Este ensaio investiga a complexa questão da competência jurisdicional para a apreciação e o deferimento de medidas protetivas de urgência, previstas na lei 14.344/22, conhecida como lei Henry Borel. Partindo da consolidação de um microssistema de proteção de pessoas vulneráveis no ordenamento jurídico brasileiro, inaugurado pela lei 11.340/06 (lei Maria da Penha), analisaremos as convergências e, sobretudo, as divergências entre os sistemas de proteção da mulher e da criança e do adolescente vítimas de violência doméstica e familiar. Enquanto a competência na lei Maria da Penha se consolidou na esfera criminal, a multiplicidade de juízos que tratam dos direitos infantojuvenis – varas da infância e da juventude, de família, cíveis e criminais – gera notória controvérsia no âmbito da lei Henry Borel. Afinal, nos casos de violência contra crianças e adolescentes no contexto doméstico e familiar, de quem é a competência para deferir as MPU - medidas protetivas de urgência previstas na lei Henry Borel?
1. Introdução
A violência doméstica e familiar, fenômeno social complexo, endêmico e multifacetado, representa uma das mais graves violações de direitos humanos na sociedade contemporânea (art. 3º da lei 14.344/22). Historicamente invisibilizada e relegada à esfera privada do lar, essa forma de violência vitimiza, de modo desproporcional, sujeitos em condição de especial vulnerabilidade, como mulheres, crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. O ordenamento jurídico brasileiro, por muito tempo, permaneceu inerte e omisso, oferecendo respostas fragmentárias e ineficazes que não apenas falhavam em proteger as vítimas, mas também perpetuavam a impunidade dos agressores.
Este cenário de negligência estatal começou a ser revertido, de forma paradigmática, com a promulgação da lei 11.340, de 7/8/06, a LMP - Lei Maria da Penha. Fruto de intensa mobilização social, a lei inaugurou um novo capítulo no combate à violência de gênero no Brasil. Dentre suas inovações, destaca-se a previsão das MPU - medidas protetivas de urgência, instrumentos de natureza cível e de tutela inibitória, concebidos para cessar ou prevenir a violência, garantindo a segurança e a integridade da mulher.
Contudo, se a proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar encontrou um robusto arcabouço legal, a mesma sorte não coube, de imediato, às crianças e aos adolescentes. Apesar de o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990) consagrar a doutrina da proteção integral, a violência doméstica e familiar contra o público infantojuvenil carecia de um tratamento legislativo específico e sistêmico, análogo ao conferido pela lei Maria da Penha.
A violência contra crianças e adolescentes, embora compartilhe com a violência de gênero o mesmo espaço físico – o lar –, possui dinâmicas distintas, enraizadas não no machismo estrutural, mas em uma cultura adultocêntrica que enxerga a criança como um ser subalterno, passível de correção e disciplina pela força.
Essa lacuna histórica foi finalmente colmatada com a edição da lei 14.344, de 24/5/22, mais conhecida como LHB - Lei Henry Borel, que, em notório espelhamento à sua predecessora, estabeleceu mecanismos de prevenção e enfrentamento à violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, prevendo, igualmente, um rol de medidas protetivas de urgência.
A aparente simplicidade dessa simetria legislativa, contudo, esconde um profundo e complexo desafio de ordem processual: a definição do juízo competente para apreciar e deferir tais medidas. Se na lei Maria da Penha a competência se consolidou em torno dos juizados e das VVD - Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de natureza criminal, a questão se torna um verdadeiro labirinto no âmbito da lei Henry Borel. Isso porque os direitos e as violações de direitos de crianças e adolescentes perpassam múltiplas esferas de jurisdição: as varas da infância e da juventude, com sua competência protetiva e de execução de medidas socioeducativas; as varas de família, que decidem sobre questões como guarda, alimentos, visitas e alienação parental; e as varas criminais, responsáveis pela apuração dos delitos praticados contra crianças e adolescentes.
Diante desse quadro, emerge a tormentosa questão: afinal, quem é o juiz competente para deferir as medidas protetivas da lei Henry Borel?
