O STJ acaba de reconhecer a validade da notificação extrajudicial enviada por e-mail para constituir o devedor em mora. A decisão, de expressivo impacto prático, reacende o debate sobre este intrigante assunto - afinal, quais são os meios idôneos de comprovação da mora?
Antes de 2014, prevalecia o entendimento de que o AR - Aviso de Recebimento da notificação deveria estar assinado necessária e pessoalmente pelo devedor fiduciante. Esta exigência frequentemente resultava em nulidades quando a carta era recebida por terceiros (porteiro, cônjuge, funcionário etc.).
A discussão foi encerrada com a edição da lei 13.043/14, que conferiu nova redação ao art. 2º, §2º, do decreto-lei 911/1969, nos seguintes termos: “A mora decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento e poderá ser comprovada por carta registrada com aviso de recebimento, não se exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário.”
A alteração legislativa de 2014 contribuiu consideravelmente para a maior efetividade da ação de busca e apreensão de bens fiduciários, porque alterou a forma de comprovação da mora. Com efeito, ao menos duas consequências devem ser destacadas: (i) a lei estabeleceu a presunção legal da mora pelo mero vencimento da obrigação - ou seja, a notificação passou a ser compreendida apenas como meio de prova, e não pressuposto constitutivo da mora; e (ii) consolidou-se a presunção de validade da notificação extrajudicial recebida no endereço do devedor, ainda que por terceiros, desde que haja comprovação do envio e do recebimento no endereço indicado no contrato.
Posteriormente, as inovações tecnológicas reacenderam a discussão sobre a utilização de outros meios de comprovação da mora, como a notificação por e-mail. A possibilidade ganhou força à medida em que a comunicação eletrônica foi se tornando ferramenta usual nas relações contratuais.
Em 2023, o STJ firmou, no Tema 1.132 sob o rito dos recursos repetitivos, a seguinte tese: “Em ação de busca e apreensão fundada em contratos garantidos com alienação fiduciária (art. 2º, § 2º, do decreto-lei 911/1969), para a comprovação da mora, é suficiente o envio de notificação extrajudicial ao devedor no endereço indicado no instrumento contratual, dispensando-se a prova do recebimento, quer seja pelo próprio destinatário, quer por terceiros.”.1
Desde então, tanto o legislador, quanto o STJ vêm reafirmando a necessidade de adequar a disciplina da constituição em mora à realidade dos meios de comunicação modernos, privilegiando, assim, a efetividade e a segurança jurídica.
O cenário atual das relações contratuais, marcado por maior agilidade, exige atualização das práticas, sobretudo para admitir o uso ou o emprego de inovações tecnológicas que já permeiam a vida social e econômica.
Foi nesse contexto que, em 2025, a 2ª seção do STJ reconheceu: a constituição em mora do devedor fiduciante pode ser comprovada por notificação encaminhada por e-mail, nos termos do art. 2º, § 2º, do decreto-lei 911/1969.
A decisão foi proferida no REsp 2.183.860/DF2, interposto de acórdão do TJ/DF que havia validado a notificação por meio de correio eletrônico e mantido a busca e apreensão do bem fiduciário. No Recurso Especial, o devedor sustentava que a reforma de 2014 visava apenas a simplificar o procedimento - dispensando a intermediação de Cartórios de Títulos e Documentos - e não a “permitir outros meios informais de comunicação ficta, tal como o e-mail”.
Contudo, esse argumento foi afastado pelo STJ que, se valendo da interpretação analógica como técnica de hermenêutica jurídica, concluiu: a notificação enviada por e-mail é tão válida quanto aquela recebida por terceiro no endereço do devedor indicado no contrato:
Sob esse aspecto, é possível, por interpretação analógica do art. 2º, § 2º, do decreto-lei 911/1969, considerar suficiente a notificação extrajudicial do devedor fiduciante por correio eletrônico, desde que seja encaminhada ao endereço eletrônico indicado no contrato e, principalmente, seja comprovado seu recebimento, independentemente de quem a tenha recebido.
Concluiu-se que a reforma legislativa de 2014 também alcança a notificação por e-mail, sendo, portanto, meio válido de comprovação da mora no âmbito da alienação fiduciária, consolidando interpretação condizente com a realidade tecnológica contemporânea.
Entretando, o STJ cuidou de estabelecer ao menos dois pressupostos de validade dessa notificação por e-mail: (i) a mensagem deve ser enviada ao endereço eletrônico indicado no contrato; e (ii) deve haver comprovação da efetiva entrega da mensagem.
E agora?
Se, por um lado, o entendimento do STJ - no sentido de que a notificação por e-mail é válida para comprovação da mora - alinha-se às inovações tecnológicas e à modernidade; de outro, impõe novos deveres de cautela aos credores. Se não constar expressamente do contrato o endereço eletrônico do devedor no contrato ou se for insuficiente a prova de recebimento poderá, no futuro, haver questionamentos.
