Questão de Direito

STJ reconhece e-mail como prova de mora do devedor. E agora?

A coluna aborda o reconhecimento pelo STJ da notificação por e-mail como meio válido de comprovação da mora em contratos fiduciários.

29/8/2025

O STJ acaba de reconhecer a validade da notificação extrajudicial enviada por e-mail para constituir o devedor em mora. A decisão, de expressivo impacto prático, reacende o debate sobre este intrigante assunto - afinal, quais são os meios idôneos de comprovação da mora?

Antes de 2014, prevalecia o entendimento de que o AR - Aviso de Recebimento da notificação deveria estar assinado necessária e pessoalmente pelo devedor fiduciante. Esta exigência frequentemente resultava em nulidades quando a carta era recebida por terceiros (porteiro, cônjuge, funcionário etc.).

A discussão foi encerrada com a edição da lei 13.043/14, que conferiu nova redação ao art. 2º, §2º, do decreto-lei 911/1969, nos seguintes termos: “A mora decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento e poderá ser comprovada por carta registrada com aviso de recebimento, não se exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário.”

A alteração legislativa de 2014 contribuiu consideravelmente para a maior efetividade da ação de busca e apreensão de bens fiduciários, porque alterou a forma de comprovação da mora. Com efeito, ao menos duas consequências devem ser destacadas: (i) a lei estabeleceu a presunção legal da mora pelo mero vencimento da obrigação - ou seja, a notificação passou a ser compreendida apenas como meio de prova, e não pressuposto constitutivo da mora; e (ii) consolidou-se a presunção de validade da notificação extrajudicial recebida no endereço do devedor, ainda que por terceiros, desde que haja comprovação do envio e do recebimento no endereço indicado no contrato.

Posteriormente, as inovações tecnológicas reacenderam a discussão sobre a utilização de outros meios de comprovação da mora, como a notificação por e-mail. A possibilidade ganhou força à medida em que a comunicação eletrônica foi se tornando ferramenta usual nas relações contratuais.

Em 2023, o STJ firmou, no Tema 1.132 sob o rito dos recursos repetitivos, a seguinte tese: “Em ação de busca e apreensão fundada em contratos garantidos com alienação fiduciária (art. 2º, § 2º, do decreto-lei 911/1969), para a comprovação da mora, é suficiente o envio de notificação extrajudicial ao devedor no endereço indicado no instrumento contratual, dispensando-se a prova do recebimento, quer seja pelo próprio destinatário, quer por terceiros.”.1

Desde então, tanto o legislador, quanto o STJ vêm reafirmando a necessidade de adequar a disciplina da constituição em mora à realidade dos meios de comunicação modernos, privilegiando, assim, a efetividade e a segurança jurídica.

O cenário atual das relações contratuais, marcado por maior agilidade, exige atualização das práticas, sobretudo para admitir o uso ou o emprego de inovações tecnológicas que já permeiam a vida social e econômica.

Foi nesse contexto que, em 2025, a 2ª seção do STJ reconheceu: a constituição em mora do devedor fiduciante pode ser comprovada por notificação encaminhada por e-mail, nos termos do art. 2º, § 2º, do decreto-lei 911/1969.

A decisão foi proferida no REsp 2.183.860/DF2, interposto de acórdão do TJ/DF que havia validado a notificação por meio de correio eletrônico e mantido a busca e apreensão do bem fiduciário. No Recurso Especial, o devedor sustentava que a reforma de 2014 visava apenas a simplificar o procedimento - dispensando a intermediação de Cartórios de Títulos e Documentos - e não a “permitir outros meios informais de comunicação ficta, tal como o e-mail”.

Contudo, esse argumento foi afastado pelo STJ que, se valendo da interpretação analógica como técnica de hermenêutica jurídica, concluiu: a notificação enviada por e-mail é tão válida quanto aquela recebida por terceiro no endereço do devedor indicado no contrato:

Sob esse aspecto, é possível, por interpretação analógica do art. 2º, § 2º, do decreto-lei 911/1969, considerar suficiente a notificação extrajudicial do devedor fiduciante por correio eletrônico, desde que seja encaminhada ao endereço eletrônico indicado no contrato e, principalmente, seja comprovado seu recebimento, independentemente de quem a tenha recebido.

Concluiu-se que a reforma legislativa de 2014 também alcança a notificação por e-mail, sendo, portanto, meio válido de comprovação da mora no âmbito da alienação fiduciária, consolidando interpretação condizente com a realidade tecnológica contemporânea.

Entretando, o STJ cuidou de estabelecer ao menos dois pressupostos de validade dessa notificação por e-mail: (i) a mensagem deve ser enviada ao endereço eletrônico indicado no contrato; e (ii) deve haver comprovação da efetiva entrega da mensagem.

E agora?

Se, por um lado, o entendimento do STJ - no sentido de que a notificação por e-mail é válida para comprovação da mora - alinha-se às inovações tecnológicas e à modernidade; de outro, impõe novos deveres de cautela aos credores. Se não constar expressamente do contrato o endereço eletrônico do devedor no contrato ou se for insuficiente a prova de recebimento poderá, no futuro, haver questionamentos.

