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A notificação eletrônica na mora fiduciária: Ameaça ao direito fundamental à moradia e afronta ao sistema de proteção consumerista

Rodrigo Dantas Azevedo analisa com olhar crítico a decisão do STJ que autorizou a notificação de mora por e-mail, ressaltando que estão em jogo o direito à moradia, a proteção do consumidor e a segurança jurídica.

25/9/2025

Resumo

O presente artigo analisa criticamente a decisão da 2ª seção do STJ no REsp 2.183.860/DF, que validou a notificação de mora por correio eletrônico ao devedor fiduciante. A pesquisa examina os impactos dessa decisão sobre o direito fundamental à moradia, a proteção do consumidor e a segurança jurídica nas relações contratuais imobiliárias. Através de metodologia analítico-descritiva, fundamentada em revisão bibliográfica, análise jurisprudencial e dados estatísticos, demonstra-se que a flexibilização da notificação contraria princípios constitucionais e enfraquece o sistema normativo protetivo estabelecido pelo ordenamento jurídico brasileiro. O estudo conclui pela necessidade de revisão do entendimento jurisprudencial, priorizando a função social do contrato e a dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Notificação eletrônica. Alienação fiduciária. Direito à moradia. Proteção do consumidor. Segurança jurídica.

Sumário: 1. Introdução. 2. O direito fundamental à moradia e a vulnerabilidade do consumidor. 3. A afronta ao sistema normativo protetivo. 4. Estatísticas judiciais e a litigiosidade bancária. 5. Jurisprudência contrária à flexibilização da notificação. 6. Crítica à análise econômica do direito. 7. A contradição com o fortalecimento do sistema registral brasileiro. 8. A convergência com os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU. 9. Propostas de aperfeiçoamento do sistema. 10. Conclusão.

1. Introdução

A revolução digital tem transformado profundamente as relações jurídicas contemporâneas, promovendo maior celeridade e eficiência nos procedimentos judiciais e extrajudiciais. No âmbito do Direito Imobiliário, essa transformação se manifesta através da implementação de sistemas eletrônicos de registro, protocolos digitais e, mais recentemente, na validação de notificações por meio eletrônico.

A decisão da 2ª seção do STJ no REsp 2.183.860/DF, que validou a notificação de mora por correio eletrônico ao devedor fiduciante, representa um marco nessa evolução tecnológica aplicada ao direito. À primeira vista, tal posicionamento sugere um avanço em termos de modernização e celeridade processual, alinhando-se às tendências contemporâneas de digitalização dos serviços públicos e privados.

Contudo, uma análise mais aprofundada revela que tal entendimento pode contrariar princípios constitucionais fundamentais, afrontar dispositivos do CDC e enfraquecer garantias previstas na lei de alienação fiduciária (lei 9.514/97), na lei de incorporação imobiliária (lei 4.591/64), na lei do superendividamento (lei 14.181/21), no marco civil da internet (lei 12.965/14) e no marco legal das garantias (lei 14.711/23).

Mais gravemente, essa decisão apresenta uma contradição sistêmica com a política de fortalecimento do sistema registral brasileiro, implementada através dos recentes provimentos do CNJ, que visam consolidar registradores e tabeliões como agentes fundamentais de segurança jurídica. 

Ademais, a flexibilização da notificação eletrônica pode comprometer os compromissos assumidos pelo Brasil na Agenda 2030 da ONU, especificamente no que se refere ao ODS 16 - Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes.

O presente estudo tem como objetivo analisar criticamente os impactos dessa decisão sobre o direito fundamental à moradia, a proteção do consumidor e a segurança jurídica nas relações contratuais imobiliárias, considerando também sua incompatibilidade com as políticas públicas de fortalecimento institucional e os compromissos internacionais assumidos pelo país. 

Busca-se demonstrar que a flexibilização da notificação, embora aparentemente benéfica sob o prisma da eficiência, pode comprometer direitos fundamentais e criar precedentes prejudiciais ao sistema de proteção consumerista e à coerência das políticas públicas nacionais.

