Migalhas Infância e Juventude

Sob a mira: O aumento da letalidade de crianças e adolescentes

Carla Mangueira analisa o avanço da letalidade policial e revela como o Estado falha na proteção de crianças e adolescentes.

16/4/2025

Dados alarmantes veiculados diariamente nos grandes canais de comunicação nos mostram que a cada dia, mais e mais crianças e adolescentes, são colocadas sob a mira de ações violentas, tanto de quem as deveria proteger quanto de outros agentes.

Não é de hoje que o aumento da violência assombra não somente os grandes centros urbanos, mas também regiões, antes consideradas seguras, levando famílias a tentar se proteger sob os muros de condomínios. 

Muito embora a desigualdade social seja um dos grandes problemas em nossa sociedade, não podemos creditar somente a ela, a crescente na criminalidade e, por consequência, nas mortes violentas de crianças e adolescentes nas cinco regiões do país.

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública1 (2024) mostram que houve cerca de 46.328 mortes violentas intencionais entre os anos 2022 e 2023. 13,8% de todas as mortes violentas intencionais ocorreram em função de intervenções policiais.

Quando reportamos os dados, para mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes, temos que em 2022, foram 2.489 vítimas de 0 a 17 anos, ao passo que em 2023, houve uma leve queda, sendo o número de vítimas, cerca de 2.299 crianças e adolescentes. 

Deste total, cerca de 346, foram mortes ocasionadas por intervenção policial. Estas vítimas, em sua maioria, são meninos, entre 12 e 17 anos, representando cerca de 16,6% do total de mortes violentas. A intervenção policial, segundo indicadores do Anuário, é a causa de cerca de uma a cada sete mortes violentas de adolescentes no país. 

Não obstante, a desigualdade racial em nossa sociedade, evidência que tais mortes afetam desproporcionalmente crianças e adolescentes negros, representando cerca de 70,3% dos casos, número este que aumenta para 85,4% quando nos referimos apenas aos adolescentes, de 12 a 17 anos.

Refletindo sobre o tema, principalmente pela letalidade advinda de agentes públicos de segurança, não podemos deixar de recordar que a Segurança Pública é dever do Estado e é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, conforme preceitua o art.144, da CF/88.

Como bem pontua Santin, Manfré e Nascimento (2018), o direito à segurança está interligado ao princípio da dignidade humana e, por ser um direito inerente a todo cidadão, cabe ao Estado, prover pelo mesmo de forma eficaz, adequada e eficiente.

Ocorre que, pelos dados acima descritos, é notório que o Poder Público acaba, por vezes, respondendo às insatisfações sociais em relação à criminalidade de maneira despreparada, sem nenhum planejamento estratégico capaz de produzir resultados positivos ao longo do tempo, atingindo aqueles a quem deveria proteger.

Este ciclo de despreparo e a crescente na violência, que acontece cotidianamente no país (aqui, abra-se um parêntese e leia-se também, Estados e municípios) entre as forças de segurança pública e os agentes que violam as leis, reflete na sociedade como um todo, pois quanto mais a violência e a criminalidade aumentam, menor é a eficácia do Estado em assegurar aos seus cidadãos os direitos e garantias fundamentais trazidos em seu texto constitucional.

É neste contexto, que recente estudo2 promovido pelo UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância e pelo FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que a não adesão da tropa ao uso dos dispositivos (câmeras corporais) tem contribuído não apenas para o aumento da letalidade policial, inclusive entre crianças e adolescentes, como também para maior exposição dos próprios agentes de segurança a situações de risco. 

Entre os anos de 2022 e 2024, o número de vítimas fatais em intervenções policiais, em relação a crianças e adolescentes, mais que dobrou, passando de 35 casos (2022) para 77 (2024), ou seja, um crescimento de 120%. Considerando o perfil das vítimas, o crescimento da letalidade policial atingiu de forma desproporcional brancos e negros. 

Entre crianças e adolescentes brancos, foi de 0,33 para cada 100 mil, entre os negros, o índice chegou a 1,22%. Ou seja, crianças e adolescentes negros são 3,7 vezes mais vítimas em intervenções letais da PM no Estado (aqui, leia-se São Paulo). 

Em 2024, crianças e adolescentes (10 a 19 anos) representaram 14,9% das vítimas de intervenções policiais e das vitimas fatais, 134 não tinham nenhuma informação sobre a idade no boletim de ocorrência, o que pode nos levar a crer em números superiores aos divulgados. 1 a cada 3 adolescentes assassinados em São Paulo no último ano, foram mortos por policiais militares em serviço.

É válido pontuar que o aumento da letalidade policial foi registrado tanto em batalhões que utilizam câmeras corporais (+175,4%) quanto naqueles que não utilizam (+129,5%). Segundo Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “as recentes mudanças nas políticas de controle de uso de força resultaram no crescimento da letalidade policial, na evidência de que a tecnologia é importante, mas precisa estar associada a outros mecanismos de controle”3

Muito embora, decisões recentes no STF, creditem ao uso das câmeras corporais nas fardas policiais, um mecanismo capaz de persuadir ações ilegais e o uso desmesurado da força, elas não têm sido um inibidor sobre a ação policial, pelo contrário. 

O uso inadequado coloca em xeque, não a câmera em si, mas as condutas dos agentes que, ainda não se veem convencidos quanto a importância do uso destas para assegurar também, a garantia de seus direitos. 

Trata-se de um desafio de governança que está, a cada dia, colocando em risco a integridade física de crianças e adolescentes, desrespeitando os ditames legais que asseguram a proteção integral em todas as circunstâncias de suas vidas em sociedade.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível aqui.

5 SANTIN, V. F. MANFRÉ, Gabriele Delsasso Lavorato; NASCIMENTO, Francis Pignatti do (2018). Segurança pública, serviço público essencial e planejamento para a busca da paz. Revista Paradigma, Ribeirão Preto-SP, a. XXIII, v. 27, n. 3, p.185-206.

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.