Migalhas Notariais e Registrais

Registro de imóveis e mitologia: De Veyne e Pausânias à Medusa e a qualificação

A qualificação registral imobiliária, como a Medusa, pode petrificar quem a encara; só com teoria e método é possível enfrentar seu poder e avançar.

27/8/2025

A mitologia tem em muito amparado o Direito. Narrativas milenares auxiliam na compreensão de temas até hoje complexos e que permeiam a sociedade em sua totalidade. A partir de Paul Veyne e por uma boa influência dos artigos da série “Crônicas da Lei e do Mito” publicados por Vinicius Quarelli na coluna Diário de Classe da Conjur, pretendo tecer algumas considerações a partir da mitologia para dialogar e desenvolver questões afetas ao Direito Registral Imobiliário, especialmente da qualificação registral.

Paul Veyne e Pausânias: Uma breve genealogia dos mitos

Veyne (1930-2022) foi um historiador francês que apresentou pontos de grande relevância em seu livro chamado “Os gregos acreditavam em seus mitos?” e que me parecem substantivas ao que pretendo aqui articular. Muito do que o autor constrói passa por contribuições da obra de Pausânias, geógrafo grego que escreveu um compilado de livros sobre a descrição da Grécia - cujo nome das obras é exatamente este -, o que é notável, considerando que “a Grécia que Pausânias tinha diante dos olhos mantinha ainda muitos tesouros de que o passo do tempo nos privou”.1

O historiador antigo - como Pausânias - raramente cita suas fontes e, quando as faz, não é pelos mesmos motivos que nós atualmente as citamos. Naquele período, a história2 demonstrava que a credibilidade das narrativas eram chanceladas pelo tempo; as obras dos antigos eram pouco ou nada construídas com citações e mesmo assim a autoridade de seus autores não era questionada. Segundo Veyne, “[n]a maioria das vezes, Pausânias se contenta em dizer: “soube que…”, ou “segundo meus informantes…” e esses informantes ou exegetas eram tanto fontes escritas quanto informações dadas de viva voz por sacerdotes ou eruditos locais”.3

Havia uma presunção de veracidade sobre aquilo que era narrado. Se supunha que a verdade era dita na medida em que aquele que contava a narrativa tinha predecessores, e esses predecessores tinham seus próprios predecessores, até chegar no primeiro deles que seria contemporâneo dos acontecimentos narrados.4 Veyne afirma que na Grécia, a história nasce da investigação - e não da controvérsia - haja vista que era objeto de descrição pelo autor o que foi constatado e dito nos meios geralmente bem informados.5

Aqui, a verdade não se opõe à ficção: esta é um subproduto daquela. Portanto, o mito é uma informação, uma espécie de conhecimento difuso; é uma narrativa anônima que podemos repetir, mas jamais sermos o autor. Comunicamos não o que vimos, mas aquilo que “se dizia” dos deuses e heróis, sempre em um discurso indireto.6

Veyne nos esclarece que não havia dúvida acerca dos mitos, mas também não acreditava-se neles como se acredita nas realidades que nos rodeiam. O autor auxilia nossa compreensão ao dizer que

“[o] tempo e o espaço da mitologia eram secretamente heterogêneos aos nossos; o grego colocava os deuses no “céu”, mas ficaria espantado se os visse no céu; e não ficaria menos espantado se o tomassem ao pé da letra no que diz respeito ao tempo e se lhe dissessem que Hefesto acabara de se casar ou que Atena envelhecera muito nos últimos anos. Ele teria “realizado” que, aos seus olhos, o tempo mítico tem apenas uma vaga analogia com a temporalidade cotidiana, mas também que uma espécie de letargia sempre o impedira de se dar conta dessa heterogeneidade. (...) [D]istinguimos tanto o limite dos séculos dos quais guardamos a lembrança quanto discernimos a linha que delimita o nosso campo visual. (...) As gerações heróicas estavam do outro lado desse horizonte, num outro mundo”.7 (grifo nosso)

Por exemplo, há uma explicação dada por Filocoro (quatro séculos antes de Pausânias) ao mito do Minotauro (o homem com cabeça de touro), demonstrando que sempre existe um núcleo autêntico na narrativa: ele afirmou ter recolhido do povo de Creta, os cretenses, uma tradição segundo a qual as crianças não eram devoradas pelo Minotauro, mas dadas como prêmio aos atletas vencedores de uma competição de ginástica; tal competição havia sido vencida por um homem cruel e muito forte que se chamava Touro.8

Deste modo, é correto dizer que podemos acreditar no mito e na história, mas não no lugar da história e nas mesmas condições que ela. A partir destas concepções, pretendo seguir com a proposta principal deste escrito.

