Olhares Interseccionais

Autismo e capacitismo: Uma realidade invisível

O texto denuncia a invisibilidade e exclusão enfrentadas por pessoas autistas ao longo do ano, fora do Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo.

7/4/2025

No dia 2 de abril de 2025, no Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, observei com alegria, especialmente nas redes sociais, o elevado grau de engajamento e representatividade que a data proporciona aos autistas. Prédios icônicos se iluminam de azul, cor que simboliza o autismo; depoimentos emocionantes de pais "atípicos" pelo respeito às diferenças; campanhas publicitárias de instituições, públicas e privadas, sobre o processo de inclusão e das ações de acessibilidade, entre outras manifestações tão necessárias e urgentes. Um mar de representatividade e visibilidade, em um oásis de invisibilidade e exclusão.

Mas uma inquietação sobre a realidade social das pessoas com deficiência sempre ecoa em minha mente: o que acontece nos outros 364 dias do ano com os autistas? A realidade é que existe uma luta diária e quase solitária das famílias "atípicas" contra a exclusão estrutural. O capacitismo, a invisibilidade histórica, a exclusão na educação e saúde, o apagamento da construção identitária e biográfica, a violência simbólica, o discurso de ódio e as barreiras sociais são realidades cruéis que persistem além do dia 2 de abril.

O Brasil ainda carece de dados oficiais sobre o autismo, o que demonstra que não conhecemos de fato a população de autistas, dificultando a criação de políticas públicas eficazes voltadas para a inclusão. Em 2010, a Organização Mundial de Saúde estimava cerca de 2 milhões de autistas no país, mas só o Censo Demográfico de 2022 trará um panorama mais preciso da realidade.

O estudo "Retratos do Autismo no Brasil em 2023" (Genial Care e Tismoo.me), nos apresentou um quadro social alarmante dessas múltiplas vulnerabilidades, eis que em 2023, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA considerou que, 01 a cada 36 crianças, foram diagnosticadas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Se essa realidade for transportada para o Brasil, teremos aproximadamente 4 milhões de pessoas no espectro; número alarmante para um país que não sabe conviver com as diferenças.

Sobre a saúde física e mental das pessoas autistas, segundo o relatório, aproximadamente 49% dos autistas afirmaram na pesquisa que possuem doenças crônicas relacionadas ao autismo, e que aproximadamente 50% afirmaram não ter acesso a recursos necessários para as suas necessidades. Um ponto sensível da pesquisa é sobre suicídio, que aponta para um número 8 vezes maior de tentativa de suicídio entre autistas em relação à população em geral; e cerca de 7,26% dos autistas entrevistados alegaram que já tentaram o suicídio. Esses números são mais alarmantes quando tratamos sobre suicídio de um membro da família, 17,29% já tentou contra a própria vida. As famílias estão em processo de adoecimento mental, consequência da exclusão.

Nesse contexto de invisibilidade, a desigualdade social acentua a discriminação, servindo como uma lente que nos apresenta duas realidades bem distintas e vivenciadas pelas pessoas com deficiência. O processo de inclusão é um privilégio para poucos, eis que as diferentes oportunidades são experimentadas a partir da divisão de classes, em que apenas um pequeno grupo tem acesso a uma educação inclusiva, de qualidade duvidosa, mas muito cara. O acesso às terapias de qualidade, com equipe multiprofissional capacitados são particulares e tem um custo elevado, decorrente da comoditização do autismo.

Em contrapartida, a maioria da população enfrenta a realidade da total exclusão de acesso aos serviços básicos de saúde e educação, sem acesso ao sistema privado de saúde, que também não garante um tratamento terapêutico multidisciplinar minimamente adequado, em qualidade e quantidade necessária, em clínicas credenciadas. O sistema de saúde público é precário e não garante o tratamento contínuo com uma equipe multidisciplinar. A educação inclusiva pública é quase inexistente e capacitista.

Em regra, essa exclusão decorre do capacitismo, que atualmente tem acento legal definido no decreto 11.793 de 23 de novembro de 2023, como sendo qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou o efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, pelas pessoas com deficiência, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Portanto, o capacitismo acontece a nível estrutural e inclui práticas e processos sistêmicos que hierarquiza corpos sujeito às diferenças a partir do discurso binário, capaz e incapaz.

O sistema educacional é um exemplo desse binarismo capacitista, eis que exclui o "diferente" que não se enquadra no processo de ensino e aprendizagem tradicional, que não leva em consideração as diferenças, deixando o autista a margem do processo educacional, gerando barreiras ao desenvolvimento de suas potencialidades e habilidades. Na saúde o acesso limitado a diagnósticos, terapias adequadas e profissionais qualificados, perpetua a desigualdade, a invisibilidade e o sofrimento dos alunos e das famílias.

Vale ressaltar que os grupos historicamente vulnerabilizados não podem ser analisados isoladamente no contexto social, eis que na trajetória das desigualdades no mundo social, a compreensão das vulnerabilidades requer um exame de suas múltiplas dimensões derivadas em razão da origem, raça, sexo, cor, idade ou algum impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, ou qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (Vitor Almeida. Vulnerabilidades e suas Dimensões Jurídicas).

O contexto social em que o autista está inserido, a partir de uma visão interseccional é preocupante, em razão da grande quantidade de pessoas sem acesso aos serviços sociais básicos, razão pelo qual, nos 364 dias do ano, devemos continuar lutando pelo:

1. Enfrentamento a exclusão estrutural no serviço público.

2. Combate ao capacitismo, que excluem as pessoas com deficiência dos diversos sistemas sociais.

3. Investimento em educação inclusiva de qualidade, visando que as pessoas com deficiência sejam instruídas no máximo de suas potencialidades, pressupondo um sistema educativo igualitário.

4. Combate as barreiras atitudinais, com reconhecimento das diferenças e tratamento igual, em consideração e respeito.

Quando esse texto foi escrito, no Dia Mundial de Conscientização do Autismo, as redes sociais estavam inundadas de azul e representatividade. Porém, no momento que você está lendo essas simplórias reflexões, os autistas voltaram para a sua realidade invisível.

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Referências

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Vulnerabilidades e suas dimensões jurídicas/coordenado por Fabiana Rodrigues Barletta, Vitor Almeida. – Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2023.

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Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.