2. O microssistema de proteção de pessoas vulneráveis: Da lei Maria da Penha à lei Henry Borel
O ordenamento jurídico brasileiro tem evoluído, nas últimas décadas, para a construção de um verdadeiro microssistema jurídico de proteção de pessoas vulneráveis. Trata-se de um conjunto articulado de normas materiais e processuais que, reconhecendo as assimetrias de poder e as vulnerabilidades específicas de determinados grupos sociais, busca oferecer uma tutela jurisdicional mais célere, efetiva e especializada. Conforme assinalou a ministra Laurita Vaz, do STJ, no julgamento do conflito de competência 190.666/MG, esse microssistema visa facilitar o acesso da vítima vulnerável "a uma rápida prestação jurisdicional, que é o principal objetivo perseguido pelas normas processuais especiais" (aqui).
A pedra angular desse microssistema é, sem dúvida, a lei 11.340/06. Sua promulgação não foi um ato de voluntarismo legislativo, mas a resposta tardia do Estado brasileiro a uma vergonhosa inércia histórica. O caso de Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de duas tentativas de feminicídio por seu ex-marido e que viu seu agressor permanecer impune por quase duas décadas, foi levado ao conhecimento da CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em seu relatório 54/01, a CIDH responsabilizou o Brasil por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres, recomendando, entre outras medidas, a adoção de legislação adequada para coibir tal prática.
Para além de definir as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), a lei Maria da Penha previu a criação de estruturas especializadas, como os juizados ou VVD - Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e as DEAM - Delegacias de Atendimento à Mulher. Sua maior inovação, contudo, reside nas medidas protetivas de urgência (arts. 22, 23 e 24). Tais medidas, como o afastamento do agressor do lar ou a proibição de contato, não possuem natureza penal, mas sim de tutela cível inibitória de urgência. Com efeito, “a medida protetiva de urgência deve ser etiquetada como tutela cível de urgência, derivada do direito fundamental de proteção contra a violência, portanto guiada pelo princípio da precaução” (Cunha; Ávila, 2022, p. 131-132). As MPUs visam, primordialmente, proteger a vida e a integridade da vítima, independentemente da instauração de um processo-crime, embora o seu descumprimento, a partir da lei 13.641/18, caracterize o crime previsto no art. 24-A.
Por mais de uma década, esse robusto aparato protetivo foi direcionado exclusivamente às mulheres. A violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, por sua vez, continuava a ser tratada de forma difusa e, por vezes, ineficaz. A sociedade e o sistema de justiça pareciam tardar a reconhecer que o mesmo ambiente doméstico que oprime pela misoginia também pode oprimir pelo menorismo.
Essa lacuna começou a ser preenchida com a lei 13.431/17, que estabeleceu o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, criando mecanismos para prevenir e coibir a violência institucional, a exemplo de procedimentos para a oitiva protegida, como a escuta especializada e o depoimento especial. Foi um passo fundamental, mas a definitiva superação da omissão legislativa no tratamento deficiente da violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes só veio com a promulgação da lei 14.344/22 (lei Henry Borel).
Impulsionada pela comoção nacional decorrente da trágica morte do menino Henry Borel Medeiros, a lei de 2022 espelhou-se deliberadamente na estrutura da lei Maria da Penha, estabelecendo um regime de proteção específico para crianças e adolescentes. A nova lei "aproveita" muitos dos avanços já consolidados no âmbito da proteção à mulher, como se observa na previsão de um rol de medidas protetivas de urgência (art. 21) e na tipificação do crime de descumprimento de tais medidas (art. 25).
Assim, as leis Maria da Penha e Henry Borel, juntamente com o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso (lei 10.741/03) e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15), formam um coeso microssistema de proteção. Elas dialogam entre si, aplicando-se a "teoria dos vasos comunicantes", onde os princípios e as interpretações consolidadas em um diploma podem e devem ser utilizados para iluminar e integrar os demais (Ángeles, 2015), sempre com o fito de maximizar a proteção do vulnerável. É sob essa ótica de diálogo das fontes que a questão da competência na lei Henry Borel deve ser analisada.
