Resumo
O artigo analisa criticamente a figura da cota cabecel, mecanismo criado para centralizar a representação em empreendimentos de multipropriedade, e demonstra como seu uso indiscriminado tem subvertido a democracia condominial, violando princípios constitucionais de representatividade, função social da propriedade e boa-fé contratual. Amparado em doutrina, jurisprudência e casos concretos, o estudo revela que a cota cabecel transformou-se em instrumento de perpetuação do poder dos incorporadores, criando um sistema oligárquico de governança incompatível com o direito de participação dos multiproprietários. Defende-se a necessidade de revisão normativa e judicial do instituto, a adoção de mandatos temporários e maior transparência administrativa para restabelecer a legitimidade e a confiança no mercado de multipropriedade brasileiro.
1. Introdução: A sofisticação da centralização
A cota cabecel, também chamada cota cabeceira, surgiu de práticas negociais que antecederam a lei 13.777/18, quando a multipropriedade foi incorporada ao CC, e passou a ser apresentada como expediente de eficiência administrativa para viabilizar decisões em empreendimentos com muitos coproprietários.
A experiência prática, contudo, revela outro efeito: o mecanismo tem servido para subverter a democracia condominial, concentrando o poder decisório em um único polo, quase sempre o incorporador ou a administradora por ele indicada. Sob o discurso da eficiência, instala-se um arranjo que limita o direito de voz e voto dos multiproprietários e transforma a assembleia em mero rito de convalidação; preserva-se a forma democrática, mas o condomínio passa a operar, na substância, como uma estrutura oligárquica.
2. A origem e o discurso da eficiência
Historicamente, a cota cabecel surgiu da necessidade prática de administrar empreendimentos de uso compartilhado com dezenas ou centenas de coproprietários. Inspirados no timeshare norte-americano e europeu, os incorporadores brasileiros criaram a figura da fração representativa, não comercializada, detida pelo próprio empreendedor e dotada de poderes deliberativos concentrados.1
Esse arranjo foi justificado sob o argumento da eficiência decisória: viabilizar assembleias, garantir quórum e assegurar continuidade administrativa nas fases iniciais do empreendimento.2
Entretanto, a ausência de regulação específica abriu espaço para a criação de verdadeiras monarquias condominiais, nas quais o titular da cota cabecel delibera isoladamente sobre matérias que, pela Constituição e pelo CC, deveriam ser decididas coletivamente.
3. O déficit democrático e a erosão da representatividade
O problema fundamental da cota cabecel é que ela inverte a lógica de legitimidade das decisões condominiais. O condomínio edilício e, por extensão, a multipropriedade, é expressão de um microssistema democrático, baseado na deliberação colegiada e na proporcionalidade da participação.3
Ao suprimir o voto direto dos multiproprietários e concentrá-lo em um único representante imposto pela convenção, a cota cabecel viola o princípio da autoadministração condominial e transforma a assembleia em mera formalidade legitimadora.
O condomínio deveria ser a expressão mais concreta e completa da convivência plural de interesses individuais e, por isso, seu funcionamento deveria refletir a vontade real e participativa de seus membros, nunca a imposição hierárquica e déspota de um deles.
Contrário a isso, a cota cabecel costuma cria uma assimetria de poder incompatível com a natureza do instituto, onde sob a aparência de técnica de gestão, o que se opera é uma verdadeira usurpação do direito político interno dos condôminos: o direito de votar, de discordar e de fiscalizar.
4. Violação da função social da propriedade e da autonomia privada
A CF/88 (art. 5º, XXIII e art. 170, III) impõe à propriedade a função social, exigindo que o exercício do domínio atenda à coletividade e não apenas ao interesse individual. A cota cabecel, ao perpetuar o controle exclusivo de um agente sobre o conjunto, desvirtua a função social da propriedade compartilhada, que exige a participação ativa de todos os cotistas.
O argumento da “autonomia da convenção” é frequentemente invocado pelos defensores da cota cabecel, mas não resiste ao exame da boa-fé objetiva (art. 422, CC) nem à vedação de cláusulas abusivas (arts. 39 e 51, CDC).
Portanto, uma convenção que eterniza o poder de um incorporador, impedindo que os demais multiproprietários deliberem, é formalmente válida, mas nos parece materialmente inconstitucional, por violar o núcleo essencial do direito de propriedade e o princípio da dignidade do contratante. Entendemos que submissão permanente dos multiproprietários à vontade do incorporador fere de morte o princípio da dignidade da pessoa humana. Uma relação desequilibrada, com uma parte se tornando vulnerável e com seus direitos fundamentais esvaziados.
5. A experiência prática: A gestão que cala os coproprietários
A prática revela o efeito mais perverso da cota cabecel: a criação de um condomínio de fachada. Nos empreendimentos em que a figura é mantida indefinidamente, os multiproprietários não são informados sobre quem detém a cota cabecel, tampouco recebem atas completas, balancetes ou prestações de contas.