 Ainda, algumas dúvidas podem surgir, afinal, o que significa “comprovação idônea de recebimento”3 do e-mail?

Por isso, algumas condições devem ser fixadas para orientar a utilização da notificação por e-mail como prova de constituição do devedor em mora.

Em relação ao endereço eletrônico, há três condições fundamentais: (i) o contrato deve prever a possibilidade de comunicação via e-mail; (ii) o endereço eletrônico deve ser indicado pelo devedor e constar expressamente no contrato e; (iii) caberá ao devedor comunicar eventual alteração de seu endereço eletrônico, sob pena de, não o fazendo, ser presumida válida a comunicação dirigida ao e-mail constante no contrato –, por interpretação analógica do art. 274, parágrafo único, CPC, tal qual ocorre com as intimações dirigidas ao endereço constante dos autos.

Isso significa que, fornecido o endereço eletrônico e autorizada sua utilização no contrato, é válida a comunicação enviada a esse endereço de e-mail, não podendo o devedor alegar, posteriormente, desconhecimento ou invalidade do canal informado.

Já em relação à comprovação da efetiva entrega da mensagem as condições a serem fixadas exigem maior reflexão.

Em primeiro lugar, o comprovante de entrega da mensagem eletrônica não passa de uma prova documental e, por isso, como qualquer outra prova documental, sujeita-se às regras gerais dos arts. 405 e seguintes, CPC4, considerando-se autêntico quando não impugnado e competindo àquele que impugnar sua autenticidade o ônus5 de comprovar sua falsidade (art. 436 II, CPC), não admitindo-se alegação genérica6 a este respeito (art. 436, parágrafo único, CPC).

De qualquer sorte, a exigência de comprovação idônea de recebimento” do e-mail independe de qualquer certificação formal. O comprovante de entrega possui, por si só, presunção de eficiência probatória7, submetendo-se ao regime comum da prova documental. Não fosse assim, aquilo que se pretendeu ser um facilitador - a comprovação da mora por meio da notificação encaminhada por e-mail - deixaria de sê-lo, pois a exigência de demonstração do recebimento por vias excessivamente formais frustraria esta finalidade.

Essa conclusão também decorre do exame da evolução jurisprudencial do STJ: antes do julgamento do REsp 2.183.860/DF, o posicionamento da 3ª turma do STJ era de que “descabe cogitar a possibilidade de reconhecer a validade da notificação extrajudicial enviada somente por correio eletrônico”8. À época, a ministra Nancy Andrighi registrou que “a ciência inequívoca de seu recebimento pressuporia o exame de uma infinidade de aspectos relacionados à existência de correio eletrônico do devedor fiduciante, ao efetivo uso da ferramenta pelo devedor fiduciante, a estabilidade e segurança da ferramenta de correio eletrônico e a inexistência de um sistema de aferição que possua certificação ou regulamentação normativa no Brasil, de modo a permitir que as conclusões dele advindas sejam admitidas sem questionamentos pelo Poder Judiciário.”9

De outro lado, a 2ª turma adotava o posicionamento de que “a aceitação, pelo Poder Judiciário, de métodos de comprovação de entrega de mensagens eletrônicas pode ser embasada na análise de sua eficácia e confiabilidade, como ocorre com qualquer prova documental, independentemente de certificações formais. Se a parte apresentar evidências sólidas e verificáveis que atestem a entrega da mensagem, assim como a autenticidade de seu conteúdo, o Magistrado pode considerar tais elementos válidos para efeitos legais”.10

As Turmas divergiam, razão pela qual a matéria foi levada a julgamento na 2ª sessão, quando venceu o entendimento defendido pela 4ª turma, dando origem ao acordão do 2.183.860/DF. Na oportunidade, a min. Nancy cuidou de lavrar voto-vista para justificar a revisão de seu posicionamento e trouxe uma série de dados empíricos, reveladores da massiva conectividade dos brasileiros à internet.

Portanto, a adoção de mecanismos de rastreabilidade e autenticação não constitui pressuposto legal para a eficácia da comunicação eletrônica. De qualquer sorte, recomenda-se a implementação de medidas11 que possam evitar ou mitigar futuras discussões quanto à irregularidade ou eficácia probatória da prova. 

A comprovação de entrega do e-mail independe, também, de qualquer regulamentação normativa própria, justamente porque, tratando-se de prova documental, aplica-se o regime jurídico comum. Logo, na ausência de regulação específica, vigora o regramento geral do CPC. Afinal, como bem concluiu o min. Antonio Carlos, no julgamento do REsp 2.087.485/RS, “Exigir regulamentações e certificações específicas para cada nova tecnologia seria o mesmo que esvaziar o disposto no art. 2º, § 2º, do decreto-lei 911/1969, obrigando, na prática, as instituições financeiras a utilizarem somente a carta registrada com aviso de recebimento.”12

É de se ressaltar, ainda, que a comprovação de entrega do e-mail não se confunde com comprovação de leitura ou de resposta do devedor. Nesse particular, a analogia feita pelo STJ à carta com AR é clara: assim como não se exige que o aviso seja assinado pelo próprio destinatário, tampouco se exige, no meio eletrônico, qualquer confirmação de leitura, tampouco resposta, bastando que haja prova de que a mensagem chegou no canal indicado contratualmente.13

Essas condições valorizam a boa-fé contratual e a autonomia das partes para definirem meios válidos de comunicação. Ao mesmo tempo, impedem que o devedor se valha de alegações genéricas ou contraditórias para tentar desconstituir notificações regularmente expedidas via e-mail.