2. O direito fundamental à moradia e a vulnerabilidade do consumidor

A moradia, prevista no art. 6º da CF/88, constitui direito social fundamental, imprescindível à dignidade da pessoa humana. Esse direito não se limita à mera disponibilidade de um teto, mas abrange condições adequadas de habitabilidade, segurança jurídica da posse e proteção contra despejos arbitrários.

A consagração constitucional do direito à moradia reflete o reconhecimento de sua importância para o desenvolvimento humano e social. Segundo Silva (2019), "o direito à moradia adequada é um direito humano fundamental que serve como base para o gozo de todos os outros direitos humanos". Esta perspectiva evidencia que qualquer medida que possa facilitar a perda da moradia deve ser analisada com extrema cautela.

O CDC, no art. 4º, I, reconhece a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, incluindo as dimensões técnica, jurídica, econômica e informacional. No contexto da notificação eletrônica, essa vulnerabilidade se manifesta de forma ainda mais acentuada.

A vulnerabilidade técnica torna-se evidente quando se considera que nem todos os consumidores possuem conhecimentos suficientes para gerenciar adequadamente suas comunicações eletrônicas. Filtros de spam, problemas de conectividade, falta de familiaridade com tecnologias digitais e até mesmo o desconhecimento sobre a importância de verificar regularmente os e-mails são fatores que podem comprometer a efetividade da notificação.

Dados da pesquisa TIC Domicílios 2023, realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, revelam que apenas 81% dos domicílios brasileiros possuíam acesso à internet. Mais preocupante ainda é o fato de que o uso de correio eletrônico permanece restrito e pouco difundido nas camadas menos favorecidas da população. A pesquisa indica que apenas 69% dos usuários de internet no Brasil utilizam correio eletrônico regularmente, sendo que este percentual diminui significativamente nas classes sociais C, D e E. Considerando que o financiamento imobiliário através do SFH - Sistema Financeiro de Habitação é direcionado prioritariamente para famílias de menor renda, a adoção da notificação eletrônica pode criar uma barreira adicional ao acesso efetivo à informação.

Segundo Claudia Lima Marques: "A vulnerabilidade não é apenas técnica ou jurídica, mas também informacional e econômica, devendo o fornecedor adotar condutas que minimizem os riscos ao consumidor" (Contratos no CDC: o novo regime das relações contratuais, 9. ed. São Paulo: RT, 2021).

3. A afronta ao sistema normativo protetivo

O marco civil da internet (lei 12.965/14), reconhecido como a "Constituição da Internet" brasileira, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país. Esta norma é fundamental para a análise da notificação eletrônica, pois aborda questões cruciais relacionadas à proteção de dados e direitos digitais dos usuários.

O art. 8º do marco civil garante o direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações como condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet. Essa disposição é relevante para a discussão sobre notificação eletrônica, pois estabelece que são nulas as cláusulas contratuais que violem esses direitos fundamentais.

Além disso, o marco civil reforça que tudo que está previsto no CDC e seja aplicável às relações de consumo via internet deve ser rigorosamente cumprido. Esta convergência normativa demonstra que a flexibilização da notificação eletrônica deve respeitar os direitos fundamentais estabelecidos no ambiente digital.

A lei 14.711/23, conhecida como marco legal das garantias, representa uma reforma significativa no sistema de garantias brasileiro. Esta norma dispõe sobre o aprimoramento das regras relativas ao tratamento do crédito e das garantias, promovendo a extrajudicialização e o fortalecimento de garantias de devido processo.

O marco legal das garantias amplia as competências de notários e registradores, promovendo o aperfeiçoamento da execução extrajudicial dos créditos com garantias reais. Contudo, é fundamental que essas inovações sejam implementadas com respeito aos direitos fundamentais dos consumidores e às garantias processuais estabelecidas pelo ordenamento jurídico.

A convergência entre o marco legal das garantias e a questão da notificação eletrônica revela a necessidade de equilibrar a modernização dos procedimentos com a proteção adequada dos direitos do consumidor. A desburocratização não pode significar a supressão de garantias essenciais para a proteção do devedor.

A lei 9.514/97, em seu art. 26, §1º, estabelece que o devedor fiduciante seja intimado pessoalmente ou por via postal com aviso de recebimento, garantindo segurança jurídica e efetividade da ciência. Esta disposição não é meramente formal, mas constitui salvaguarda essencial para proteger o mutuário de eventuais abusos.

