O STJ estabeleceu importante orientação para os litígios envolvendo contratos de consórcio (REsp 2.181.193/SP, 3ª Turma, Min. Villas Bôas Cueva).
Reconheceu não existir obrigação legal para que as administradoras sejam forçadas, judicialmente, a anotar em seus registros (mas sem alterar ou transferir a titularidade) a mera existência de cessões envolvendo créditos de quotas canceladas de consórcio.
Essa orientação é bastante relevante por várias razões. Ultrapassa o ambiente específico dos consórcios e acaba por representar relevante sinalização do STJ contra a própria litigância abusiva.
Há algum tempo desenvolve-se expressivo mercado evolvendo a negociação desses direitos de crédito. É que, pela lei, o consorciado excluído do grupo precisa esperar seu encerramento (ou contemplação) para ter reembolsados os valores que desembolsou. A depender do momento da exclusão e da duração do grupo, isso pode demorar. Para diminuir essa espera, muitos aceitam vender seu crédito com desconto significativo (que costuma girar em torno de 80% a 90% do valor total).
Sugiram vários investidores especializados nessa compra. Até porque, financeiramente, o negócio é bastante interessante: o risco é baixo (as administradoras de consórcio são solventes) e o fator essencial a ser administrado é apenas o tempo de espera para receber o crédito. O resultado é a multiplicação, em várias vezes, do valor investido.
Muitos desses investidores, como estratégia de negócio, evitam alterar a titularidade do crédito junto a administradora de consórcios. Com isso e apesar da cessão, o contrato e o crédito dele decorrente permanecem, formalmente, em nome do consorciado original (o cedente). O que, constantemente, gera multiplicidade de cessões da mesma cota cancelada (cedente vende para duas ou mais empresas) ou apropriações de valores pelo próprio cedente.
Especula-se haver várias razões para isso e, uma delas (talvez a principal), é de ordem fiscal: o investidor/cessionário (comprador do crédito) minimiza a circulação de recursos em seu nome, tanto na compra, quanto, depois, no recebimento dos valores (cujo repasse, formalmente, é feito em nome do consorciado/cedente e o cessionário o recebe valores por meio de procuração).
Embora evitem figurar como titulares do crédito, fazem questão de cientificar a administradora de consórcios a respeito da cessão. O objetivo é tornar essa transmissão eficaz perante a devedora e, com isso, evitar que os valores possam vir a ser transferidos ao consorciado cedente (que continua figurando no contrato como credor), quando do encerramento do grupo. E, caso isso aconteça, a devedora poderá ser responsabilizada pelo mal pagamento.
Acontece que muitos dos compradores/investidores desses créditos passaram a postular judicialmente que as administradoras/devedoras fossem obrigadas a fazer essa anotação em seus registros. A pretensão não é a de forçá-las a transferir a titularidade do crédito para o cessionário, mas, sim, apenas anotar a existência da cessão daquele direito.
O TJSP chegou a editar Enunciado nesse sentido, admitindo a propositura de “ação judicial para anotação e registro, visando evitar pagamento indevido” (Enunciado 16). Isso acabou contribuindo muito para a excessiva (e desnecessária) judicialização dessa pretensão.
E esse entendimento ainda teve outro efeito colateral: as demandas passaram a ser ajuizadas como forma de maximizar os lucros da operação, especialmente por meio da condenação ao pagamento de honorários de sucumbência.
Assim, a orientação da jurisprudência de alguns tribunais de segundo grau, aliada à expectativa de recebimento de honorários de sucumbência, passaram a alimentar esse ciclo (vicioso) de demandas desnecessárias.
Na verdade, essa prática não só ganhou contornos abusivos, como ainda está em movimento. E o recente precedente do STJ parecer ser, em nosso sentir, a sinalização concreta de que isso deve mudar.
Em linhas essenciais, a orientação baseia-se na percepção de que não existe previsão legal obrigando a administradora a efetuar o registro da cessão a pedido do investidor/cessionário. Inclusive porque a transmissão desse direito de crédito não implica vínculo entre o cessionário e a administradora, cabendo ao cessionário, como parte interessada na eficácia do negócio jurídico, assumir os riscos de sua atividade.
A mesma orientação foi consignada no julgamento de outro recurso especial, na mesma sessão (REsp nº 2.183.131/SP).
No fundo, o investidor/cessionário carece até mesmo de interesse processual para forçar a administradora de consórcios a anotar a existência de cessão de crédito, na medida em que qualquer transmissão dessa natureza já é eficaz mediante adequada notificação do devedor (art. 290 do CC) e a Lei de Consórcios, que é especial e foi editada depois do Código Civil, fixa a necessidade de que essa cientificação aconteça no momento da transferência do crédito, por meio da anuência da administradora (art. 13 da Lei 11.795/08).
Outro ponto relevante nesse precedente está no fato de que, no caso concreto, havia cláusula contratual vedando a cessão de crédito. Embora combatida e, muitas vezes, incompreendida, essa limitação é legal, admitida expressamente por nosso sistema (art. 286 do CC) e, por isso, deve ser respeitada.
Diante desse cenário, o posicionamento do STJ representa orientação relevante a respeito da utilização adequada e racional do processo, assim como do próprio respeito à liberdade de contratar.
A tentativa de compelir judicialmente as Administradoras de Consórcios a realizar anotação administrativa de cessões de crédito, sem que se opere a troca formal da titularidade sobre esse direito, configura, em si mesmo, abuso do direito de ação.
Por isso se espera que esse precedente não apenas seja seguido, como, também, inspire os tribunais de segundo grau a refletirem e reavaliarem orientações que, além de contrárias ao direito positivo (como bem percebeu o STJ), incentivam a utilização abusiva do processo e do próprio Judiciário, como instrumento de maximização de lucros.