Durante muito tempo, o Direito brasileiro operou sob uma pretensa neutralidade formal, escamoteando as dimensões raciais que atravessam a estrutura social do país. A ideia de que a aplicação das normas jurídicas se dá de maneira igualitária entre sujeitos abstratamente iguais é desmentida cotidianamente pelos dados empíricos do sistema de justiça, pelos relatos das populações racializadas e pelas decisões judiciais que perpetuam desigualdades. Em um país marcado por uma longa história de escravidão, exclusão e racismo estrutural, racializar o debate jurídico - isto é, trazer a raça como categoria central de análise - não é apenas uma escolha teórica, mas uma exigência ética e democrática.
A crença em uma racionalidade jurídica autônoma, desvinculada das relações sociais concretas, construiu a imagem de um Direito objetivo, imparcial e universal. Contudo, essa neutralidade é uma ficção que encobre as bases racistas, patriarcais e classistas do ordenamento jurídico. Como aponta Dora Bertúlio1, o racismo não é um fenômeno exterior ao Direito, mas constitutivo de sua própria estrutura: o Direito, ao longo da história brasileira, serviu como tecnologia de reprodução das hierarquias raciais e da exclusão sistemática da população negra. A figura do sujeito jurídico abstrato - desprovido de cor, classe, território ou gênero - é, no Brasil, uma construção que favorece a invisibilidade das violências vividas por sujeitos concretos, sobretudo negros e indígenas. Assim, a recusa em nomear o racismo, em reconhecê-lo como elemento estruturante das desigualdades jurídicas, é uma forma de reproduzi-lo.
Não se trata, portanto, de inserir a raça como um tema adicional no campo jurídico, mas de compreender que a racialização está presente na definição dos próprios marcos jurídicos, na produção legislativa, na interpretação das normas e na prática institucional. A CF/88 afirma o princípio da igualdade e prevê mecanismos de combate à discriminação racial, como os arts. 3º, IV e 5º, XLII. Também reconhece o direito à cultura e à identidade dos povos negros e indígenas. Normas como a lei 7.716/1989, que define os crimes de racismo, e a lei 12.288/10, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, materializam compromissos constitucionais de combate à desigualdade racial. Todavia, a efetividade desses instrumentos legais depende da disposição institucional e interpretativa para assumir a centralidade da raça nas desigualdades brasileiras.
O sistema penal, aliás, talvez seja o campo em que a racialização opera com maior crueza e violência. A população negra representa mais de dois terços da população carcerária, sendo também a maioria das vítimas de violência policial. As abordagens seletivas, os inquéritos com base em provas frágeis, as condenações fundadas unicamente em reconhecimentos fotográficos, revelam um padrão institucional que associa criminalidade à negritude e atua como mecanismo de controle social e disciplinamento de corpos. Essa seletividade não é acidental, mas produto de uma racionalidade penal que racializa o inimigo. Como demonstram os estudos da criminologia crítica brasileira e os dados de segurança pública, o racismo estrutura o processo de criminalização primária e secundária, ainda que a linguagem jurídica o silencie.
Mesmo quando se observa algum avanço no controle das ilegalidades processuais, como algumas decisões do STJ - que entendem inadmissível a condenação baseada exclusivamente em reconhecimento fotográfico realizado em desconformidade com o art. 226 do CPP -, a jurisprudência continua evitando nomear a questão racial. A violação à legalidade processual é reconhecida, mas o racismo, que explica a insistência em adotar práticas de prova precárias contra réus negros, permanece invisível. Nomear a raça, nesse contexto, é romper com a lógica da neutralidade e reconhecer que o Direito participa da produção do racismo institucional.
Racializar o debate jurídico exige, portanto, uma mudança epistemológica. Pressupõe reconhecer que os saberes jurídicos são também situados, construídos a partir de uma posição social, e que a experiência dos sujeitos negros precisa ser incorporada como fonte legítima de conhecimento jurídico. Implica repensar o ensino do Direito, hoje centrado em tradições eurocêntricas, e abrir espaço para autoras e autores negros, para perspectivas interseccionais, para epistemologias decoloniais. Implica também repensar a prática jurídica, a forma como juízes, promotores, advogados e defensores interpretam os fatos e o Direito. Um Direito não racista é aquele que, ciente de sua história de exclusão, compromete-se com a transformação das estruturas que perpetuam desigualdades.
A luta antirracista no campo jurídico não busca apenas inserir os negros em estruturas brancas, mas transformar as estruturas em si. Não se trata de inverter hierarquias, mas de construir uma lógica jurídica baseada na equidade substantiva, na escuta das experiências periféricas e na centralidade da justiça social. É nesse sentido que racializar o Direito não é um ato divisivo, mas um movimento emancipatório: ao reconhecer o racismo como estrutura e a raça como categoria jurídica, o Direito se aproxima de sua promessa democrática de igualdade e dignidade para todas e todos.
Trazer a raça para o centro do debate jurídico, portanto, é uma exigência de justiça e de democracia. É reconhecer que o Direito, ao negar a centralidade da raça, se torna instrumento de manutenção da ordem racial vigente. É afirmar que não há justiça possível onde a desigualdade racial é ignorada. É, por fim, romper com o silêncio institucional que naturaliza a exclusão e construir, a partir da escuta das vozes negras, um projeto jurídico que seja, de fato, comprometido com a igualdade.
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1 BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.