Migalhas Notariais e Registrais

Averbação de indisponibilidade de bens – O CNJ prestigia a insegurança jurídica

O registrador Eduardo Pacheco trata do recente provimento sobre o Cadastro Nacional de Indisponibilidade.

16/12/2024

Há determinados temas que são tão claros que sequer exigem fundamentação extensa. O recente provimento do CNJ contém um dispositivo tão absurdo, que merece apenas brevíssimos comentários.

Dispõe o § 3º do art. 320, I, do provimento 188, de 4/12/24:

“A superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário”.

Felizmente o provimento só entrará em vigor 30 dias após a publicação – há tempo, portanto, para corrigir a infeliz disposição.

Dentre os princípios informadores da atividade registral está o da segurança jurídica, que seria a certeza quanto ao ato e sua eficácia, promovendo a libertação dos riscos. 

O princípio está estampado logo no art. 1º da lei 8.935/94. Antes mesmo da edição da lei que regulamentou o art. 236 da CF/88, o princípio já constava, também do art. 1º, da lei 6.015/73.

Segurança jurídica – os serviços registrais e notariais devem assegurá-la, sob pena de não alcançarem sua finalidade, dando margem ao surgimento de inúmeros conflitos de interesses.

Dentre os princípios fundamentais do registro imobiliário, está o princípio da prioridade.

O desrespeito a tal princípio faz cair por terra todo o sistema do registro imobiliário.

Tal princípio “determina a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, sendo eficaz o registro desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro e este o prenotar no protocolo (art. 1.246 do Código Civil e art. 186 da Lei n. 6.015/73) – comporta exceções (arts. 189 e 192 da Lei n. 6.015/73). O princípio da prioridade importa em que os títulos tomarão, no Protocolo, o número de ordem que lhes competir em razão da sequência rigorosa de sua apresentação, e o número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais. O desrespeito ao princípio da prioridade pode fazer ruir toda a segurança do sistema”1.

Ora, o que quer fazer o CNJ? Derrubar a prioridade prevista em lei ordinária, afastar a preferência dos direitos reais, e arruinar a segurança jurídica que o registro imobiliário proporciona. Quem comprar um imóvel com observância de todas as disposições aplicáveis, com diligência extrema, e apresentar o título de imediato ao registro, ainda assim não estará seguro – pode surgir uma ordem de indisponibilidade posterior à prenotação que, nos termos do dispositivo em comento, impedirá o registro!!!!!

O princípio da prioridade, base de todo o registro imobiliário, impõe o registro na estrita ordem de apresentação dos títulos, salvo expressa ordem judicial, específica quanto a determinado título. 

Para evitar intepretações errôneas como a do CNJ, as Corregedorias Estaduais editaram normas específicas (até mesmo desnecessárias, mas com objetivo de esclarecimento).

Dispõe o Tribunal de São Paulo que "quando se tratar de ordem genérica de indisponibilidade de determinado bem imóvel, sem indicação do título que a ordem pretende atingir, não serão sustados os registros dos títulos que já estejam tramitando, porque estes devem ter assegurado o seu direito de prioridade" (Provimento nº 58/89, Cap XX, Seção IV, Subseção II, 108.3).  No mesmo sentido em Minas Gerais: "Provimento Conjunto nº 93/2020, art. 850, § 2º, a ordem ou mandado de indisponibilidade genérica ou específica de determinado imóvel será prenotada e, respeitando-se a respectiva ordem de protocolo, averbada. § 3º Não serão sustados os registros dos títulos que já estejam prenotados, devendo ser assegurada a sua prioridade". O Estado do Rio de Janeiro, em recente alteração do seu Código de Normas, estabeleceu no art. 1.212: “ A ordem ou mandado de indisponibilidade genérica ou específica de determinado imóvel será prenotada e, respeitando-se a respectiva ordem de protocolo, averbada. § 2º. Não serão sustados os registros dos títulos que já estejam prenotados, devendo ser assegurada a sua prioridade.

O CNJ resolveu andar na contramão. 

E o faz com empenho.

Sabedor de que a indisponibilidade é a restrição ao poder de dispor da coisa, impedindo-se sua alienação ou oneração por qualquer forma, “permite” que seja lavrada a escritura2 mesmo diante de ordem de indisponibilidade, sem ponderar se seriam nulos, anuláveis, ou meramente ineficazes os atos de disposição de bens atingidos pela indisponibilidade, ignorando a origem da determinação e seus efeitos, que podem variar. À guisa de regulamentar a CNIB, o CNJ foi muito além. No entanto, permite a lavratura da escritura, mas impede o registro não só de tais escrituras, mas também daquelas lavradas e prenotadas no registro quando não havia ordem de indisponibilidade. Qual a lógica, tendo em conta o sistema de duas etapas na aquisição da propriedade? Para a primeira etapa, a indisponibilidade não é óbice, ainda que decorra da lei e o efeito seja a nulidade do ato de disposição de bens atingidos pela indisponibilidade. Quanto à segunda etapa, a indisponibilidade impede o registro, mesmo a que alcança o protocolo após o ingresso de um título totalmente hígido.

Eu, como registrador de imóveis, profissional do Direito, responsável pela segurança jurídica quanto aos atos que pratico, prefiro estar com o Raul Seixas, não quero mais andar na contramão.

Dito tudo isto, concluo que talvez não fosse preciso tanto: pode o CNJ dispor contra leis Federais, que asseguram o princípio da prioridade e a preferência dos direitos reais (art. 1.246 do CC e art. 186 da lei 6.015/73)?

_________

1 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial. São Paulo: Saraiva, 3ª edição, 2022.

2 Provimento 188, art. 320-F, Parágrafo único. A existência de ordem de indisponibilidade não impede a lavratura de escritura pública, mas obriga que as partes sejam cientificadas, bem como que a circunstância seja consignada no ato notarial.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.