A exigência de intimação pessoal ou postal com aviso de recebimento visa assegurar que o devedor tenha conhecimento inequívoco da mora e da possibilidade de perda do imóvel. Ao autorizar a substituição do aviso postal por correio eletrônico, retira-se essa formalidade essencial, fragilizando a posição do consumidor na relação contratual.

A lei de incorporação imobiliária (lei 4.591/64) reforça a necessidade de publicidade e formalização nas relações imobiliárias. O art. 43 estabelece que "quando o incorporador contratar a entrega da unidade a prazo e preços certos, determinados ou determináveis, mesmo quando pessoa física, ser-lhe-ão impostas as seguintes normas", incluindo a observância de procedimentos específicos para comunicações com os adquirentes.

A supressão das etapas formais de notificação fragiliza a confiabilidade do sistema registral e afeta diretamente a segurança dos negócios jurídicos. O princípio da publicidade, fundamental no Direito Imobiliário, exige que as informações relevantes sejam disponibilizadas de forma clara, acessível e inequívoca.

A lei 14.181/21, conhecida como lei do superendividamento, representa um avanço significativo na proteção do consumidor endividado. Esta normativa impõe ao fornecedor o dever de adotar medidas efetivas de informação e de negociação prévia, prevenindo situações de inadimplemento e preservando a dignidade do consumidor superendividado.

O art. 54-C do CDC, incluído pela lei do superendividamento, estabelece que "o fornecedor deverá informar, prévia e adequadamente, ao consumidor sobre os riscos da contratação do crédito e sobre as consequências do inadimplemento". Esta disposição evidencia a necessidade de comunicação efetiva e adequada, o que pode ser comprometido pela notificação eletrônica.

Além disso, o referido diploma impõe ao fornecedor o dever de adotar medidas efetivas de informação e de negociação prévia, prevenindo situações de inadimplemento e preservando a dignidade do consumidor superendividado.

A convergência dessas normas evidencia a existência de um sistema protetivo consolidado, que busca harmonizar os interesses dos credores com a proteção dos devedores. Este sistema se fundamenta na premissa de que a informação adequada e tempestiva é essencial para o exercício dos direitos do consumidor.

A flexibilização dos procedimentos de notificação representa uma ruptura com esse arcabouço normativo, comprometendo a eficácia das garantias legais estabelecidas e criando precedentes que podem enfraquecer todo o sistema de proteção ao consumidor no âmbito das relações imobiliárias.

4. Estatísticas judiciais e a litigiosidade bancária

Os dados do relatório "Justiça em Números 2023", elaborado pelo CNJ, revelam um panorama preocupante da litigiosidade no Brasil. As instituições bancárias figuram como os principais litigantes, concentrando aproximadamente 30% das demandas judiciais em tramitação.

Este percentual representa mais de 20 milhões de processos envolvendo instituições financeiras, evidenciando a existência de práticas sistemáticas que geram conflitos com os consumidores. A concentração da litigiosidade em instituições bancárias sugere problemas estruturais na prestação de serviços e na gestão de contratos.

A análise dos dados demonstra que a flexibilização de procedimentos formais tende a gerar maior insegurança jurídica e, consequentemente, maior litigiosidade. A notificação eletrônica, por sua natureza menos formal e mais sujeita a falhas, pode contribuir para o aumento do número de conflitos judiciais.

A experiência internacional corrobora esta preocupação. Estudos realizados nos Estados Unidos indicam que a implementação de sistemas de notificação eletrônica sem salvaguardas adequadas resultou em aumento significativo de execuções imobiliárias irregulares, gerando custos sociais e econômicos substanciais.

Durante a crise das execuções hipotecárias de 2010 nos Estados Unidos, documentou-se que a flexibilização dos procedimentos de notificação contribuiu para problemas sistemáticos no sistema de foreclosure. O GAO - Government Accountability Office reportou em 2011 que problemas na documentação e nos procedimentos de notificação resultaram em execuções irregulares que afetaram milhares de famílias. A tentativa do Congresso americano de resolver questões relacionadas à documentação através da aprovação da H.R. 3808, que forçaria tribunais a reconhecer notarizações eletrônicas e de outros Estados, demonstra a complexidade dos problemas gerados pela digitalização inadequada dos procedimentos.