3. Naturezas distintas, medidas semelhantes: A violência de gênero e a violência adultocêntrica
Para compreender a questão da competência, é imperativo analisar primeiro a natureza da violência que cada lei visa combater. Embora ambas tratem da violência doméstica e familiar, as suas causas e as dinâmicas subjacentes são distintas, o que influencia a resposta do sistema de justiça.
A violência contra a mulher, no contexto da lei Maria da Penha, é uma violência de gênero. Conforme o art. 5º da lei, ela é baseada "no gênero", manifestando-se como uma expressão da desigualdade histórica e da relação de dominação e poder do homem sobre a mulher. Suas raízes estão no machismo, no sexismo e na misoginia, que permeiam a estrutura social e se manifestam de forma visceral no ambiente privado. O combate a essa violência, portanto, exige uma perspectiva de gênero, que reconheça essas assimetrias e busque o empoderamento da mulher.
Por outro lado, a violência contra a criança e o adolescente, objeto da lei Henry Borel, tem sua origem no que a doutrina contemporânea denomina de adultocentrismo. Trata-se de uma visão de mundo que coloca o adulto como centro, medida e norma, e a criança como um ser periférico, incompleto, imperfeito, incapaz e subalterno (Quapper, 2012). Nessa lógica, a criança não é vista como um sujeito de direitos, mas como um objeto de propriedade e de poder dos adultos, especialmente dos pais. A violência, nesse contexto, muitas vezes é justificada como um método legítimo, difundido e socialmente aceito de "educação", "disciplina" ou "correção". Aliás, a lei 13.010/14, mais conhecida como "lei do menino Bernardo" ou "lei da palmada", que alterou o ECA para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, foi um marco no combate a essa cultura.
A lei Henry Borel, portanto, não se presta ao enfrentamento da violência de gênero, mas sim da violência motivada pelo abuso do poder familiar e da responsabilidade parental, em uma cultura de raiz adultocêntrica (Oliveira, 2022). Evidentemente, porém, que, em se tratando de vítima criança ou adolescente do sexo feminino, é perfeitamente possível a aplicação conjunta e integrada da lei Maria da Penha (proteção contra a violência de gênero) e da lei Henry Borel (proteção contra a violência adultocêntrica).
Apesar dessas naturezas distintas, as ferramentas protetivas previstas nas duas leis são notavelmente semelhantes. O rol de medidas protetivas de urgência do art. 21 da lei Henry Borel é quase uma réplica do previsto nos arts. 22 a 24 da lei Maria da Penha. A bem dizer, de um modo geral, em boa medida, a lei 14.344/22 é quase um “Ctrl+C Ctrl+V” da lei 11.340/06, e essa notória semelhança é especialmente observada na previsão das medidas protetivas de urgência. Ambas preveem o afastamento do agressor do lar, a proibição de aproximação e contato, a restrição de visitas (no caso da LHB), a prestação de alimentos provisionais, entre outras. Essa semelhança instrumental é proposital: as medidas visam, em ambos os casos, o mesmo objetivo fático imediato, qual seja, interromper o ciclo de violência e garantir a segurança da vítima no curto prazo.
Inclusive, destaca Cabette (2022) que o rol de medidas protetivas da lei Henry Borel não é taxativo, sendo aplicáveis as medidas protetivas previstas na lei Maria da Penha (caso não replicadas na lei 14.344/22) independentemente do sexo da vítima. Segundo o autor, a LHB estabelece “uma integração do sistema de medidas protetivas e cautelares em prol da tutela da integridade física e psíquica e da vida das crianças e adolescentes” (Cabette, 2022, p. 22).
Da mesma forma, o crime de descumprimento de medida protetiva é tipificado de forma quase idêntica no art. 25 da LHB e no art. 24-A da LMP. Essa paridade legislativa reforça a ideia de que o tratamento processual e as consequências do descumprimento deveriam ser, em princípio, análogos. Mas as diferenças existentes entre as duas violências – contra as mulheres e contra as crianças e os adolescentes – e os seus reflexos no modo de funcionamento das instituições públicas, notadamente do Poder Judiciário, repercute decisivamente na forma como um pedido de MPU para proteção emergencial de uma criança ou adolescente chega ao sistema de Justiça (a porta de entrada), no procedimento adotado para apreciá-lo e, inclusive, na definição do juiz competente para decidir sobre o pleito.