A qualificação registral imobiliária como Medusa

O Direito, por si só e em cada uma de suas áreas de especialização, possui temas espinhosos, sensíveis, em certa medida petrificantes e, por motivos que serão expostos adiante, são relegados para um segundo plano, negligenciados e fadados ao não-enfrentamento.

Se pensarmos nas inúmeras atividades desenvolvidas dentro de uma serventia registral, do balcão de atendimento ao protocolo, da qualificação ao registro, da digitalização a impressão dos atos, todas são igualmente essenciais para o funcionamento do serviço. Ocorre que uma em especial tem o escopo de outorgar ou obstar o registro dos direitos que se pretende inscrever a partir de uma documentação apresentada e demanda um inexorável aprofundamento por parte do delegatário: falo da qualificação registral, que tem sido objeto de um abandono acadêmico.

Neste sentido, a qualificação se caracteriza como fase central do processo de registro de direitos9 e se posiciona, inequivocadamente, como etapa substantiva ao cumprimento das finalidades registrais, bastando ver que é nesta que o registrador exerce uma função interpretativa para com o Direito e, a partir dela, decide pela registrabilidade ou não de determinado título.

É razoável afirmar que, à la Sísifo, sentenciado a empurrar uma rocha monte acima ad infinitum, fomos - e permanece(re)mos - condenados a interpretar; o que não significa dizer, ao contrário do filho do rei Éolo, que estamos destinados ao fracasso no realizar desta empreitada.

Portanto, a questão que macula a interpretação é a seguinte: em um senso comum teórico fortemente estabelecido, tem-se que a decisão jurídica pode(ria) derivar da consciência do intérprete, reproduzindo o brocardo “cada cabeça, uma sentença”. É preciso destacar, entretanto, que a interpretação que perpassa uma decisão - aqui, registral - não advém de questões oriundas da vida privada do intérprete: sua origem e consequência não se relacionam, a priori, com sua vida pessoal. Dito de outro modo, não se trata de escolher o que comer no almoço ou qual roupa vestir.

Há, manifestamente, um compromisso a ser observado em virtude das repercussões que uma decisão jurídica produz, incluindo a decisão do registrador de imóveis (que constitui, declara, modifica e extingue direitos reais), notadamente parâmetros estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito e pela legislação democraticamente construída.

Nesse sentido, para estabelecer uma compreensão do problema, o uso de metáforas, fábulas e narrativas é sempre interessante, em especial pelo cunho pedagógico que irrompe desde a antiguidade. Da mitologia ao cristianismo, todas se utilizam desta ferramenta interpretativa-compreensiva.

À vista disso, neste texto, utilizarei a figura mitológica da Medusa como standard reflexivo para examinar a qualificação registral e enfrentar demandas que exsurgem de uma confusão conceitual - ou até mesmo uma falta de conceito - do seu significado e da finalidade do registro de imóveis.

Muito resumidamente, a Medusa era uma das três Górgonas - junto com  Euríale e Esteno - com serpentes no lugar dos cabelos e dotada do poder de petrificar quem lhe direcionava o olhar. Algumas versões contam que antes de ser transformada neste ser horrível com poder petrificante, era uma bela mulher que recebeu tal trágico castigo após ser estuprada por um deus.10

A pretensão, aqui, é realizar um recorte unicamente a partir do seu poder: petrificar. Com efeito, há a sensação de que, assim como a Medusa, o tema qualificação registral foi castigado pelos deuses e petrifica aqueles que ousam fixar o olhar sobre ele. Tal efeito petrificante se manifesta de duas maneiras: a um, causa uma evasão ao tema, haja vista que se evita estudá-lo intimamente - assim como se esquiva de mirar a Górgona nos olhos; a dois, petrifica-se no sentido de manter uma reprodução do que já foi construído sem qualquer tipo de questionamento, pois impede o (necessário) movimento e desenvolvimento do assunto em questão. Restar silente frente a qualquer tema é condená-lo à paralisia e ao sempre-foi-assim-então-assim-continuará-sendo.

A resposta, ao que tudo indica, também é apresentada neste mesmo mito. Muito brevemente, Perseu derrotou Medusa com apetrechos fornecidos pelos deuses; destes, o que prestou maior auxílio à sua vitória foi, sem sombra de dúvidas, o escudo dado pela deusa Atena que, através de seu reflexo, permitia que o herói encarasse a górgona sem que sofresse as consequências de costume.