Ainda, algumas dúvidas podem surgir, afinal, o que significa “comprovação idônea de recebimento”3 do e-mail?
Por isso, algumas condições devem ser fixadas para orientar a utilização da notificação por e-mail como prova de constituição do devedor em mora.
Em relação ao endereço eletrônico, há três condições fundamentais: (i) o contrato deve prever a possibilidade de comunicação via e-mail; (ii) o endereço eletrônico deve ser indicado pelo devedor e constar expressamente no contrato e; (iii) caberá ao devedor comunicar eventual alteração de seu endereço eletrônico, sob pena de, não o fazendo, ser presumida válida a comunicação dirigida ao e-mail constante no contrato –, por interpretação analógica do art. 274, parágrafo único, CPC, tal qual ocorre com as intimações dirigidas ao endereço constante dos autos.
Isso significa que, fornecido o endereço eletrônico e autorizada sua utilização no contrato, é válida a comunicação enviada a esse endereço de e-mail, não podendo o devedor alegar, posteriormente, desconhecimento ou invalidade do canal informado.
Já em relação à comprovação da efetiva entrega da mensagem as condições a serem fixadas exigem maior reflexão.
Em primeiro lugar, o comprovante de entrega da mensagem eletrônica não passa de uma prova documental e, por isso, como qualquer outra prova documental, sujeita-se às regras gerais dos arts. 405 e seguintes, CPC4, considerando-se autêntico quando não impugnado e competindo àquele que impugnar sua autenticidade o ônus5 de comprovar sua falsidade (art. 436 II, CPC), não admitindo-se alegação genérica6 a este respeito (art. 436, parágrafo único, CPC).
De qualquer sorte, a exigência de “comprovação idônea de recebimento” do e-mail independe de qualquer certificação formal. O comprovante de entrega possui, por si só, presunção de eficiência probatória7, submetendo-se ao regime comum da prova documental. Não fosse assim, aquilo que se pretendeu ser um facilitador - a comprovação da mora por meio da notificação encaminhada por e-mail - deixaria de sê-lo, pois a exigência de demonstração do recebimento por vias excessivamente formais frustraria esta finalidade.
Essa conclusão também decorre do exame da evolução jurisprudencial do STJ: antes do julgamento do REsp 2.183.860/DF, o posicionamento da 3ª turma do STJ era de que “descabe cogitar a possibilidade de reconhecer a validade da notificação extrajudicial enviada somente por correio eletrônico”8. À época, a ministra Nancy Andrighi registrou que “a ciência inequívoca de seu recebimento pressuporia o exame de uma infinidade de aspectos relacionados à existência de correio eletrônico do devedor fiduciante, ao efetivo uso da ferramenta pelo devedor fiduciante, a estabilidade e segurança da ferramenta de correio eletrônico e a inexistência de um sistema de aferição que possua certificação ou regulamentação normativa no Brasil, de modo a permitir que as conclusões dele advindas sejam admitidas sem questionamentos pelo Poder Judiciário.”9
De outro lado, a 2ª turma adotava o posicionamento de que “a aceitação, pelo Poder Judiciário, de métodos de comprovação de entrega de mensagens eletrônicas pode ser embasada na análise de sua eficácia e confiabilidade, como ocorre com qualquer prova documental, independentemente de certificações formais. Se a parte apresentar evidências sólidas e verificáveis que atestem a entrega da mensagem, assim como a autenticidade de seu conteúdo, o Magistrado pode considerar tais elementos válidos para efeitos legais”.10
As Turmas divergiam, razão pela qual a matéria foi levada a julgamento na 2ª sessão, quando venceu o entendimento defendido pela 4ª turma, dando origem ao acordão do 2.183.860/DF. Na oportunidade, a min. Nancy cuidou de lavrar voto-vista para justificar a revisão de seu posicionamento e trouxe uma série de dados empíricos, reveladores da massiva conectividade dos brasileiros à internet.
Portanto, a adoção de mecanismos de rastreabilidade e autenticação não constitui pressuposto legal para a eficácia da comunicação eletrônica. De qualquer sorte, recomenda-se a implementação de medidas11 que possam evitar ou mitigar futuras discussões quanto à irregularidade ou eficácia probatória da prova.
A comprovação de entrega do e-mail independe, também, de qualquer regulamentação normativa própria, justamente porque, tratando-se de prova documental, aplica-se o regime jurídico comum. Logo, na ausência de regulação específica, vigora o regramento geral do CPC. Afinal, como bem concluiu o min. Antonio Carlos, no julgamento do REsp 2.087.485/RS, “Exigir regulamentações e certificações específicas para cada nova tecnologia seria o mesmo que esvaziar o disposto no art. 2º, § 2º, do decreto-lei 911/1969, obrigando, na prática, as instituições financeiras a utilizarem somente a carta registrada com aviso de recebimento.”12
É de se ressaltar, ainda, que a comprovação de entrega do e-mail não se confunde com comprovação de leitura ou de resposta do devedor. Nesse particular, a analogia feita pelo STJ à carta com AR é clara: assim como não se exige que o aviso seja assinado pelo próprio destinatário, tampouco se exige, no meio eletrônico, qualquer confirmação de leitura, tampouco resposta, bastando que haja prova de que a mensagem chegou no canal indicado contratualmente.13
Essas condições valorizam a boa-fé contratual e a autonomia das partes para definirem meios válidos de comunicação. Ao mesmo tempo, impedem que o devedor se valha de alegações genéricas ou contraditórias para tentar desconstituir notificações regularmente expedidas via e-mail.