4. O paradigma da competência na lei Maria da Penha
Quanto à lei Maria da Penha, a definição da competência para apreciar e decidir sobre as medidas protetivas de urgência, após alguns debates iniciais, pacificou-se de forma relativamente tranquila.
O art. 14 da lei determinou a criação, pelos Estados e pelo Distrito Federal, dos juizados e das varas de violência doméstica e familiar contra a mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Apesar da menção à "competência cível", a prática e a jurisprudência consolidaram o entendimento de que a atuação principal desses juizados é na esfera criminal. Nesse sentido, por exemplo, as questões cíveis (como divórcio, partilha, etc.) são, em regra, remetidas ao juízo de família competente, cabendo à VVD, no máximo, a decisão sobre medidas emergenciais e provisórias.
Portanto, a regra de competência para as MPUs da lei Maria da Penha é clara:
- nas comarcas onde houver Juizado ou VVD - Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a competência é desta, com exclusividade;
- nas comarcas onde não houver VVD, a competência é da vara criminal comum;
- onde houver apenas juízo com competência cumulativa, será este o competente para decidir sobre o pedido (havendo mais de um, a competência é decidida por distribuição), no exercício da sua parcela de jurisdição criminal.
Bem postas as coisas, essa clareza decorre do fato de que o sistema de justiça não possuía, antes da LMP, uma vara especializada que tratasse da "condição de mulher" de forma transversal. Foi a lei criou a sua própria estrutura. O desafio da lei Henry Borel é justamente o oposto: ela chega em um cenário onde já existem múltiplas varas que, sob diferentes óticas, lidam com a "condição de criança e adolescente".
5. O labirinto da competência na lei Henry Borel: Desatando os nós
A aparente ausência de um dispositivo na lei Henry Borel que, à semelhança do art. 14 da lei Maria da Penha, defina um juízo único e expresso para as medidas protetivas, lança os operadores do direito em um aparente labirinto. A solução, contudo, não reside na busca por uma competência fixa e exclusiva, como se consolidou na LMP, mas no reconhecimento de uma competência fluida, móvel e compartilhada, que se amolda à natureza da violência e ao contexto fático em que o pedido de proteção é formulado.
Diferentemente da tese que advoga por uma competência invariavelmente criminal, uma análise mais atenta do microssistema de proteção infantojuvenil revela que a jurisdição competente para as MPUs da lei Henry Borel dependerá, fundamentalmente, da existência ou não de um procedimento ou processo criminal instaurado e em curso em razão dos fatos.
5.1. A competência cível e especializada na ausência de persecução penal
Um erro de premissa comum é associar toda violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes a um tipo penal. Nem toda conduta violenta, embora grave e apta a justificar a intervenção protetiva do Estado, é tipificada como crime na legislação. O exemplo mais emblemático é a alienação parental, definida expressamente como forma de violência psicológica pelo art. 4º, II, "b", da lei 13.431/17, mas que não constitui ilícito penal, ante o veto presidencial ao art. 10 da lei 12.318/10. Da mesma forma, o bullying, embora hoje criminalizado pela lei 14.811/24, por muito tempo configurou apenas uma forma de violência psicológica (art. 4º, II, "a", da lei 13.431/17) que demandava proteção sem, contudo, ensejar persecução criminal. Tendo isso em consideração, “certo é que a lei Henry Borel, ao definir a violência doméstica contra crianças e adolescentes, contempla algumas espécies de violações que não atingem a categoria de bem jurídico tutelado pelo direito penal, como muitas situações de violência psicológica sem potencial para a configuração, por exemplo, do crime de tortura, ou a retenção de objetos pessoais” (Bianchini et al., 2022, p. 35).
Nesses casos, desprovidos de repercussão penal, afigura-se ilógico e contraproducente remeter o pedido de proteção a um juízo criminal. A competência, aqui, será definida pela natureza da questão subjacente. Se os atos de alienação parental emergem no curso de uma ação de guarda, o juízo da vara de família é, inegavelmente, o competente para analisar e deferir as medidas protetivas cabíveis (art. 21, IV e V, da lei 14.344/22, por exemplo). Por outro lado, se a violência é constatada no bojo de um processo de destituição do poder familiar, a competência é do juízo da vara da infância e da juventude.