Assim, são fornecidos critérios interessantes para enfrentar a qualificação registral, superando alguns de seus predadores - especialmente o elemento discricionariedade. O que seria, então, o equivalente registral para o escudo de Perseu? A resposta não parece ser outra: uma teoria da decisão que proveja condições de possibilidade a uma atuação não-discricionária por parte do registrador.

Como abordei em outras oportunidades, precisamos estudar a THQ - Teoria Hermenêutica da Qualificação.11 Do mesmo modo que o diferencial na batalha contra a Medusa foi estar munido de recursos que ofereceram a superação da górgona pois limitavam o alcance do seu poder, a THQ se torna condição de possibilidade para o semelhante triunfo em sede de qualificação registral, por enfrentar a controvérsia a partir de paradigmas hermenêuticos e oferecer uma nova roupagem à problemática.12

A maior inquietação proposta pela THQ, de autoria do tabelião de protestos Jéverson Luís Bottega, é estabelecer critérios interpretativos para enfrentar a chamada discricionariedade decisória, que se manifesta a partir da atribuição de decidir acerca da registrabilidade dos títulos que é própria da função do registrador de imóveis.

Para construir a tese, Bottega estabelece os seguintes cânones que formam o arcabouço teórico da teoria hermenêutica proposta: (i) a preservação da autonomia do Direito, (ii) a superação da discricionariedade, (iii) o respeito à coerência e à integridade do Direito, (iv) o dever fundamental de justificar as decisões e (v) o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada.  Deste modo, nasce uma forte teoria da decisão.

A intenção deste breve ensaio é que, em alguma medida, possamos estudar de maneira mais ou menos crítica toda a base do pensamento registral, especialmente a qualificação registral imobiliária, apoiado no novo paradigma que é apresentado por uma teoria hermenêutica que busca revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição; é um convite para a reflexão.

Talvez seja inconveniente dizer que a independência jurídica dos registradores não é sinônimo de interpretações irrestritas. Pode ser, inclusive acredito, incômodo abordar o poder de decisão - jamais poder de escolha - exatamente por aqueles detentores de tal autoridade. Não podemos ignorar o elefante na sala pelo simples fato de que, quando chegamos, ele já estava ali; não sejamos refém do velho habitus que rotiniza o agir jurídico e o transforma no conceito heideggeriano de “tranquilidade tentadora” - que já tratei em outra oportunidade nesta coluna. Neste lugar de suspensão dos pré-juízos, estar refém da cotidianidade não se apresenta sequer como problema, pois se torna impossível confrontá-los com o horizonte crítico.13

Precisamos abrir um espaço de debates críticos no direito registral, para que não trabalhemos a partir de uma forma de “mito do dado”. A crítica, enquanto análise séria, profunda e técnica dos termos e conceitos expostos e que elenca as qualidades e fraquezas de determinada tese, é o que permite o avanço e desenvolvimento que o direito registral espera dos seus operadores. 

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1 SILVA, Maria de Fátima de Sousa e. Pausânias: descrição da Grécia, Livro I (Classica digitalia, Textos Gregos) Imprensa da Universidade de Coimbra. Portugal, 2022.

2 A história, aqui, recebia outro significado: era, em alguma medida, uma forma arcaica do nosso jornalismo. Hoje, nas universidades, não se escreve para simples leitores, mas para outros historiadores ou pares. Não era esse o caso na Antiguidade.

3 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, pp 20-21

4 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p.23

5 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 26

6 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, pp. 45,46

7 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 37

8 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 32

9 Veja-se que apesar do nome Registro de Imóveis, registram-se direitos sobre imóveis e não os imóveis em si.

10 QUARELLI, Vinicius. Crônicas da Lei e do Mito: a Medusa e o horror dogmático. Disponível aqui. Acesso em 20/7/25.

11 SCHNEIDER, Rodrigo da Silva. Discricionariedade registral: Por um confronto com as armas da hermenêutica bottegiana. Disponível aqui. Acesso em 11/7/25

12 Para um aprofundamento na THQ, ver BOTTEGA, Jéverson Luís. Qualificação registral imobiliária à luz da crítica hermenêutica do direito: equanimidade e segurança jurídica no registro de imóveis. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2021. p. 186.

13 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Ed. - Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Casa do Direito, 2020. p. 409.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.