Cabe, agora, às instituições financeiras e credores fiduciários o cuidado de revisitarem imediatamente seus instrumentos contratuais para incluir o endereço eletrônico do devedor e definirem, de forma clara, o procedimento de comprovação de recebimento. Essa adequação não é apenas medida de prudência, mas também de alinhamento com a decisão mais atual do STJ.
A decisão sinaliza que o STJ - ao menos no que diz respeito a meios de prova - avança de forma irreversível para a incorporação de meios digitais como canais legítimos de comunicação formal. Afinal, a efetividade das garantias não pode depender de formalismos anacrônicos, mas devendo estar lastreada em meios idôneos de prova compatíveis com a realidade tecnológica atual.
O que se observa, é que o processo de busca e apreensão ganha em agilidade e eficiência, sem sacrificar garantias essenciais. Mais do que um reconhecimento da tecnologia como meio legítimo, a orientação assentada pelo STJ representa a consolidação de uma lógica jurídica mais funcional e aderente às inovações contemporâneas.
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1 STJ, REsp 1.951.662/RS, relator ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 9/8/2023, DJe de 20/10/2023.
2 STJ, REsp 2.183.860/DF, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 8/5/2025, DJe de 19/5/2025.
3 STJ, REsp 2.183.860/DF, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 8/5/2025, DJe de 19/5/2025.
4 “Além disso, existem, ainda, outros dispositivos com essa mesma lógica: o art. 411, III, do CPC (LGL\2015\1656) prevê que o documento será considerado autêntico quando não houver impugnação da parte contra quem foi produzido o documento. No mesmo sentido, o art. 412 do CPC (LGL\2015\1656) dispõe que, se a parte interessada não faz dúvida da autenticidade do documento particular, presume-se que o autor do documento fez a declaração que lhe é atribuída. O art. 428, I, do CPC (LGL\2015\1656), prevê que a fé do documento particular cessará quando a sua autenticidade for impugnada e não houver comprovação da sua veracidade. Já o art. 430 do CPC (LGL\2015\1656) prevê a possibilidade de suscitar a falsidade de documento colacionado aos autos.” PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. Print de WhatsApp como prova no processo civil in Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 50, n. 362, abr. 2025. 588 p.04.
5 “Constituiriam exemplos de ônus absolutos o do autor “de alegar na inicial todos os fatos de seu interesse” e o do réu, de alegar as exceções em sentido estrito (substanciais ou processuais); relativo seria a seu turno o ônus da prova, diante da possibilidade de o julgador reconhecer a ocorrência do fato não provado pelo interessado a partir de elementos de corroboração de outro modo aportados ao processo (inclusive pelo adversário)”. LEITE, Clarisse Frechiani Lara. Fatos e Provas Novos no Processo Civil. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2023. RB 5.10 E-book. Disponível aqui. Acesso em: 22 ago. 2025.[7] “Pode ainda a parte infirmar a eficácia probatória do documento. Exemplo disso se dá quando, sendo autêntico e verdadeiro o documento, a parte afirma que, por qualquer motivo, ele não tem o condão de demonstrar os fatos que com ele se queria comprovar”. DIDIER JR. Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil – v.2 – Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada Processo estrutural e Tutela Provisória. 19.ed., ver., atual., e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2024, p. 304.
8 STJ, REsp n. 2.035.041/RS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 27/4/2023.
9 STJ, REsp n. 2.035.041/RS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 27/4/2023
10 STJ, REsp n. 2.087.485/RJ, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 23/4/2024, DJe de 2/5/2024.
11 Tais como o arquivamento da íntegra do e-mail com seus metadados, que mostram o Protocolo de Internet (IP) do remetente, data e hora exatos do envio, servidores pelos quais passou, autenticações de segurança etc. Em regra, isso pode ser feito salvando-se o e-mail nos formatos “.eml” ou “.msg”, os quais preservam todas as informações técnicas embutidas.
12 STJ, REsp n. 2.087.485/RJ, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 23/4/2024, DJe de 2/5/2024
13 Nesse sentido: “Sob esse aspecto, é possível, por interpretação analógica do art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei n. 911/1969, considerar suficiente a notificação extrajudicial do devedor fiduciante por correio eletrônico, desde que seja encaminhada ao endereço eletrônico indicado no contrato e, principalmente, seja comprovado seu recebimento, independentemente de quem a tenha recebido”. STJ, REsp n. 2.087.485/RJ, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 23/4/2024, DJe de 2/5/2024.