Começo com uma constatação incômoda e, no entanto, já banalizada pelo excesso de sinais: no Brasil e no Ocidente, sobretudo nos Estados Unidos, abandonamos o repertório romântico da “desobediência civil” como gesto ético isolado e entramos num período em que o atrito cotidiano com a legalidade adquire os contornos de uma erosão sistemática da ordem constitucional. Não é um tropo: é um processo. A moldura jurídica, que antes parecia um horizonte de previsibilidade, tornou-se tela porosa sobre a qual se projetam pulsões ressentidas, algoritmos ansiosos e uma retórica de exceção que vai do sarcasmo de bar boêmio às Supremas Cortes. Nas franjas dessa transformação, os riscos se elevam e, como dínamos, parecem empurrar avenidas institucionais para fora das suas guias - rumo a rupturas que, ontem, ainda soavam impensáveis. Os EUA são o caso mais notável dessa onda.
É preciso dizer sem rodeios: Brasil e Estados Unidos carregam, nas eleições imediatas - parciais lá, gerais aqui -, a tentação de converter o dissenso em coreografia física de confronto, como se a política tivesse desaprendido a gramática da contenção. Hoje, não se enfrenta apenas “as leis”; disputa-se, com uma agressividade performática, a autoridade dos que as interpretam. O velho brocardo romano fiat iustitia et pereat mundus foi sequestrado por uma pedagogia de justiçamento: justiça como vendeta, princípio como arma, processo como espetáculo - um teatro punitivo sem os andaimes constitucionais que lhe dariam dignidade. Não se trata de lideranças mobilizadas por uma consciência trágica das responsabilidades públicas: o que catalisa a massa é uma inconsciência excitada, feita de impulsos imitativos, de irracionalidades miméticas (como bandeiras de países estrangeiros nas manifestações nacionalistas) e de um fervor que se pretende ético, mas abdica da ética ao dissolver a política no moralismo do “tudo ou nada”. Hannah Arendt (ela de novo) notou que a erosão da autoridade antecede a violência porque desancora o mundo comum. Quando a autoridade caduca, homens e mulheres deixam de partilhar uma realidade e passam a disputar “o que é real” como quem disputa trincheiras1.
As origens desta crise institucional não são um mistério hermético. Estão à vista: a quebra do equilíbrio econômico, a desigualdade que corrói o senso de pertencimento, a fadiga com a representação política e os partidos, a desarticulação dos paradigmas do trabalho, a reorganização material da vida sob plataformas digitais e a súbita onipresença da inteligência artificial - novo engenho a embaralhar autoria, prova e verdade. Os números latino-americanos são eloquentes: após anos de desalento, o apoio declarado à democracia oscilou em torno de metade da população, com o Brasil atravessando um período prolongado de ambivalência que não autoriza complacência2. Em escala global, a confiança em instituições e governos permanece cronicamente baixa - nos Estados Unidos, a confiança no governo federal mal alcança pouco mais de um quinto dos cidadãos! -, cenário que converte qualquer decisão de alta visibilidade em fagulha capaz de acender discursos de ilegitimidade3 Para piorar, elites e públicos já não compartilham um léxico informacional: líderes econômicos e políticos, inquiridos sobre riscos, colocam “desinformação e manipulação” como ameaça imediata - em particular num calendário eleitoral abarrotado -, e não por modismo, mas porque a produção sintética de conteúdo tornou barata e a sua circulação, acelerada.4
A desconfiança em relação à autoridade estabelecida - tanto religiosa, em sociedades simultaneamente mais laicas e mais suscetíveis a lideranças devocionais politizadas, quanto jurídica - é hoje um reagente poderoso. Arendt, em seu ensaio sobre a crise da autoridade, recorda que a obediência não é submissão: é uma forma de reconhecimento compartilhado. Quando a autoridade se converte em puro mando, as pessoas obedecem por medo. Quando se converte em mera opinião, deixam de obedecer porque não reconhecem nela uma razão pública5. O desprezo pelas instâncias legais e pelos ritos do contraditório costuma preceder as rupturas, mas não garante libertação: muitas rupturas não têm tipologia épica: começam como “crises institucionais”, isto é, como sabotagens difusas aos mecanismos de resolução pacífica dos conflitos. O que vemos, no Brasil e nos EUA, é uma sobrecarga das Supremas Cortes sob tumulto político: nos dois países, decisões recentes deslocaram expectativas de estabilidade e ampliaram a percepção de que a justiça se tornou arena do presenteísmo - ora ativista, ora minimalista, mas invariavelmente investida de efeitos tectônicos sobre políticas e direitos6. A politização da Justiça, fenômeno estudado com vigor por Conrado Hübner Mendes, não emerge do nada: é filho de uma hiperconstitucionalização do cotidiano e do hábito de empurrar, para o Judiciário, impasses que o sistema político evita enfrentar7.
