No dia 4 de julho de 2025, Guilherme Dias dos Santos Ferreira de apenas 26 anos, foi morto por policial militar de folga na zona sul da cidade de São Paulo1, simplesmente porque estava correndo na rua para alcançar um ônibus e ir trabalhar e foi confundido com um ladrão, sim, confundido com alguém que estava cometendo crimes, devido a um único fato...ser um homem negro.
O corpo negro em movimento foi interpretado como ameaça. Este acontecimento fatídico, embora revoltante, está longe de ser um ponto fora da curva. Ele revela como a sociedade brasileira ainda impõe restrições reais à liberdade de pessoas negras — inclusive a liberdade mais elementar, como a de correr.
Este fato, infelizmente, não é um caso isolado, e sim, repetição do dos inúmeros e tristes capítulos da história do racismo estrutural em nosso país. Entre os anos de 2021 a 2023 o Brasil registrou ao menos 15.101 crianças e adolescentes mortos de forma violenta intencional, sendo que, os jovens negros do sexo masculino são a maioria destas vítimas, perfazendo um percentual de 83,6% contra 16% de jovens da raça branca2. Os dados do panorama da violência letal contra jovens em nosso país são chocantes, demonstrando que existe uma epidemia de violência especialmente contra jovens negros no Brasil.
Ao refletirmos sobre os 35 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que consagra a prioridade absoluta dos direitos da infância, é necessário tensionar as promessas desse marco legal com a realidade vivida por crianças e adolescentes negros e pobres no Brasil. O direito à liberdade, à vida, à dignidade e ao desenvolvimento integral, embora previstos no texto legal, não se realiza com a mesma intensidade para todas as infâncias.
Isto porque, em nosso país há uma filtragem e seletividade racial desde a terna infância para as crianças e adolescentes. Pesquisa produzida pelo núcleo de estudos da violência da Universidade de São Paulo (USP) demonstra que os jovens negros são o alvo do policiamento ostensivo e das formas mais violentas de ação policial desde os 11 anos de idade, quando ainda são crianças.
Esta constante vigilância, criminalização e silenciamento ensejam consequências para além da terna idade, quando, ao mesmo tempo, as promessas da proteção integral e da prioridade absoluta à infância não são concedidas de forma plena para todos.
Crianças e adolescentes negros não são apenas afetados pelo racismo. São também impactados por condições de pobreza, pela precariedade dos serviços públicos em seus territórios e pela exclusão digital, educacional e cultural. A partir de um olhar interssecional, como propõe KJimberlé Crensha, verificamos que as opressões não se operam de forma ispolada, mas sim, se enrtrecruzm e produzem experiências singulares e indeléveis da discriminação.
Essa construção social tem raízes profundas no período escravocrata e permanece naturalizada nas práticas cotidianas, inclusive nas estatais, quando as estatísticas demonstram que, por exemplo, mesmo em pleno século XXI, as abordagens policiais em nosso país ainda são baseadas em estereótipos raciais. A atuação seletiva do Estado - seja nas ações policiais, na política de internação de adolescentes, ou no acesso a serviços públicos de qualidade - reforça as estruturas de exclusão que afetam especialmente a infância negra periférica.
A infância negra, nesse contexto, não escapa à lógica do racismo estrutural. Crianças e adolescentes negros são vigiados com mais rigor, abordados com mais violência, e têm sua liberdade constantemente restringida, mesmo quando apenas brincam, andam de bicicleta ou correm pelas ruas. A criminalização precoce e simbólica os marca desde cedo, negando- se a vivência plena da infância garantida pelo ECA.
A atuação de todo o Poder Judiciário possui papel central importante para a modificação deste panorama atual. A adoção por todo o Judiciário Brasileiro do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial e a aprovação do protocolo de julgamento com perspectiva racial pelo Conselho Nacional de Justiça são passos importantes para a incorporação da necessidade de reflexão sobre a discriminação racial existente na nossa sociedade, além da necessidade de serem consideradas asas desigualdades raciais e a reprodução de estereótipos discriminatórios.
Urge, assim que todos os operadores do direito e servidores públicos adotem posturas antirracistas e que o sistema de justiça atue não apenas na repressão, mas também na promoção dos direitos da infância negra. Afinal, garantir o direito de correr - sem medo, sem suspeita e sem risco de morte - é garantir o direito de viver plenamente a infância.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui. Acesso em 7 de agosto de 2025.