Migalhas Notariais e Registrais

Notarialidade digital: Um conceito em construção

O tabelião Andrey Guimarães trata do notariado e o mundo digital.

24/9/2025

A transposição da fé pública para o ambiente eletrônico

A transformação digital representa um marco civilizatório, comparável à invenção da imprensa ou à revolução industrial, pelo impacto que exerce sobre as formas de comunicação, de produção e de organização social. O Direito, como sistema de ordenação da vida coletiva, não pode ignorar os riscos que emergem dessa nova realidade. Se por um lado a tecnologia democratizou o acesso à informação e ampliou exponencialmente a capacidade de realização de negócios jurídicos, por outro lado trouxe consigo um efeito colateral que se manifesta na amplificação dos riscos e na propagação quase incontrolável dos danos.

O mundo digital não conhece fronteiras físicas, tampouco limites de tempo e espaço. Uma fraude, uma manipulação de identidade ou a circulação de uma informação falsa não permanecem circunscritas a um grupo delimitado de pessoas, mas rapidamente se expandem, alcançando milhões em questão de segundos. É o que se pode denominar de lógica da exponencialidade dos danos: aquilo que em contexto analógico seria episódico e contido, no ambiente virtual se multiplica em progressão geométrica, gerando consequências assimétricas entre a causa e o efeito.

É nesse ambiente de riscos multiplicados que surge a pertinência de se falar em notarialidade digital. O conceito designa a transposição dos princípios estruturantes da atividade notarial, fé pública, autenticidade, formalização e prevenção de litígios, para o ciberespaço. Se trata de imaginar a atividade dos cartórios de notas adaptados para atuar em plataformas eletrônicas, compreendendo que os valores essenciais que sempre fundamentaram a função notarial precisam encontrar meios de expressão também no mundo digital. O notário, historicamente, desempenhou o papel de garantidor da confiança, assegurando que os atos jurídicos praticados perante si fossem dotados de autenticidade e eficácia, prevenindo conflitos futuros. O mesmo raciocínio deve orientar a construção de ferramentas digitais: em vez de apenas digitalizar documentos ou assinar arquivos eletronicamente, é necessário conferir a esses atos um regime de segurança institucionalizado, capaz de gerar a mesma confiança social que sempre caracterizou a fé pública.

No Brasil, esse processo se concretizou de forma pioneira com o provimento 100 do CNJ, editado em 2020, que instituiu a prática de atos notariais eletrônicos e criou a plataforma e-Notariado. Esse marco normativo disciplinou a emissão de certificados digitais notarizados, a realização de videoconferências para a coleta de manifestações de vontade e a criação da matrícula notarial eletrônica, assegurando que cada ato praticado digitalmente estivesse vinculado a um notário investido de fé pública. Posteriormente, o provimento 149 de 2023 consolidou a matéria, integrando-a ao quadro geral de normas aplicáveis ao serviço extrajudicial. A disciplina brasileira acompanha tendência internacional, como se vê na União Europeia, com o Regulamento eIDAS de 2014 e sua reforma em 2024, conhecida como eIDAS 2.0, que estabeleceu padrões comuns para identificação digital, assinaturas eletrônicas qualificadas e carteiras digitais interoperáveis. Em todos esses exemplos, nota-se o esforço por criar sistemas de confiança que deem ao ambiente virtual a mesma segurança que a sociedade sempre exigiu das relações presenciais.

Os fundamentos da notarialidade digital podem ser resumidos em quatro grandes eixos: a autenticação eletrônica da identidade, que impede a usurpação da vontade alheia; a instrumentalização dos atos notariais em meio eletrônico, garantindo sua validade jurídica; a conservação digital com fé pública, assegurando a perenidade e a integridade dos documentos; e a função preventiva aplicada ao espaço virtual, reduzindo a litigiosidade e conferindo certeza às relações jurídicas digitais. Esses eixos demonstram que a notarialidade digital não é uma abstração, mas um paradigma em construção, com aplicação concreta na vida social.

A relevância desse modelo torna-se mais evidente quando se analisam episódios de vulnerabilidade institucional. A fraude recente no Instituto Nacional do Seguro Social, que vitimou milhões de aposentados e pensionistas entre 2019 e 2024, ilustra de forma dramática a ausência de protocolos adequados de consentimento digital. Nesse caso, entidades associativas lançaram descontos indevidos na folha previdenciária sem que houvesse anuência expressa e autenticada dos beneficiários. A operação se sustentou justamente porque o sistema permitia o registro automático de contribuições sem validação segura da manifestação de vontade. O resultado foi um prejuízo estimado em bilhões de reais, que só veio à tona quando o volume de reclamações tornou insustentável a fraude. Se houvesse mecanismos equivalentes à formalização notarial, registros eletrônicos de consentimento, certificados digitais qualificados, autenticação por fé pública, a fraude teria sido significativamente dificultada ou mesmo inviabilizada.

É certo que a proposta de notarialidade digital pode receber críticas. Alguns podem argumentar que já existem tecnologias capazes de assegurar segurança no ambiente eletrônico, como blockchain, criptografia de ponta e autenticação multifatorial. Outros podem sustentar que a formalização notarial encarece as transações e compromete a agilidade digital. Há ainda quem veja nesse movimento uma tentativa de corporativismo, ao ampliar a esfera de atuação dos notários. Contudo, essas críticas não resistem a uma análise mais detida. A tecnologia, por si só, não gera confiança social: a confiança decorre de instituições legitimadas, capazes de vincular a tecnologia a uma estrutura normativa e de responsabilidade. Quanto ao custo, a Análise Econômica do Direito demonstra que os gastos com prevenção são muito menores do que os custos sociais decorrentes de litígios e fraudes em massa. E no que tange ao suposto corporativismo, o que se busca não é ampliar artificialmente a esfera notarial, mas aplicar sua lógica secular de prevenção e fé pública ao espaço digital, em benefício da sociedade como um todo.

A notarialidade digital, portanto, deve ser entendida como continuidade e atualização da função notarial no século XXI. Sua missão permanece a mesma: preservar a confiança e assegurar a segurança das relações jurídicas. O que se altera é o suporte, que deixa de ser apenas o papel e o contato físico para incorporar a rede, a certificação digital e os sistemas eletrônicos. Essa transposição não significa ruptura, mas evolução. Ao conferir fé pública a documentos eletrônicos, ao autenticar identidades digitais e ao registrar a vontade das partes em meio eletrônico, o notário se adapta ao tempo presente, garantindo que a inovação tecnológica caminhe de mãos dadas com a estabilidade institucional.

Em um mundo em que os danos se propagam em velocidade e escala exponenciais, não basta contar com soluções técnicas fragmentadas. É necessário um sistema de confiança que seja reconhecido social e juridicamente como dotado de legitimidade, capaz de assegurar que os atos praticados digitalmente tenham a mesma eficácia que sempre tiveram os atos presenciais. A notarialidade digital é justamente essa resposta: uma forma de transpor ao ambiente eletrônico os valores da fé pública, da prevenção e da segurança jurídica, garantindo que o futuro digital não seja apenas veloz, mas também confiável.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.