A análise da experiência americana revela que a CFPB - Consumer Financial Protection Bureau posteriormente implementou regras mais rigorosas para proteger os consumidores, exigindo que os credores forneçam notificações claras e adequadas antes de iniciar procedimentos de execução. Essa experiência demonstra que a flexibilização prematura de procedimentos de notificação pode gerar custos sociais significativos e necessitar de correções legislativas posteriores.

5. Jurisprudência contrária à flexibilização da notificação

A jurisprudência do STJ, antes do julgamento do REsp 2.183.860/DF, vinha reforçando consistentemente a necessidade de notificação formal como requisito essencial para a consolidação da propriedade fiduciária. Esta linha jurisprudencial refletia a compreensão de que a formalidade da notificação constitui garantia fundamental do devedor.

No REsp 1.846.331/SP, o Tribunal reconheceu expressamente que "a notificação pessoal ou por via postal com aviso de recebimento constitui requisito imprescindível para a consolidação da propriedade do imóvel em nome do fiduciário". Este entendimento foi reiterado em diversos outros julgados, criando uma jurisprudência sólida e protetiva.

A decisão que validou a notificação eletrônica representa uma mudança significativa de paradigma, que merece análise cuidadosa. Esta alteração jurisprudencial pode ter implicações profundas para milhares de contratos de financiamento imobiliário em andamento, afetando direitos adquiridos e expectativas legítimas.

A mudança de entendimento jurisprudencial, especialmente em matéria que envolve direitos fundamentais, deve ser fundamentada em razões sólidas e considerar os impactos sociais e econômicos decorrentes. A mera busca por eficiência processual não pode justificar a relativização de garantias constitucionais.

6. Crítica à análise econômica do direito

A fundamentação da decisão baseada na Análise Econômica do Direito, especialmente na redução dos custos de transação, revela uma abordagem que privilegia a eficiência econômica em detrimento da proteção de direitos fundamentais. Esta perspectiva, embora relevante, não pode se sobrepor ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Conforme observa Souza (2022), "a AED deve ser utilizada como ferramenta complementar, jamais como vetor absoluto de decisão, sobretudo quando em jogo direitos fundamentais e interesses difusos". A aplicação irrestrita da lógica econômica pode levar à mercantilização de direitos que deveriam ser protegidos pelo ordenamento jurídico.

A busca pela eficiência econômica deve ser ponderada com outros valores constitucionais, especialmente quando se trata de direitos sociais fundamentais. A redução de custos para as instituições financeiras não pode justificar a redução da proteção oferecida aos consumidores.

A análise econômica do direito, quando aplicada adequadamente, deve considerar não apenas os custos diretos de transação, mas também os custos sociais decorrentes da flexibilização de garantias. Os custos de litígios futuros, da insegurança jurídica e da violação de direitos fundamentais devem ser incluídos na equação econômica.

7. A contradição com o fortalecimento do sistema registral brasileiro

O CNJ tem publicado diversos provimentos que atualizam e modernizam os serviços de tabelionato de notas e registro de imóveis, com efeitos diretos sobre a atuação de registradores e notários. Esses instrumentos normativos visam modernizar os serviços cartorários, mas com foco na manutenção de garantias e formalidades essenciais.

Os provimentos têm estabelecido regras sobre processos extrajudiciais, incluindo busca e apreensão e consolidação de propriedade fiduciária perante o Ofício de Registro de Títulos e Documentos. Essa regulamentação demonstra uma preocupação clara com a manutenção de procedimentos formais e seguros, visando fortalecer o sistema registral como um todo.

A política do CNJ de fortalecimento do sistema registral reconhece o papel fundamental dos registradores e tabeliões como agentes de segurança jurídica. Esses profissionais atuam como intermediários qualificados, garantindo a autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, especialmente no âmbito das relações imobiliárias.

O fortalecimento dessas instituições representa um investimento na criação de um sistema mais robusto e confiável para a proteção dos direitos dos cidadãos. A capacitação técnica e a responsabilidade civil desses profissionais constituem garantias adicionais para a segurança dos negócios jurídicos.

