Migalhas de Responsabilidade Civil

Então agora graduamos a culpa?

A coluna examina como o STF criou regime especial de responsabilidade civil para jornalistas, limitando indenização a casos de dolo ou culpa grave.

23/9/2025

Quem consultar o CC no famoso site do Planalto observará uma curiosa anotação aposta aos dispositivos dos arts. 186 e 9271. Lê-se, ao lado de ambos a referência: “vide ADI 7055” e “vide ADI 6792”. Rememoremos o teor de mencionados dispositivos:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

A anotação causa estranheza, afinal, a constitucionalidade dos dois dispositivos centrais da responsabilidade civil subjetiva (ato ilícito e dever de indenizar) foi desafiada?

A resposta é positiva, ao menos parcialmente.

Consoante acórdão do Plenário do STF, proferido no bojo das ações diretas de inconstitucionalidade acima mencionadas (ADI 7055 e ADI 6792), proferido em maio de 2024 e transitado em julgado em abril deste ano de 2025, não se pode aplicar rigorosamente o comando de mencionados dispositivos a uma determinada categoria profissional e econômica: a dos jornalistas e dos órgãos de imprensa.

Ambas as ADIs em comento versam sobre uma temática de imensa importância: a proteção à liberdade de imprensa diante de reiterados relatos de perseguições a jornalistas por meio do chamado “assédio judicial”.

Entende-se por assédio judicial, na definição da própria Corte Constitucional: “o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa”2. O fenômeno produz um indesejável efeito silenciador sobre a liberdade de expressão e de imprensa, empobrecendo o debate público e prejudicando profissionais e entidades no seu legítimo exercício do direito de informar.

Visando a combater esse fenômeno, dois atores de relevo da sociedade civil organizada levaram a questão ao STF.

A ABRAJI - Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, ajuizou a ADI 7055, que buscava atribuir interpretação conforme à Constituição de dispositivos do CPC e da lei dos juizados Especiais (especificamente os arts. 53, IV, “a”, 55, § 3º, e 69, II e § 2º, VI, do CPC e do art. 4º, III, da lei 9.099/1995). Com o mesmo intuito de combater o assédio judicial, foi ajuizada pela ABI - Associação Brasileira de Imprensa a ADI 6072, que, para além de questões processuais (arts. 53, 79, 80, 81 e 835, caput e § 1º, do CPC), contestou também a interpretação conferida aos arts. 186 e 927 do CC.

As ADIs 7055 e 6072 foram julgadas conjuntamente, tendo sido fixada a seguinte tese:

1. Constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa. 2. Caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio. 3. A responsabilidade civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou de culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos)”.

Sem prejuízo da relevância dos aspectos processuais envoltos na questão, nesse texto me proponho a trazer uma reflexão inicial - ou melhor, uma inquietação - especificamente sobre o impacto do julgamento sobre a sistemática da responsabilidade civil.

O que se observa pela tese fixada é a criação de uma categoria própria de responsabilidade aplicável à atividade jornalística. E mais, essa categoria vale-se de um critério subjetivo que comporta gradação.

Historicamente, o sistema brasileiro de responsabilidade civil aquiliana jamais comportou a gradação do elemento subjetivo para configuração do an debeatur, segundo a máxima in lege aquilia et levissima culpa venit (Ulp. 42 ad Sab., D. 9, 2, 44 pr.). Havendo dolo, culpa grave, simples culpa, culpa leve ou mesmo culpa levíssima do agente, o dever de indenizar seguiria rigorosamente como de direito. É o que se colhe das clássicas lições de Caio Mário da Silva Pereira: “nosso direito desprezou esta gradação da culpa, que não deve influir na determinação da responsabilidade civil”3.

A decisão da ADI 6792 quebra com essa tradição, inaugurando um novo regime de responsabilidade civil, aplicável exclusivamente à atividade de jornalistas e de órgãos de imprensa. Trata-se de um regime subjetivo e privilegiado, em que somente se configura o requisito do nexo de imputação diante da demonstração de dolo ou de culpa grave.

