Novos Horizontes do Direito Privado

Sobre as Sociedades Limitadas no projeto de alterações ao Código Civil*

O texto trata das alterações propostas ao Código Civil brasileiro em relação às sociedades limitadas e ao conceito de empresa.

26/3/2025

Enquadramentos 

A sociedade limitada (nome pouco afortunado, conotativo de limitações) aparece na «Parte Especial» do Código Civil brasileiro, no Livro II – «Do Direito de Empresa». Livro II, cujo Título I é denominado «Do Empresário».

Mas, no Projeto de alterações ao Código Civil, o seu primeiro artigo (art. 966) começa por definir, não o empresário, mas a «empresa». Acrescenta o § 1º: «Exercem atividade empresarial o empresário [pessoa singular ou física] e a sociedade empresária». E o § 2º estatui que «[n]ão se considera atividade empresarial o exercício de profissão intelectual (…), salvo se requerida a sua inscrição1 no Registo Público de Empresas Mercantis [RPEM], ressalvadas as obrigações assumidas perante terceiros antes de registrada a empresa».2

Não é ocasião para uma análise crítica da definição de empresa oferecida, em tonalidade objetiva e universal, no corpo do art. 966: «organização profissional [?] de fatores de produção [só fatores produtivos – objetos e instrumentos de trabalho ou capital, e o trabalho?] que, no ambiente de mercado [não há empresas produzindo apenas, por exemplo, para o Estado ou outra empresa?], exerce atividade de circulação de riquezas [só «circulação»?, «riquezas»?], com escopo de lucro [para lá do «empresário» e da «sociedade empresária», não há sujeitos empresariais sem escopo lucrativo?], em prestígio [?] aos valores sociais do trabalho e do capital humano» [«capital»?, «capital humano» não é o trabalho?].

Aqui importa perguntar porquê a alteração do originário art. 966, que define empresário (e, por dedução, empresa), qual a utilidade, na economia do citado Livro II, da definição de empresa. Não vislumbro resposta satisfatória.

Tanto mais porque me parece que a nova definição de empresa é incongruente com o disposto em outras normas do Livro II. Por exemplo, no art. 1142: «Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado para o exercício da empresa». Na definição do art. 966, a empresa é organização de bens, e é ela que exerce certa atividade. Outro exemplo: nos termos do art. 982, «considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade empresarial [atividade de empresa] (art. 966), e as demais, consideradas civis». Por um lado, e desconsiderando a redação inapropriada da parte final do preceito, isto repete, tautologicamente, o previsto no § 1º do art. 966. Por outro lado, há sociedades que exercem atividades empresarialmente (através de empresas), mas que não são consideradas sociedades empresárias: é o caso das sociedades agrícolas – a «sociedade que tenha por objeto o exercício de atividade própria de empresário rural e seja constituída, ou transformada, de acordo com um dos tipos de sociedade empresária», só fica «equiparada» à sociedade empresária depois de inscrita no RPEM (art. 984). 

Também merece nota o segundo artigo introduzido pelo Projeto no Livro II, o art. 966-A: as disposições deste Livro devem ser interpretadas e aplicadas com observância de 10 princípios. Não me parece que tais princípios tenham grande utilidade para o efeito.

De verdadeiros princípios jurídicos, enquanto ideias que fundamentam ou informam a regulamentação legal e concretas realizações do direito, pode falar-se a propósito dos indicados nos nºs I e II (liberdade de iniciativa e de concorrência). Porém, estão já consagrados na Constituição brasileira: arts. 1º, IV, 170, e nº IV.

A «autonomia privada» (nº III) é igualmente um princípio jurídico, mas está sujeita a restrições não só de «normas legais de ordem pública», também de normas pautadas por critérios de oportunidade.

Outros dos ditos princípios têm caráter didático, explicitando regimes legais ou remetendo para regras de lei variadas. É o caso dos previstos nos nºs IV (autonomia patrimonial das sociedades, variável segundo os tipos – todas respondem só pelas suas obrigações, mas perante os credores sociais há sócios que respondem – arts. 1023 e 1024, para as sociedades simples – e outros não: nas sociedades limitadas e anónimas), V (limitação da responsabilidade dos sócios, consoante o tipo societário adotado), VI [«deliberação majoritária do capital social, salvo se o contrário for previsto no contrato social» - formulação equívoca (pode o contrato social permitir deliberações sem maioria de votos?) e contrariada, talvez, por algumas normas legais (v. infra, nº 2.5)], VII (força obrigatória das convenções que não violem normas de ordem pública), IX (força dos usos, práticas e costumes em conformidade com a lei ou o direito – aparece em vários preceitos do C.C., p. ex. no art. 113, II), X («simplicidade e instrumentalidade das formas» - grandemente vago).