No Brasil, a crise fiscal do Estado, repetida como um refrão por décadas, deixou de ser cifra técnica e passou a narrativa corrosiva: governos “incapazes” de cumprir as tarefas elementares, investimento público rarefeito (1% do PIB, ou menos), promessas de transformação que se dissolvem em contingenciamentos. O “mito dos homens bons”, que preferem não descer à lama da política, é parte do problema: a abdicação das elites cívicas entrega a conversação pública aos empreiteiros do ressentimento. E, quando os “bons” finalmente entram, chegam tarde e em minoria - facilmente descritos como tecnocratas exóticos, incapazes de alterar as forças inerciais que os cercam. Quando não são nominados como “burocratas brancos da elite”. O diagnóstico econômico oficial reforça a ansiedade: a política fiscal segue tensionada, metas frágeis, indexações automáticas, espaço estreito para investimento sem reformas, horizonte inflacionário mais difícil - um terreno perfeito para que o “Estado ineficiente” vire caricatura e espantalho8.
Nada simboliza melhor a delicadeza do momento brasileiro do que a sequência de decisões e processos ligados aos eventos de 8/1/23. Ali, a imaginação golpista tornou-se ação, e a Praça dos Três Poderes foi convertida em prova de estresse institucional. Organismos internacionais descreveram o episódio como o ataque mais grave às instituições desde a redemocratização. A reação judicial veio em cadeia, com centenas de condenações proferidas pelo STF e medidas de tutela emergencial. Essa resposta, como era inevitável, tornou-se parte da disputa simbólica: para uns, criminosos flagrantes; para outros, “contestadores políticos”. Vimos o impensável: a violação aberta da lei circulando sob o disfarce de “ato político”, como se a liberdade de opinião anistiasse a agressão à ordem constitucional. Nessa atmosfera, as polícias são acusadas de leniência; as assembleias, de irrelevância; os tribunais, de parcialidade. A descrença generaliza-se. E, de repente, insinua-se a ideia, perigosamente sedutora, de que há uma “maioria” difusa, silenciosa e descontente, inclinada a convergir contra a lei e a ordem, à espera de um catalisador.
Os Estados Unidos não estão imunes: pelo contrário, funcionam como laboratório de paradoxos. A confiança sobre a Suprema Corte oscila em patamares historicamente baixos e fortemente partidarizados, decisões de grande alcance - sobre direitos reprodutivos, imunidades presidenciais e, sobretudo, sobre o arranjo administrativo do Estado - são percebidas como movimentos de uma tsunami9 A revogação do precedente “Chevron” em Loper Bright Enterprises v. Raimondo não é um detalhe técnico: redesenha a deferência aos órgãos reguladores e realinha, no imaginário leigo, a pergunta “quem governa?”, tornando mais árduo ao Executivo responder a urgências complexas sem que cada ato vire campo minado.6 Num ambiente de confiança rarefeita, a leitura dessas decisões tende a ser plebiscitária (“ganha quem eu gosto”), e não institucional (“o tribunal interpretou assim por tais razões”). A política se torna uma pedagogia do ressentimento e a jurisdição, um termômetro do faccionalismo.
Agravam o quadro duas forças gêmeas. Primeiro, a desigualdade persistente, que transforma a promessa democrática - “governo de iguais” - em experiência de humilhação cotidiana. O Brasil continua entre os países de maior concentração de renda. Os Estados Unidos, embora mais igualitários que nós, convivem com patamares de desigualdade que alimentam cinismo e retração cívica10. Segundo, a revolução informacional, que colou ao corpo social uma pele de estímulo permanente. Não é preciso teorizar: sabemos, com dados robustos, que o falso viaja mais rápido e mais longe que o verdadeiro; que a novidade - sobretudo a novidade indignada - é um combustível natural da partilha e que, em contexto eleitoral, isso é nitroglicerina. O risco, apontado friamente por organismos transnacionais, é que a desinformação, agora turbinada por sistemas generativos, se torne o curto-circuito sistêmico de maior curto prazo - um atalho para colapsos locais de confiança.
Nada disso autoriza o fatalismo. Mas exige sobriedade estratégica. Se queremos evitar uma desestabilização grave, a primeira disciplina é reeducar o respeito à legalidade e aos juízes - não um respeito servil, mas a confiança vigilante no devido processo, na publicidade dos atos e na obrigação de fundamentar. No Brasil, isso começa por despolitizar a pauta de curto prazo do STF: não é aceitável que toda crise seja encaminhada como urgência constitucional. Congestionar o ápice judicial é a maneira mais eficiente de transformá-lo em ator político permanente. O Brasil precisa conter a hipertrofia do controle abstrato como válvula de escape do Legislativo, descentralizando conflitos, reforçando o juízo difuso, racionalizando competências originárias e estabelecendo, por lei e por autocontenção, filtros de estrita necessidade. Oscar Vilhena Vieira falava, há anos, da “supremocracia” como diagnóstico: a cura não é amputar o tribunal, é devolver-lhe a função de corte e não de mesa diretora da política11.