A própria lei Henry Borel sinaliza essa possibilidade. O § 1º do seu art. 25, ao tipificar o crime de descumprimento de MPU, é categórico: "A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu a medida". Como se nota, o legislador previu que um magistrado com competência puramente cível – como o de família ou o da infância e juventude em sua seara protetiva – pode, e deve, deferir as medidas protetivas. Nesse sentido, Cunha e Ávila (2022) destacam que as medidas protetivas de urgência podem ser concedidas independentemente da configuração criminal do ato de violência, independem da existência de processo criminal em curso e não se limitam à jurisdição criminal, podendo ser concedidas por juiz com competência cível.
Portanto, as "portas de entrada" para os pedidos de proteção da lei Henry Borel são múltiplas. Enquanto na lei Maria da Penha o caminho mais comum é a delegacia de polícia e, em seguida, o juizado de violência doméstica, na LHB o pedido pode surgir em contextos diversos:
- Vara da infância e da juventude: Quando a violência ocorre em instituições de acolhimento, no seio de família substituta, durante o estágio de convivência, ou, crucialmente, quando o autor da violência também é criança ou adolescente (enunciado 45 do FONAJUV, enunciado 40 do FONAVID e enunciado 5 da COPEVID). Nestes casos, a competência é da Justiça Infantojuvenil, por excelência.
- Vara de família: Em disputas de guarda, regulamentação de convivência ou em ações de alienação parental, o juiz de família, ao se deparar com a violência, é o competente para aplicar as MPUs.
- Vara do júri: Nos crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados (v.g. homicídio e feminicídio), a competência para deferir as medidas protetivas e para o julgamento é do Tribunal do Júri (enunciado 31 do FONAVID e enunciado 28 da COPEVID).
- Juízo da custódia: Em caso de prisão em flagrante do agressor, o juiz da audiência de custódia possui competência para analisar e deferir as medidas protetivas de urgência, independentemente da competência para o processo (enunciado 38 do FONAVID).
5.2. A primazia (condicionada) do juízo criminal
A competência do juízo criminal, portanto, não é a regra geral e absoluta, mas uma primazia condicionada: ela se estabelece quando a violência praticada contra a criança ou o adolescente ensejar providências na esfera penal, como a instauração de inquérito policial ou o oferecimento de denúncia.
Neste cenário é que se aplica a lógica de especialização que inspira a lei Maria da Penha. Aqui, a bússola normativa do art. 23 da lei 13.431/17 torna-se fundamental. A interpretação sistêmica das leis de proteção impõe uma hierarquia de competência:
- Cenário ideal (vara especializada): Havendo na comarca uma VECA - Vara Especializada em Crimes contra a Criança e o Adolescente, a exemplo das três varas especializadas criadas na Capital de São Paulo, a competência será sua, com absoluta primazia;
- Cenário subsidiário (vara de violência doméstica): Inexistindo a VECA, a competência recai, preferencialmente, sobre o JVDF - Juizado ou Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, conforme o parágrafo único do art. 23 da lei 13.431/17. O legislador, sabiamente, reconheceu a expertise dessas varas para lidar com a complexa dinâmica da violência intrafamiliar; e
- Cenário comum (vara criminal): Na ausência de ambas as varas especializadas, a competência será da vara criminal comum.
5.3. O poder-dever de decisão imediata e a cooperação entre juízos
Independentemente da definição final da competência, um princípio se sobrepõe a qualquer formalismo: a urgência na proteção. Com base no art. 64, § 4º, do CPC, o primeiro magistrado a receber o pedido de medida protetiva – seja ele da Família, da Infância, Cível ou Criminal – tem o poder-dever de apreciar o pleito liminar. A proteção da criança não pode aguardar a resolução de um conflito de competência. A decisão proferida pelo juízo inicialmente acionado, ainda que incompetente, conservará seus efeitos até que o juízo competente a ratifique ou modifique. Nesse sentido, aliás, é o que prevê o enunciado 33 do FONAVID: “A juíza ou o juiz que receber requerimento de medidas cautelares e/ou protetivas poderá apreciá-las e deferi-as antes do encaminhamento ao juízo natural, cabendo a este último ratificar ou não o deferimento após a distribuição e recebimento”. Desatar os nós do labirinto significa, antes de tudo, garantir que a criança saia dele em segurança.
