Migalhas Notariais e Registrais

A arbitragem regulatória derivada do art. 8º-E do decreto-lei 911/1969 e o risco de “race to the bottom”: Inconstitucionalidade na execução extrajudicial de veículos

O artigo analisa a desjudicialização da execução de bens móveis, discutindo constitucionalidade, controle público e arbitragem regulatória à luz das ADIns 7.600, 7.601 e 7.608.

10/10/2025

1. Introdução

A desjudicialização de procedimentos judiciais vem ganhando destaque no ordenamento jurídico brasileiro como meio de conferir celeridade e eficiência à tutela de direitos. No final de 2023, esse movimento ganhou mais um capítulo por meio do chamado marco legal das garantias (lei 14.711, de 30/10/23), que alterou o decreto-lei 911/1969, incluindo os arts. 8º-B a 8º-E, com o fito de viabilizar que o procedimento de consolidação e busca e apreensão de veículos e de bens móveis em geral por meio dos cartórios de registro de títulos e documentos.

Desde que haja previsão expressa em contrato e observância de certas etapas como a notificação, para oportunizar a quitação pelo devedor, o judiciário não precisa mais ser única porta disponível ao credor fiduciário para fazer com que o bem ofertado como garantia a um crédito inadimplido seja utilizado para esse fim que lhe é próprio, reduzindo os riscos das operações de crédito no Brasil. Esse novo regime normativo insere-se no contexto mais amplo de modernização das cobranças de dívidas, buscando reduzir a morosidade judicial e o custo do crédito, alinhando à já citada tendência de desjudicialização de procedimentos tradicionais, como exitosamente já visto nas experiências do inventário extrajudicial; do divórcio extrajudicial e da consolidação extrajudicial da propriedade imobiliária, por exemplo.

Metodologicamente, o presente artigo adota um enfoque dedutivo, partindo de premissas constitucionais para avaliar a compatibilidade da inovação legal com a Carta de 1988. Inicialmente, delimita-se como problema jurídico a seguinte indagação: é constitucional arbitragem regulatória que permite a busca e apreensão extrajudicial de veículos executada pelos cartórios de Registro de Títulos e Documentos, sob supervisão do Judiciário/CNJ e, em paralelo, por empresas privadas credenciadas no ecossistema dos Detrans, através do regime da resolução Contran 1.018/2025?

Para responder a essa indagação, o trabalho estrutura-se em três eixos analíticos principais. Primeiro, procede-se a uma análise constitucional da matéria, examinando a jurisprudência pertinente, em especial os votos dos ministros Dias Toffoli e Flávio Dino nas ADIns 7.600, 7.601 e 7.608.

Na seção seguinte abordar-se-á o conflito regulatório instaurado pelas normas infralegais: de um lado, o provimento CNJ 196/25, que regulamenta a execução extrajudicial nos cartórios de registro; de outro, a resolução Contran 1.018/25, que disciplina procedimento análogo via Detrans. Nessa parte, analisar-se-á a regularidade de coexistência de estruturas regulatórias concorrentes para a uma mesma finalidade, sustentando padrões de controle diferentes.

Por fim, no terceiro segmento explora-se o fenômeno do forum shopping e da arbitragem regulatória, fazendo uso desses conceitos para análise do fenômeno ora estudado. Assim, a partir da lente destes dois instrumentos, em conjunto com análise Econômica do Direito e da teoria regulatória, avaliar-se-á se a abertura de uma via privada paralela à registral gera incentivos disfuncionais e compromete valores fundamentais de nosso ordenamento jurídico.

2. Análise constitucional: Desjudicialização, controle público e os votos nas ADIns 7.600/DF, 7.601/DF e 7.608/DF

2.1 A posição do ministro Dias Toffoli

A execução extrajudicial de garantias no Brasil não é propriamente novidade. Desde o decreto-lei 70/1966 (execução extrajudicial de créditos hipotecários) até a lei 9.514/1997 (consolidação extrajudicial de propriedade fiduciária de imóveis), admite-se que determinados bens dados em garantia sejam retomados sem intervenção judicial direta.

O STF firmou jurisprudência no sentido de que tais procedimentos são compatíveis com a Constituição, desde que não eliminem o acesso ao Judiciário nem as garantias mínimas de defesa. Nesse sentido, vale conferir o RE 627.106/DF, no qual o STF declarou recepcionado o decreto-lei 70/1966 e, bem assim, o RE 860.631/SP (Tema 982 de repercussão geral), em que o foi reconhecida a constitucionalidade da execução extrajudicial de imóveis pela lei 9.514/1997, firmando-se a seguinte tese: “É constitucional o procedimento da lei 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal”.

No julgamento conjunto das ADIns 7.600, 7.601 e 7.608, que impugnaram diversos dispositivos da lei 14.711/23, o STF novamente analisou a validade de um procedimento de execução extrajudicial, mas desta feita incidente sobre bens móveis. Nessa senda, discutiu-se na referida ADIn o novel procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis, de modo que o ministro Dias Toffoli, Relator, votou pela constitucionalidade da essência do marco legal das garantias, sustentando que a mera possibilidade de execução extrajudicial não contraria, por si, os direitos fundamentais do devedor. Ainda segundo o relator:

 [B]em compreendido o procedimento instituído no art. 8º-B, nota-se que não prosperam as alegações dos autores. Esse procedimento se desenvolve perante oficial registrador, autoridade imparcial cujos atos estarão sempre sujeitos a controle judicial – possibilidade decorrente diretamente da Constituição de 1988 e que está explicitada no § 11 do art. 8º-C do decreto-lei 911/1969, inserido pela lei 14.711/23, segundo o qual “o procedimento extrajudicial não impedirá o uso do processo judicial pelo devedor fiduciante”. (Grifo nosso)

Essa posição reflete a já mencionada jurisprudência da Corte, que admite a desjudicialização desde que o ordenamento forneça um trilho institucional adequado para substituir a tutela jurisdicional, mantendo o contraditório e a possibilidade de revisão judicial. No voto do ministro Toffoli, embora não haja menção explícita ao art. 8º-E, delineou-se a premissa de que tais medidas executivas devem ocorrer sob supervisão de agentes públicos dotados de fé pública e responsabilidade institucional, à semelhança do modelo de execução extrajudicial já validado para os imóveis.

O relator enfatizou que a nova lei não afasta o controle judicial, pois o devedor lesado poderá recorrer ao Judiciário, e que os procedimentos extrajudiciais previstos estão ancorados em garantias fundamentais (privacidade, honra, inviolabilidade de domicílio, proteção de dados pessoais, etc.), cuja observância deve ser assegurada durante a busca e apreensão.

Desse modo, denota-se que a constitucionalidade da inovação foi afirmada na medida em que o ambiente extrajudicial reproduz, em alguma medida, a confiança e a imparcialidade esperadas do processo judicial, razão pela qual delimita-se a utilização da estrutura dos cartórios extrajudiciais, regulados pelo Poder Judiciário, como via idônea para essas execuções.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.