A autorização da notificação eletrônica representa uma contradição flagrante com a política de fortalecimento do sistema registral. Enquanto o CNJ busca consolidar registradores e tabeliões como agentes de segurança jurídica, a decisão do STJ permite que procedimentos essenciais sejam realizados sem essa intermediação qualificada.

Esta contradição compromete a coerência das políticas públicas e enfraquece o sistema registral que está sendo fortalecido através dos provimentos do CNJ. A flexibilização da notificação "bypassa" as instituições registrais e suas garantias formais, contrariando toda a lógica de fortalecimento institucional.

8. A convergência com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU

O Brasil é signatário da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, comprometendo-se com o cumprimento dos 17 ODS - Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Entre esses objetivos, destaca-se o ODS 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes, que estabelece metas específicas para o fortalecimento do sistema de justiça e das instituições.

A Agenda 2030 se transformou na principal referência para a formulação e implementação de políticas públicas para governos ao redor do mundo. O compromisso assumido pelo Brasil exige que todas as políticas e decisões sejam avaliadas quanto à sua compatibilidade com os ODS.

O ODS 16 estabelece como meta "até 2030, fornecer identidade legal para todos, incluindo registro de nascimento", reforçando a importância da função registral como garantidora de direitos fundamentais. Além disso, o objetivo visa "promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas a todos os níveis".

As serventias extrajudiciais atuam em consonância com a Agenda 2030, prestando diversos atos gratuitos como registro e certidão de nascimento, de óbito e de casamento, buscando satisfazer a igualdade de acesso à emissão de documentos essenciais para o exercício da cidadania.

A flexibilização da notificação eletrônica pode comprometer o cumprimento do ODS 16 por várias razões: 1) Compromete o acesso igualitário à justiça: A exclusão digital ainda é uma realidade significativa no Brasil, e a notificação eletrônica pode aprofundar desigualdades existentes; 2) Enfraquece instituições eficazes: A decisão contraria a política de fortalecimento das instituições registrais, que são fundamentais para a construção de um sistema de justiça eficaz; 3) Reduz a inclusão: Ao privilegiar meios digitais, pode-se excluir parcela significativa da população que não tem acesso adequado à tecnologia.

9. Propostas de aperfeiçoamento do sistema

Reconhecendo a inevitabilidade da modernização tecnológica, é possível propor critérios rigorosos para a validação da notificação eletrônica, que conciliem eficiência com proteção dos direitos do consumidor. 

Estes critérios deveriam incluir: a) Confirmação expressa do devedor sobre o recebimento da notificação; b) Utilização de sistemas de entrega certificada com comprovante de leitura; c) Envio simultâneo por múltiplos canais (e-mail, SMS, carta registrada); d) Prazo diferenciado para resposta, considerando as dificuldades de acesso digital; e) Obrigatoriedade de tentativa de contato telefônico antes da consolidação da mora.

Além dos critérios para validação, é fundamental fortalecer os mecanismos de proteção ao consumidor, incluindo:

a) Criação de cadastro nacional de devedores com informações de contato atualizadas; b) Implementação de programas de educação financeira digital; c) Estabelecimento de centrais de atendimento especializadas para esclarecimentos sobre notificações; d) Desenvolvimento de aplicativos móveis e sítios eletrônicos nacionais para acompanhamento dos processos de notificação e consolidação de propriedade fiduciária; e) Criação de mecanismos de mediação obrigatória antes da execução.

Para resolver a contradição identificada, seria necessário:

  1. Integração tecnológica com segurança: Desenvolver sistemas que utilizem a infraestrutura registral existente para validar notificações eletrônicas, mantendo as garantias formais.
  2. Fortalecimento da intermediação registral: Utilizar os cartórios como intermediários certificadores das notificações eletrônicas, aproveitando sua expertise em segurança jurídica.
  3. Alinhamento com os ODS: Assegurar que qualquer modernização tecnológica seja compatível com os compromissos assumidos na Agenda 2030, especialmente no que se refere ao acesso igualitário à justiça.

10. Conclusão

A autorização para constituição de mora por meio eletrônico, ainda que fundamentada na busca por celeridade e redução de custos, representa um retrocesso significativo na proteção dos direitos fundamentais. A análise desenvolvida neste estudo demonstra que tal flexibilização viola princípios constitucionais essenciais e coloca em risco o direito social à moradia.