6. Conclusão
O advento da lei Henry Borel, ao consolidar o microssistema de proteção de pessoas vulneráveis, não estabeleceu um caminho único para a tutela jurisdicional, mas uma rede de proteção com múltiplas portas de entrada. A questão da competência para o deferimento de suas medidas protetivas, longe de ser um labirinto insolúvel, revela uma engenhosa e flexível arquitetura processual, que prioriza a proteção efetiva em detrimento de rigores formalistas.
Em resposta à pergunta que intitula este ensaio, conclui-se que a competência para deferir as medidas protetivas de urgência da lei Henry Borel não é fixa, mas móvel e contextual, seguindo as seguintes diretrizes:
- Se a violência não configurar crime ou se, mesmo configurando, não houver sido iniciada a persecução penal, a competência é do juízo cível ou especializado que já detém a causa principal envolvendo a criança ou o adolescente (vara da infância e da juventude, vara de família, etc.). Estes juízos atuam na sua esfera de atribuições, aplicando as MPUs como instrumentos de tutela inibitória cível.
- Apenas quando a violência ensejar a instauração de procedimento ou ação penal é que a competência se deslocará, com primazia, para a esfera criminal, observando-se a seguinte ordem de preferência: a) VECA - Vara Especializada em Crimes contra a Criança e o Adolescente; b) subsidiariamente, a VVD - Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, por força do art. 23 da lei 13.431/17; e c) na ausência de ambos, a vara criminal comum, sem prejuízo das competências específicas do Tribunal do Júri e do Juízo da Custódia.
Acima de qualquer debate, vige o poder-dever de proteção imediata: qualquer magistrado que receba o pedido de socorro deve decidi-lo liminarmente, garantindo a segurança da vítima antes de, se for o caso, remeter os autos ao juízo que entender competente.
A efetivação da lei Henry Borel não depende da criação de uma nova e rígida estrutura, mas da compreensão e da correta aplicação desta lógica de competência compartilhada e cooperativa. Exige que cada juiz, em sua respectiva área de atuação, se reconheça como um guardião imediato dos direitos de crianças e adolescentes, pronto para acionar as ferramentas protetivas sempre que a violência bater à porta do Judiciário, qualquer que seja ela.
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1 ÁNGELES, Jonatán Cruz. Incidência da teoria dos vasos comunicantes na regulação dos chamados “novos modelos de família” no Brasil: uma perspectiva europeia. Revista IBDFAM: Família e Sucessões, v. 11, Belo Horizonte, set./out. 2015, p. 165-180.
2 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia; TEIXEIRA, Tarcila Santos. Crimes contra Crianças e Adolescentes. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022.
3 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Comentários à Lei Henry Borel (Lei 14.344/22): temas relevantes. Leme-SP: Mizuno, 2022.
4 CUNHA, Rogério Sanches; ÁVILA, Thiago Pierobom de. Violência Doméstica e Familiar contra Crianças e Adolescentes - Lei Henry Borel: Comentários à Lei 14.344/22 - Artigo por Artigo. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022.
5 OLIVEIRA, Heitor Moreira de. O enfrentamento à violência doméstica e familiar contra crianças, adolescentes e mulheres é serviço público essencial: comentários à Lei nº 14.022/2020. In: MARCOLLA, Fernanda Analú; RISTOW, Rogério; TRIDAPALLI, Kassia Grisa. Temas de direito criminal: reflexões sobre violência de gênero; v. 2. Porto Alegre: Paixão, 2022. Disponível aqui.
6 QUAPPER, Claudio Duarte. Sociedades Adultocéntricas: sobre sus orígenes y reproducción. Ultima Década, nº36, CIDPA Valparaíso, julio 2012, p. 99-125. Disponível aqui.