O «princípio» da «preservação de empesa, de sua função social e de estímulo à atividade económica» (VIII), além da largamente indeterminado, é contrariado em algumas normas do Livro II: p. ex., relativas ao direito de retirada (v. infra, nº 2.6) e à dissolução de sociedade por deliberação simplesmente maioritária (art. 1071, VI, e 1076, este proposto pelo Projeto).

Notas sobre o regime das sociedades limitadas segundo o Projeto

Sociedade unipessoal

O art. 1052-A é o único inteiramente dedicado às sociedades limitadas unipessoais. Parece pouco.

Aquele preceito começa dizendo que a sociedade será constituída por pessoa natural. Porquê a não admissão de pessoa jurídica sócia única? O § único trata das decisões do sócio único, que devem ser documentadas por escrito. Mas que decisões?...

À vista do art. 1053, a sociedade unipessoal reger-se-á pelo negócio (unilateral) constituinte ou estatuto e, bem entendido, pelas normas legais aplicáveis à generalidade das sociedades limitadas que não pressuponham a pluralidade de sócios, incluindo, a título supletivo, normas da sociedade simples (corpo do art. e § 1º). Todavia, ao invés do que vale para as sociedades pluripessoais (§ 2º), os estatutos não podem mandar aplicar normas da sociedade anónima (§ 3º).

O art. 1055 começa por dizer que, "[s]alvo nas sociedades limitadas unipessoais, o capital social divide-se em quotas". Contudo, não é possível a sociedade unipessoal resultar da concentração das quotas de vários sócios em um só deles, e sem necessidade de as unificar?

Diz o art. 1060: "Salvo no caso de constituir-se por única pessoa, a sociedade limitada é administrada por uma ou mais pessoas, físicas ou jurídicas (…)". Significa a ressalva que a sociedade unipessoal só pode ter um administrador? Que há de ser o sócio único? E/ou significa que o ou os administradores não podem ser pessoas jurídicas?...

A talhe de foice: é de valia duvidosa a permissão de os administradores das sociedades limitadas serem pessoas jurídicas, necessariamente representadas por pessoas físicas (variáveis) no exercício do cargo. 

Acordo de quotistas (acordo parassocial)

No § único do art. 1054 admite-se, inovadoramente, o «acordo de quotistas». Parece razoável. Não tanto assim quanto à eficácia que lhe é conferida (à semelhança do previsto no art. 118 da LSA): vincula a sociedade quando arquivado na sede respetiva, e é oponível a terceiros quando arquivado no RPEM.3 

Quotas preferenciais

Outra inovação inspirada na lei das sociedades anónimas aparece no § 3º do art. 1055: são admitidas "quotas preferenciais» atribuindo direitos económicos e políticos diversos e que, realço, podem ser desprovidos do direito de voto". 

Representação da sociedade

Estatui o art. 1064: "A representação da sociedade limitada é privativa dos administradores que tenham os necessários poderes, na forma estabelecida no contrato social".

Quer isto dizer – tendo em conta também o art. 997, VI, para que remete o art. 1054 – que, havendo pluralidade de administradores, o contrato social pode determinar que para alguns negócios (v. g., compreendidos em um ou outro pelouro funcional ou divisional) o poder de representar-vincular a sociedade pertence só a certo ou certos administradores e que para outros negócios (v. g., dependendo do respetivo valor pecuniário) valerá o sistema da disjunção (todo o administrador tem poder de representação) ou da conjunção (que pode ser total, maioritária ou minoritária).

Dada a multiplicidade de hipóteses e a oponibilidade a terceiros das limitações de poderes dos administradores quando registadas (art. 1015, § único, I, aplicável subsidiariamente – art. 1053, § 1º), teria sido aconselhável que o Projeto fizesse algo em prol da segurança e rapidez das transações societárias. 

Deliberações dos sócios

Segundo a versão originária do art. 1072, as deliberações dos sócios são tomadas "em reunião ou em assembleia"; esta, com alguns requisitos mais exigentes do que a "reunião", é obrigatória nas sociedades com mais de 10 sócios (§ 1º).

No Projeto, nesse e nos demais artigos, fala-se apenas de "reunião". Vejamos algumas disposições.

"Na ausência de disposição no contrato social, as reuniões e demais atos societários serão realizados preferencialmente em ambiente virtual, facultada a realização em formato híbrido (…)" - art. 1072, § 2º. Independentemente da justeza de o modo virtual ser considerado preferencial, depende do arbítrio de quem convoca a reunião derrogar ou não a legal preferência?

No caso de ser convocada uma reunião virtual, a possibilidade de ser realizada em formato híbrido depende da solicitação de algum sócio (art. 1080-A, §§ 2º e 3º).