Em alguns casos, a administradora que controla a cota decide sozinha sobre reformas, taxas, locações e destinação de lucros, sem consulta ou ratificação da assembleia.
A convenção de multipropriedade, muitas vezes, reserva uma fração específica de cada unidade (a “cota cabecel”) ao incorporador, dando a ele o voto daquela unidade nas assembleias. Isso garante controle desproporcional ao empreendedor e fere o princípio democrático condominial. A advogada Márcia Rezeke observa que, quando a representação da unidade fica concentrada nas mãos do incorporador ou grupo econômico, o Judiciário tende a anular essa cláusula, por entender que fere os direitos dos demais coproprietários1.
Em termos concretos, a cota cabecel converte os multiproprietários em acionistas sem voto de uma sociedade travestida de condomínio, o que colide com a própria essência do instituto condominial, fundado na coadministração e na solidariedade de interesses.
A doutrina mais recente tem denunciado os riscos dessa concentração de poder.
Karina Melo Saraiva, em estudo apresentado ao Congresso IBRADIM Centro-Oeste (2025), afirma que “a cota cabecel, quando transformada em poder absoluto do incorporador, rompe o equilíbrio sistêmico entre as funções condominial, hoteleira e de locação”.2
Já Carlos Elias de Oliveira, ao tratar da multipropriedade em Direito Civil Contemporâneo, ressalta que a autonomia privada “não pode ser utilizada como álibi para criar figuras jurídicas que conduzam à exclusão do condômino de seu próprio condomínio”.3
O controle judicial dessas cláusulas inseridas nas convenções de condomínio, portanto, é imperativo. O Judiciário deve reconhecê-las como cláusulas de desequilíbrio estrutural, equivalentes à alienação do poder político condominial, sujeitas à nulidade por ofensa à boa-fé objetiva e à função social do contrato.
A jurisprudência do TJ/RS já sinalizou nessa direção, ao afirmar que a cláusula de representação única “não é nula per se, mas deve ser invalidada sempre que haja conflito de interesses ou falta de transparência”.4
6. A prática revelada: Padrões de abuso em casos concretos
A experiência forense em empreendimentos de multipropriedade revela um padrão recorrente de manipulação da cota cabecel para perpetuação do controle empresarial. Em um caso paradigmático de resort em região turística do Rio Grande do Sul, constatou-se a formação de um complexo grupo econômico onde incorporadora, administradora e empresa de cobrança compartilhavam o mesmo quadro societário, operavam no mesmo endereço e utilizavam canais únicos de comunicação. Mais grave ainda: os multiproprietários sequer conheciam a identidade dos detentores das cotas cabecéis, criando uma "caixa-preta" de poder onde decisões que afetam centenas de famílias são tomadas por figuras anônimas. A assembleia de instalação foi realizada sem convocação válida dos proprietários, impossibilitando a apresentação de outras empresas interessadas na administração e configurando um sistema que confere poder absoluto ao incorporador em detrimento dos demais condôminos.
Em outro caso emblemático, desta vez em polo turístico paulista, a manipulação assumiu contornos ainda mais sofisticados: a incorporadora registrou uma nova convenção de condomínio apenas cinco dias antes da assembleia de instalação, alterando unilateralmente as regras de votação sem qualquer deliberação prévia. A convenção original previa votação proporcional às frações ideais, mas a versão imposta criou o sistema de "cabecéis" com cláusula mandato em favor da administradora, permitindo que esta vote pelos ausentes.
Neste último caso, foram impostas restrições severas: procurações limitadas a apenas cinco cotas por representante, exigência de firma reconhecida e convocações que restringem a participação a determinadas categorias do calendário de uso. O resultado é um sistema onde "devem ser sempre as mesmas pessoas que decidem pelos que são impedidos de comparecer", criando uma oligarquia condominial disfarçada de democracia participativa.
Esses casos demonstram que a cota cabecel, longe de ser um instrumento de eficiência, tornou-se uma sofisticada engenharia de exclusão democrática.
7. Caminhos de reconstrução: Participação e transparência
O desafio, portanto, não está em extinguir a cota cabecel, mas em reconstruí-la sob bases democráticas e transitórias.
Três mecanismos são essenciais:
- Mandatos temporários e revisáveis do titular da cota cabecel, vinculados a fases de implantação e sujeitos à aprovação da assembleia. Efetiva de representante por unidade, com a democratização da representatividade dos multiproprietários;
 - Prestação de contas obrigatória e pública, com acesso digital aos multiproprietários e direito de fiscalização direta;
 - Criação de conselhos de multiproprietários, quando as cotas cabecéis se concentram na mão do incorporador ou administrador, com poder consultivo e deliberativo, garantindo que a gestão não se confunda com propriedade.