Cabe, agora, às instituições financeiras e credores fiduciários o cuidado de revisitarem imediatamente seus instrumentos contratuais para incluir o endereço eletrônico do devedor e definirem, de forma clara, o procedimento de comprovação de recebimento. Essa adequação não é apenas medida de prudência, mas também de alinhamento com a decisão mais atual do STJ.

A decisão sinaliza que o STJ - ao menos no que diz respeito a meios de prova - avança de forma irreversível para a incorporação de meios digitais como canais legítimos de comunicação formal. Afinal, a efetividade das garantias não pode depender de formalismos anacrônicos, mas devendo estar lastreada em meios idôneos de prova compatíveis com a realidade tecnológica atual.

O que se observa, é que o processo de busca e apreensão ganha em agilidade e eficiência, sem sacrificar garantias essenciais. Mais do que um reconhecimento da tecnologia como meio legítimo, a orientação assentada pelo STJ representa a consolidação de uma lógica jurídica mais funcional e aderente às inovações contemporâneas.

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1 STJ, REsp 1.951.662/RS, relator ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 9/8/2023, DJe de 20/10/2023.

2 STJ, REsp 2.183.860/DF, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 8/5/2025, DJe de 19/5/2025.

3 STJ, REsp 2.183.860/DF, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 8/5/2025, DJe de 19/5/2025.

4 “Além disso, existem, ainda, outros dispositivos com essa mesma lógica: o art. 411, III, do CPC (LGL\2015\1656) prevê que o documento será considerado autêntico quando não houver impugnação da parte contra quem foi produzido o documento. No mesmo sentido, o art. 412 do CPC (LGL\2015\1656) dispõe que, se a parte interessada não faz dúvida da autenticidade do documento particular, presume-se que o autor do documento fez a declaração que lhe é atribuída. O art. 428, I, do CPC (LGL\2015\1656), prevê que a fé do documento particular cessará quando a sua autenticidade for impugnada e não houver comprovação da sua veracidade. Já o art. 430 do CPC (LGL\2015\1656) prevê a possibilidade de suscitar a falsidade de documento colacionado aos autos.” PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. Print de WhatsApp como prova no processo civil in Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 50, n. 362, abr. 2025. 588 p.04.

5 “Constituiriam exemplos de ônus absolutos o do autor “de alegar na inicial todos os fatos de seu interesse” e o do réu, de alegar as exceções em sentido estrito (substanciais ou processuais); relativo seria a seu turno o ônus da prova, diante da possibilidade de o julgador reconhecer a ocorrência do fato não provado pelo interessado a partir de elementos de corroboração de outro modo aportados ao processo (inclusive pelo adversário)”. LEITE, Clarisse Frechiani Lara. Fatos e Provas Novos no Processo Civil. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2023. RB 5.10 E-book. Disponível aqui. Acesso em: 22 ago. 2025.[7] “Pode ainda a parte infirmar a eficácia probatória do documento. Exemplo disso se dá quando, sendo autêntico e verdadeiro o documento, a parte afirma que, por qualquer motivo, ele não tem o condão de demonstrar os fatos que com ele se queria comprovar”. DIDIER JR. Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil – v.2 – Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada Processo estrutural e Tutela Provisória. 19.ed., ver., atual., e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2024, p. 304.

8 STJ, REsp n. 2.035.041/RS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 27/4/2023.

9 STJ, REsp n. 2.035.041/RS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 27/4/2023

10 STJ, REsp n. 2.087.485/RJ, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 23/4/2024, DJe de 2/5/2024.

11 Tais como o arquivamento da íntegra do e-mail com seus metadados, que mostram o Protocolo de Internet (IP) do remetente, data e hora exatos do envio, servidores pelos quais passou, autenticações de segurança etc. Em regra, isso pode ser feito salvando-se o e-mail nos formatos “.eml” ou “.msg”, os quais preservam todas as informações técnicas embutidas.

12 STJ, REsp n. 2.087.485/RJ, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 23/4/2024, DJe de 2/5/2024

13 Nesse sentido: “Sob esse aspecto, é possível, por interpretação analógica do art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei n. 911/1969, considerar suficiente a notificação extrajudicial do devedor fiduciante por correio eletrônico, desde que seja encaminhada ao endereço eletrônico indicado no contrato e, principalmente, seja comprovado seu recebimento, independentemente de quem a tenha recebido”. STJ, REsp n. 2.087.485/RJ, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 23/4/2024, DJe de 2/5/2024.

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão & Lins Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.