Em paralelo, urge revitalizar o Estado em suas capacidades elementares. Um Estado sem capacidade fiscal e sem aparato técnico apto a implementar políticas redistributivas é um Estado que se condena a delegar a pacificação social ao Judiciário e à polícia. O reorganizar fiscal que o Brasil ensaia precisa deixar de ser um rito de promessas para virar credibilidade prática: metas menos retóricas, menos exceções, mais prioridades, mais investimento social com governança e avaliação - e uma narrativa honesta sobre tempo e custo da transformação. Reformar é renunciar ao fetichismo da mudança instantânea: nenhuma sociedade suporta reformas profundas em ritmo de sprint sem produzir o efeito colateral da implosão. Pede-se ao Legislativo que reocupe seu lugar de órgão político estabilizador: não como máquina de obstrução, mas como engenheiro de consensos mínimos, capaz de firmar pactos duráveis em torno de três ou quatro eixos (tributação progressiva, transição energética, educação básica, saúde, segurança pública orientada por evidência, equilíbrio fiscal). É claro que essa enunciação pode soar como utópica. Todavia, um olhar para o destino de ruptura para o qual caminhamos sugere que essas proposições não são mais necessárias, mas urgentes.
No ambiente informacional, a tarefa é dupla e delicada. De um lado, punir severamente - dentro das garantias penais e do devido processo - ecossistemas organizados de fraude comunicacional que lucram com a mentira e com o dano público mensurável (ataques a processos eleitorais, saúde pública, segurança coletiva). De outro, resistir à tentação de transformar regulação em censura por antecipação. Há instrumentos robustos e menos dramáticos: deveres de transparência algorítmica, auditorias independentes, cadeia de custódia para conteúdos políticos patrocinados, rastreabilidade proporcional em campanhas, dever de diligência reforçado para plataformas durante ciclos eleitorais, mecanismos céleres de correção e rotulagem onde a prova da falsidade seja pública e incontroversa. O que se deve evitar é a infantilização do público - a crença de que cidadania é incapaz de discernir - e, ao mesmo tempo, a ingenuidade liberal que ignora o poder de fogo industrial de redes de manipulação. Habermas ensinou que a esfera pública só é “racional” quando as condições de fala são simétricas: no presente, simetrizar é, paradoxalmente, um ato assimétrico de proteção dos vulneráveis contra a escala industrial da mentira.12
Resta um último ponto, o mais prosaico e, por isso mesmo, o mais institucional: reconstruir a autoridade como competência reconhecida e não como carisma de ocasião. Autoridade, para Arendt, não se proclama - conquista-se na repetição de gestos confiáveis13. É a escola que entrega alfabetização, o hospital que atende com dignidade, a polícia que não mata, o juiz que explica sem jargão, o deputado que não foge do plenário. No Brasil, a aposta, por vezes, tem sido a de chamar o “povo” para legitimar decisões já tomadas. Nos Estados Unidos, a de invocar “liberdade” como senha para deslegitimar qualquer responsabilidade coletiva. Em ambos, há literatura suficiente demonstrando que democracias não morrem apenas por quarteladas: também minguam por saturação de cinismo, por desistência, por vulgarização do debate a memes e insultos.14
As emergências, no fim, são sempre um diagnóstico retroativo: só irrompem onde as instituições não funcionam ou não atendem aos anseios sociais com uma mínima justiça perceptível. O que nos cabe, agora, é a renúncia à épica dos atalhos e um compromisso mais sereno com os meios - meios legais, por vezes lentos e frustrantes - que dão às maiorias, aos dissensos e às minorias a chance de coexistir sem se autodestruir. Num tempo de glamour para os incendiários, o verdadeiro gesto contracultural é insistir no trabalho frio da política, no rito da lei e no pudor dos juízes. E, sobretudo, aceitar que estabilizar expectativas - e não as excitar - é o primeiro serviço público que uma democracia deve prestar a si mesma. Chega de espetáculo. Vamos cair na real.
1 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001 [orig. 1961].
2 Latinobarómetro 2023 e 2024: apoio à democracia na América Latina, com Brasil abaixo ou ao redor de 50% em 2023 e alta regional em 2024.
3 PEW RESEARCH CENTER. Public trust in government: 1958–2024 (24 jun. 2024)
4 WORLD ECONOMIC FORUM. Global Risks Report 2024: desinformação e conteúdo sintético como risco imediato em ano de eleições.
5 Op. cit
6 Sobre politização do STF e protagonismo judicial, ver: OLIVEIRA, Fabiana L. “O Supremo Tribunal Federal e a política no Brasil contemporâneo” (2016).
7 MENDES, Conrado Hübner. Politização da justiça no Brasil (FES, 2021).
8 Exemplificadamente: OECD. Economic Outlook 2024 (Brasil): política fiscal expansionista, metas desafiadoras e pressão sobre gastos indexados. Disponível aqui. Acesso em 11/9/25.
9 GALLUP. Confidence in the U.S. Supreme Court: queda entre democratas; alta entre republicanos (2024–2025). Disponível aqui. Acesso em 11/9/25.
10 A título de ilustração vide: WORLD BANK/Our World in Data. Gini: Brasil em torno de 0,52 (2022), EUA ~0,37 (2022) e PIKETTY, Thomas. Capital and Ideology. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2020.
11 VIEIRA, Oscar Vilhena. “Supremocracia”. Revista Direito GV, v. 4, n. 2, 2008.
12 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003
13 Op.cit
14 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. São Paulo: Zahar, 2018.