Esse diagnóstico causa uma inquietação, pois a solução de limitar a responsabilização do jornalista e dos órgãos de imprensa às hipóteses de dolo ou de culpa grave em razão de uma maior exposição jurídica desses profissionais e agentes econômicos a um “assédio judicial” parece derivar de uma incompreensão do critério subjetivo de imputação de responsabilidades civil aquiliana vigente no direito brasileiro.

Adota-se, contemporaneamente, o conceito normativo de culpa, que é balizado por standards de conduta, moldado não por um padrão abstrato, mas por considerações concretas extraídas dos códigos e padrões esperados no contexto específico da atividade profissional ou econômica desempenhada pelo autor do dano4. Nessa concepção, não há relevância – e sequer há lógica – na consideração de graus de culpa. Conforme bem explicitam Tepedino, Terra e Guedes:

A classificação, cuja adoção pelo ordenamento brasileiro sempre foi contestada, tornou-se despicienda diante do contemporâneo conceito normativo da culpa. Se a concepção psicológica, contaminada por juízos morais, poderia até suscitar a avaliação do grau de negligência do agente a fim de mensurar a reprovabilidade de sua conduta para, então, sancioná-lo mais ou menos intensamente, o mesmo não se verifica com a noção normativa de culpa5.

Para a concretização desses standards, assumem particular relevância os padrões profissionais codificados por associações e conselhos profissionais6, como é o caso do Global Charter of Ethics for Journalists, muitas vezes citados ao longo dos debates dos ministros na conformação do julgado da ADI 6792 como uma boa métrica de aferição da conduta dos jornalistas.

A menção, no julgado, aos referidos standards, todavia, contrasta com a tese fixada. Isso porque o padrão normativo fixa-se não em graus - que se organizam a partir da proximidade com a conduta esperada de um diligentissimus paterfamilias – mas de acordo com a avaliação do nível de conduta esperada por determinada comunidade, o qual é densificado mediante procedimentos, diligências e cuidados específicos de determinado microcosmo ético, atento às realidades, dificuldades e garantias inerentes a cada profissão ou campo de atividade econômica.

A preocupação externada no julgado é clara: evitar que erros factuais escusáveis cometidos por jornalistas que adotaram um padrão adequado de apuração e checagem levem à sua responsabilização civil. Ocorre que, dentro do padrão objetivo de diligência já presente em uma interpretação contemporânea do art. 186 c/c art. 927 do CC, sem qualquer necessidade adjetivações ao elemento subjetivo, ainda que incorresse em erro, um bom jornalista nada teria a temer em termos de responsabilização .

Ao que me parece, portanto, o adjetivo “grave” aposto pela tese fixada pela ADI 6792 em nada contribui, a não ser - negativamente - para uma quebra sistêmica e para o aumento de indefinição dos limites entre a conduta jornalística lícita e aquela sancionável.

Em que pese a relevância da preocupação em se preservar a liberdade de imprensa das ameaças de assédio judicial, a decisão do STF em comento parte, ao meu ver, de uma incompreensão do critério de negligência aplicável ao regime subjetivo de responsabilidade civil vigente no direito brasileiro, ocasionando uma quebra sistêmica.

Afinal, agora não mais podemos falar que a gradação da culpa é irrelevante para a configuração da responsabilidade civil no direito brasileiro, ao menos não para o caso da responsabilidade civil dos jornalistas e dos órgãos de imprensa.

_______

1 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 04/09/2025.

2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 6792/DF. Rel. Min. Rosa Weber. Rel. p/ Acórdão Min. Luís Roberto Barroso. Julgado em 22/05/2024, Acórdão Publicado em 04/04/2025.

3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Atual. Gustavo Tepedino. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forese, 2022. p. 120.

4 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos de Direito Civil: responsabilidade civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. p. 130.

5 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos de Direito Civil: responsabilidade civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. p. 131.

6 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos de Direito Civil: responsabilidade civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. p. 130.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.