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A possibilidade de reconhecimento de paternidade ou maternidade biológico ou socioafetivo diretamente perante o RCPN e a resolução 571/CNJ: Crítica

A filiação, biológica ou socioafetiva, é central no Direito de Família, amparada por princípios constitucionais.

11/12/2024

O reconhecimento da filiação, seja ela biológica ou socioafetiva, é uma questão de extrema relevância no âmbito do Direito de Família e das Sucessões e está alicerçado em princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal), da igualdade entre os filhos (art. 227, § 6º, da Constituição) e do melhor interesse da criança e do adolescente. A legislação infraconstitucional, como o Código Civil, reforça essa visão, especialmente em seus arts. 1.593 (que reconhece as várias formas de parentesco) e 1.607 (que regula o reconhecimento de filhos).

A resolução 571, de 27/8/24, deu nova redação à resolução 35/CNJ, introduzindo diversas alterações significativas no intuito de promover a desjudicialização e garantir maior celeridade em assuntos relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável. Foi, assim, autorizada a extrajudicialização do inventário, mesmo quando as partes sejam pessoas menores ou incapazes, desde que observados os requisitos previstos nos incisos do art. 12-A.

Os requisitos a serem observados são os seguintes: Pagamento do quinhão hereditário do menor ou da meação do incapaz em parte ideal em cada um dos bens inventariados e manifestação favorável do Ministério Público, sendo expressamente vedada a prática de atos de disposição relativos aos bens ou direitos do interessado menor ou incapaz, conforme § 1º do mesmo artigo.

O § 2º do art. 12-A da resolução 35/CNJ, incluído pela resolução 571/CNJ, estabelece que, havendo nascituro do autor da herança, para a lavratura do inventário, deverá ser aguardado o registro de seu nascimento com a indicação da parentalidade, ou a comprovação de não ter nascido com vida. A disposição do § 2º é compreensível, pois a partilha muda a depender de ocorrer ou não o nascimento com vida desse herdeiro. Assim, a resolução 571 bem regulamentou essa questão do nascituro. Por outro lado, não se pode compreender o disposto no art. 12-B, § 1º, da resolução aqui comentada, que traz a vedação do inventário extrajudicial se na certidão do testamento for constatada a existência de disposição reconhecendo filho.

Ora, sabe-se que o reconhecimento de filho no testamento é disposição irrevogável, conforme estabelece a lei 8.560/92, em seu art. 1º, III, e o CC brasileiro, em seu art. 1.609, inciso III. Assim, se constar do testamento válido esse reconhecimento, muito dificilmente deixará de ser considerada essa declaração, pois a anulação do reconhecimento somente será admitida nos casos de existência de vício de consentimento no ato jurídico realizado, o que deverá ser feito judicialmente, na via adequada a este procedimento.

Cabe enfatizar que ambas as modalidades de filiação, biológica e socioafetiva, podem ser objeto de testamento. Havendo no testamento o reconhecimento de filiação, e sendo o testamento válido, o meeiro(a) e sucessores devem aceitar tal fato e proceder à inclusão de mais um herdeiro no inventário. Se todas as partes aceitarem o novo herdeiro, não há razão para ser obrigatória a via judicial. Havendo consenso entre as partes, não se pode conceber da proibição da opção pela via extrajudicial. Seria perfeito que o CNJ tivesse determinado que, antes de prosseguir no inventário, fosse averbado no registro civil o nome do pai ou da mãe, de modo que o reconhecimento do filho esteja refletido no seu registro civil, na mesma lógica estabelecida para o caso do nascituro.

A melhor hipótese ventilada para justificar a redação da norma que veda o inventário quando há reconhecimento de filho no testamento é a de que a resolução 571 desconsiderou o fato de que o reconhecimento de paternidade pode ser feito diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, por isso é importante reforçar que não é necessário mover a máquina judiciária para a averbação da paternidade ou maternidade no registro do filho. No caso de o pai biológico ter falecido, vale o testamento como manifestação de vontade dele, como autorizam a lei 8.560/92 e o Código Civil vigente. Já para o reconhecimento socioafetivo, há previsão expressa da aceitação do testamento como manifestação da vontade do pai ou da mãe no provimento 149/CNJ, em seu art. 507, § 8º.

Assim, necessário se faz a revisão do disposto na resolução 35/CNJ, quanto ao afastamento da via extrajudicial quando houver filho reconhecido no testamento. Enquanto não houver tal revisão, sugere-se que, quando for apresentado ao Juiz o testamento para fins de seu registro, abertura e cumprimento1, seja informado ao Juiz que a averbação da paternidade ou maternidade já foi realizada e seja solicitada a autorização para a lavratura extrajudicial do inventário.

A resolução 35/CNJ, a nova resolução 571/CNJ, bem como outras normas que ampliam as possibilidades de atuação extrajudicial consolidam a tendência à desjudicialização. Contudo, necessário se faz que sejam eliminadas barreiras desnecessárias, haja vista serem os atos notariais e registrais consagrados como instrumentos plenos e legítimos de resolução de questões familiares e patrimoniais.

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1 A autorização judicial é obrigatória em qualquer hipótese de existência de testamento, nos termos dos incisos do art. 12B, da Resolução nº 35/CNJ, na nova redação dada pela Resolução 571/CNJ.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.