Olhares Interseccionais

O Direito de correr: Racismo estrutural, infância negra e os 35 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente

O texto denuncia como o racismo estrutural limita liberdades básicas e defende a necessidade de que o sistema de justiça atue para proteger de fato a infância e juventude negras no Brasil.

9/9/2025

No dia 4 de julho de 2025, Guilherme Dias dos Santos Ferreira de apenas 26 anos, foi morto por policial militar de folga na zona sul da cidade de São Paulo1, simplesmente porque estava correndo na rua para alcançar um ônibus e ir trabalhar e foi confundido com um ladrão, sim, confundido com alguém que estava cometendo crimes, devido a um único fato...ser um homem negro.

O corpo negro em movimento foi interpretado como ameaça. Este acontecimento fatídico, embora revoltante, está longe de ser um ponto fora da curva. Ele revela como a sociedade brasileira ainda impõe restrições reais à liberdade de pessoas negras — inclusive a liberdade mais elementar, como a de correr.

Este fato, infelizmente, não é um caso isolado, e sim, repetição do dos inúmeros e tristes capítulos da história do racismo estrutural em nosso país. Entre os anos de 2021 a 2023 o Brasil registrou ao menos 15.101 crianças e adolescentes mortos de forma violenta intencional, sendo que, os jovens negros do sexo masculino são a maioria destas vítimas, perfazendo um percentual de 83,6% contra 16% de jovens da raça branca2. Os dados do panorama da violência letal contra jovens em nosso país são chocantes, demonstrando que existe uma epidemia de violência especialmente contra jovens negros no Brasil.

Ao refletirmos sobre os 35 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que consagra a prioridade absoluta dos direitos da infância, é necessário tensionar as promessas desse marco legal com a realidade vivida por crianças e adolescentes negros e pobres no Brasil. O direito à liberdade, à vida, à dignidade e ao desenvolvimento integral, embora previstos no texto legal, não se realiza com a mesma intensidade para todas as infâncias.

Isto porque, em nosso país há uma filtragem e seletividade racial desde a terna infância para as crianças e adolescentes. Pesquisa produzida pelo núcleo de estudos da violência da Universidade de São Paulo (USP) demonstra que os jovens negros são o alvo do policiamento ostensivo e das formas mais violentas de ação policial desde os 11 anos de idade, quando ainda são crianças.

Esta constante vigilância, criminalização e silenciamento ensejam consequências para além da terna idade, quando, ao mesmo tempo, as promessas da proteção integral e da prioridade absoluta à infância não são concedidas de forma plena para todos.

Crianças e adolescentes negros não são apenas afetados pelo racismo. São também impactados por condições de pobreza, pela precariedade dos serviços públicos em seus territórios e pela exclusão digital, educacional e cultural. A partir de um olhar interssecional, como propõe KJimberlé Crensha, verificamos que as opressões não se operam de forma ispolada, mas sim, se enrtrecruzm e produzem experiências singulares e indeléveis da discriminação.

Essa construção social tem raízes profundas no período escravocrata e permanece naturalizada nas práticas cotidianas, inclusive nas estatais, quando as estatísticas demonstram que, por exemplo, mesmo em pleno século XXI, as abordagens policiais em nosso país ainda são baseadas em estereótipos raciais. A atuação seletiva do Estado - seja nas ações policiais, na política de internação de adolescentes, ou no acesso a serviços públicos de qualidade - reforça as estruturas de exclusão que afetam especialmente a infância negra periférica.

A infância negra, nesse contexto, não escapa à lógica do racismo estrutural. Crianças e adolescentes negros são vigiados com mais rigor, abordados com mais violência, e têm sua liberdade constantemente restringida, mesmo quando apenas brincam, andam de bicicleta ou correm pelas ruas. A criminalização precoce e simbólica os marca desde cedo, negando- se a vivência plena da infância garantida pelo ECA.

A atuação de todo o Poder Judiciário possui papel central importante para a modificação deste panorama atual. A adoção por todo o Judiciário Brasileiro do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial e a aprovação do protocolo de julgamento com perspectiva racial  pelo Conselho Nacional de Justiça são passos importantes para a incorporação da necessidade de reflexão sobre a discriminação racial existente na nossa sociedade, além da necessidade de serem consideradas asas desigualdades raciais e a reprodução de estereótipos discriminatórios.

Urge, assim que todos os operadores do direito e servidores públicos adotem  posturas antirracistas e que o sistema de justiça atue não apenas na repressão, mas também na promoção dos direitos da infância negra. Afinal, garantir o direito de correr - sem medo, sem suspeita e sem risco de morte - é garantir o direito de viver plenamente a infância.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui. Acesso em 7 de agosto de 2025.

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Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.