 
Entendemos que essas medidas representam um caminho possível de harmonização entre eficiência administrativa e representatividade real.
8. As implicações sistêmicas: Quando o abuso compromete o mercado
O uso abusivo da cota cabecel está gerando uma crise de confiança estrutural no mercado de multipropriedade brasileiro. Quando os consumidores descobrem que seus direitos de participação foram suprimidos por mecanismos ocultos, a reação não se limita ao empreendimento específico, ela contamina toda a percepção do setor. A proliferação de associações de multiproprietários e o aumento exponencial de ações judiciais são sintomas de um mercado que perdeu a credibilidade junto ao seu público-alvo. A médio prazo, isso se traduz em resistência do consumidor a novos investimentos e dificuldade de captação para novos empreendimentos.
Como consequência disso, a perpetuação dessas práticas está provocando uma judicialização em massa do setor. Cada empreendimento com cota cabecel abusiva torna-se um foco potencial de litígio coletivo, gerando custos astronômicos para incorporadores, administradoras e, indiretamente, para todo o sistema. Os custos de defesa judicial, as condenações em danos morais coletivos e as anulações de convenções criam um passivo contingente que compromete a viabilidade econômica dos empreendimentos. Mais grave: a jurisprudência consolidada contra essas práticas criará um efeito dominó, incentivando ações similares em outros empreendimentos.
Nossa percepção é de que empreendimentos com governança viciada tenderão a sofrer desvalorização patrimonial significativa. Investidores institucionais e fundos imobiliários, cada vez mais sofisticados, evitam ativos com passivos jurídicos ou reputacionais. A cota cabecel abusiva cria um "desconto de governança" que reduz o valor de mercado das frações. Além disso, a fuga de investidores qualificados deixa o mercado dependente de consumidores menos informados, criando um ciclo vicioso de deterioração da qualidade dos empreendimentos.
Por conta de muitos empreendimentos de multipropriedade estarem localizados em destinos turísticos estratégicos, a crise de confiança no setor pode afetar a atratividade turística dessas regiões. Consumidores insatisfeitos tornam-se detratores ativos, prejudicando a imagem dos destinos. Cidades como Gramado, Olímpia, Caldas Novas e outras que dependem economicamente do turismo podem sofrer impactos econômicos regionais significativos se o mercado de multipropriedade entrar em colapso reputacional.
Conclusão
A cota cabecel nasceu de um problema de governança, mas degenerou em um problema de legitimidade. O que era para ser instrumento de eficiência tornou-se uma ferramenta de controle; o que era solução transitória converteu-se em perpetuação de poder.
Sob a ótica constitucional, consumerista e civil, a figura carece de limites e de reinterpretação normativa urgente. Enquanto o mercado insistir em reproduzir esse modelo sem controle, a multipropriedade continuará sendo um regime em que muitos são donos, mas poucos mandam. Isto cria um paradoxo que desafia não apenas o Direito Imobiliário, mas a própria ideia de democracia privada.
A longo prazo, o mercado será forçado a se reinventar. Empreendimentos que adotarem modelos de governança transparente, com participação efetiva dos multiproprietários, conselhos consultivos e mandatos temporários para administração, terão vantagem competitiva significativa. A transparência se tornará um diferencial de mercado, não apenas uma obrigação legal. Incorporadores visionários já começam a perceber que a sustentabilidade do negócio depende da construção de relações de confiança duradouras, não da exploração de assimetrias de poder.
O mercado de multipropriedade brasileiro está em uma encruzilhada histórica. Pode continuar no caminho da exploração de consumidores através de mecanismos como a cota cabecel abusiva, arriscando uma crise sistêmica irreversível, ou pode evoluir para um modelo maduro, transparente e sustentável. A escolha não é apenas dos incorporadores, é de todo o ecossistema, incluindo administradoras, órgãos reguladores e o próprio Poder Judiciário. O tempo para correção de rota está se esgotando, e a história de outros países mostra que mercados que não se autorregulam acabam sendo regulados de forma draconiana pelo Estado.
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1 Revista Hotéis – “Vigência da Lei da Multipropriedade é tema de painel ADIT Share 2020”. Revista Hotéis, 26/11/2020. (Debate sobre multipropriedade e cota cabecel, com juristas)
2 SARAIVA, Karina Melo. Gestão de Condomínios em Multipropriedade. Congresso IBRADIM Centro-Oeste, 2025.
3 OLIVEIRA, Carlos Elias de. Multipropriedade e a Função Social da Propriedade Compartilhada. Revista de Direito Civil Contemporâneo, n. 33, 2024.
4 TJRS, Apelação Cível nº 5007393-48.2022.8.21.0101, Rel. Des CARLOS CINI MARCHIONATTI, j. 16 nov. 2023. Disponível aqui.