Mas nem todas as deliberações têm de ser adotadas em reunião. Diz o § 4º do art. 1072: "Ressalvados os atos realizados com a finalidade de exclusão de sócio [cfr. o art. 1085, §], a reunião torna-se dispensável quando os sócios representativos da maioria do capital social decidirem, por escrito, sobre a matéria que seria objeto dela". No § 3º do art. 1072 em vigor exige-se, para as deliberações por escrito, a intervenção de todos os sócios (apesar de, parece, as deliberações não terem de ser unânimes). O Projeto, afastando-se mais ainda da colegialidade e da função ponderadora que a caracteriza, permite que o sócio ou sócios com quotas correspondentes à maioria do capital decidam – sem qualquer participação dos minoritários.

Em mais uma inovação digna de nota, denotando igualmente o enfraquecimento do poder de voto dos sócios minoritários, estatui o art. 1076: "Todas as deliberações, salvo disposição contratual diversa, serão tomadas por votos correspondentes a mais da metade do capital social, impliquem ou não em alteração do contrato". Além do mais, o enunciado normativo suscita esta dúvida: sendo certo que, em segunda convocação, o quórum constitutivo da reunião se satisfaz com a presença (ou representação) de "qualquer número" de sócios (art. 1074), deixa de ser possível adotar validamente deliberações (por maioria simples) quando os sócios presentes (e/ou representados), mesmo votando unanimemente, não possuam quotas correspondentes à maioria do capital social? 

Direito de retirada (ou exoneração) dos sócios

O art. 1077 do Projeto mantém as causas de retirada previstas na versão originária do Código (dissentimento quanto à modificação do contrato de sociedade, fusão e incorporação). Mas adita este começo: "Sem prejuízo das hipóteses previstas no art. 1029 deste Código". Este artigo admite a retirada imotivada nas sociedades constituídas por tempo indeterminado e a retirada por justa causa nas sociedades constituídas por tempo determinado.

Percebe-se mal a remissão para o art. 1029, pois ambas as hipóteses estão reguladas, em termos não inteiramente idênticos, no proposto art. 1085-C: "Na sociedade contratada por tempo indeterminado, o sócio pode retirar-se a qualquer tempo, imotivadamente, mediante notificação endereçada à sociedade. /§ 1º Na sociedade contratada por tempo determinado, o sócio só pode retirar-se nas hipóteses do art. 1.077 deste Código".

O direito de retirada livre é questionável. Os sócios vinculam-se a exercer, através da sociedade, determinada atividade económica (art. 981); o sócio que se retira tem direito a uma contrapartida pela perda da sua participação social (art. 1031, para que remete o art. 1077); a modificação no substrato pessoal da sociedade, bem como a diminuição do património social, podem acarretar perturbações no funcionamento da sociedade e até a sua dissolução, com prejuízo para os restantes sócios e os credores sociais.

Tudo isto aconselharia que o Projeto não admitisse tão latamente o direito de retirada imotivada4 e, por outro lado, admitisse mais latamente as hipóteses de justa causa.5

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*Texto de apoio a uma comunicação do autor no «Congresso sobre a Reforma do Código Civil Brasileiro – Diálogos entre Brasil e Portugal», organizado pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros, realizado em Coimbra nos dias 20 e 21 de março de 2025.

1 "Sua" de quê ou de quem? A inscrição não é de sujeitos?

2 A "empresa" registada está aqui com o significado com que aparece no corpo do artigo ou, como parece plausível, com outro significado?

3 Cfr., com apontamentos de direito comparado, J. M. Coutinho de Abreu, Curso de direito comercial, vol. II – Das sociedades, 8ª ed., Almedina, Coimbra, 2024, p. 162, s.

4 Permitindo o exercício do direito de exoneração a todo o tempo nas sociedades constituídas por tempo indeterminado – embora com pré-aviso mínimo de 180 dias (que pode ir até um ano por estipulação estatutária) – apenas conheço o Codice Civile italiano: art. 2473, 2º parágrafo (introduzido em reforma de 2003). Dividindo a propósito legislações de vários países em quatro grupos, v. J. M. Coutinho de Abreu, "Convergências e divergências internacionais no direito das PME societárias", em Congresso Internacional As Pequenas e Médias Empresas e o Direito (coord. J. M. Coutinho de Abreu), IJ/FDUC, Coimbra, 2017, p. 405-406.

5 V. ob. cit. na nota anterior, p. 406.

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Coordenação

Carlos Alberto Garbi Pós-Doutor em Ciências Jurídico Empresariais pela UC - Universidade de Coimbra. Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor de Direito Privado das FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas. Vice-Presidente do Conselho do INBRADIM. Membro Acadêmico-Associado da ABDC - Academia Brasileira de Direito Civil. Diretor Nacional de Publicações da ADFAS - Associação de Direito de Famiília e das Sucessões. Advogado. Consultor. Parecerista.