Ao contrário de fortalecer a segurança jurídica, a notificação eletrônica fragiliza o equilíbrio contratual, amplia a vulnerabilidade do mutuário-consumidor e contraria frontalmente as normas protetivas estabelecidas pelo CDC, pela lei de alienação fiduciária, pela lei de incorporação imobiliária, pela lei do superendividamento, pelo marco civil da internet e pelo marco legal das garantias.

A convergência dessas normas evidencia a existência de um sistema protetivo consolidado, que busca harmonizar os interesses dos credores com a proteção dos devedores. A ruptura com esse arcabouço normativo compromete a eficácia das garantias legais e cria precedentes prejudiciais ao sistema de proteção consumerista.

A contradição com a política de fortalecimento do sistema registral brasileiro representa um aspecto ainda mais grave da questão. Os recentes provimentos do CNJ têm como objetivo consolidar registradores e tabeliões como agentes fundamentais de segurança jurídica, mas a decisão do STJ permite que procedimentos essenciais sejam realizados sem essa intermediação qualificada. Esta incoerência compromete a coerência das políticas públicas e enfraquece o sistema registral que está sendo fortalecido.

A incompatibilidade com os compromissos assumidos na Agenda 2030 da ONU agrava ainda mais a situação. A flexibilização da notificação eletrônica pode comprometer o cumprimento do ODS 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes, especialmente no que se refere ao acesso igualitário à justiça e ao fortalecimento de instituições eficazes. O Brasil, como signatário da Agenda 2030, deve assegurar que todas as políticas e decisões sejam compatíveis com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Os dados estatísticos apresentados reforçam a necessidade de cautela na implementação de mudanças que possam afetar o acesso à justiça e a proteção dos direitos fundamentais. A exclusão digital ainda é uma realidade significativa no Brasil, e a adoção da notificação eletrônica pode aprofundar desigualdades existentes.

A jurisprudência anterior do próprio STJ demonstrava compreensão adequada da importância da formalidade na notificação, reconhecendo-a como requisito essencial para a consolidação da propriedade fiduciária. A mudança de entendimento, embora possa ser justificada pela evolução tecnológica, não pode ignorar os impactos sociais e os riscos para os direitos fundamentais.

A experiência internacional, especialmente a crise das execuções hipotecárias dos Estados Unidos, demonstra que a flexibilização prematura de procedimentos de notificação pode gerar custos sociais significativos e necessitar de correções legislativas posteriores. A implementação de regras mais rigorosas pelo CFPB - Consumer Financial Protection Bureau evidencia a necessidade de equilibrar modernização tecnológica com proteção adequada dos direitos do consumidor.

A aplicação da análise econômica do direito, embora relevante, deve ser ponderada com outros valores constitucionais, especialmente quando se trata de direitos sociais fundamentais. A eficiência econômica não pode ser o único critério para a tomada de decisões judiciais que afetem direitos fundamentais.

Assim, faz-se imperiosa a revisão desse entendimento jurisprudencial, priorizando a função social do contrato, a dignidade da pessoa humana e a harmonização com as políticas públicas de fortalecimento institucional. É necessário desenvolver critérios rigorosos que conciliem a modernização tecnológica com a proteção efetiva dos direitos do consumidor, o fortalecimento do sistema registral e o cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

A proteção do direito à moradia, a manutenção do equilíbrio nas relações contratuais e a coerência das políticas públicas exigem que se preserve a formalidade e a segurança dos procedimentos de notificação. Somente através dessa abordagem equilibrada será possível conciliar o progresso tecnológico com a proteção dos direitos fundamentais, o fortalecimento das instituições e o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, mantendo a confiança no sistema jurídico brasileiro e sua coerência com os compromissos internacionais assumidos pelo país.

Agora nos resta aguardar os novos posicionamentos dos Tribunais, à luz das recentes alterações e reafirmações feitas pela lei 14.711/23.

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JUNIOR, Luiz Antônio Scavone. Direito Imobiliário. Teoria e Prática. 20ª Edição. Editora Forense. 2024.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.