp.]. Rio de Janeiro: Forense, 2025.

4 Art. 610. O empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho ou com ele e os materiais.

5 GODOY, Claudio Luiz Bueno de et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406 de 10.01.2002. Coord. CEZAR PELUSO. 19. ed., rev. e atual. Barueri [SP]: Manole, 2025, p. 619.

6 TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 20. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2025., p. 571.

7 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo Mário Veiga. Novo curso de direito civil – v. 4 – Contratos. 8. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 408.

8 SCHREIBER, Anderson et al. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. 6. ed., rev., atual. e ampl. [3. reimp.]. Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 483.

9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no Agravo em Recurso Especial n.º 1.897.767 – CE. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. Brasília, DF, 25 nov. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 30/7/2025.

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Coordenação

Eroulhts Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

José Fernando Simão é professor da USP. Advogado.

Luciana Pedroso Xavier é professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora e Mestre em Direito pela UFPR. Advogada sócia da P.X Advogados.

Marília Pedroso Xavier é professora da graduação e da pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre e graduada em Direito pela UFPR. Coordenadora da Escola Superior de Advocacia da OAB/PR. Diretora do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT. Mediadora. Advogada do PX ADVOGADOS, com especialidade em Famílias, Sucessões e Empresas Familiares.

Maurício Bunazar é mestre, doutor e pós-doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Diretor executivo e fundador do IBDCONT. Professor do programa de mestrado da Escola Paulista de Direito. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do IBMEC-SP.