Questão de Direito

Acordos e controle concentrado de constitucionalidade: combinam?

Teresa Arruda Alvim desvenda como o STF vem abrindo espaço para acordos em ações de controle concentrado, sem abandonar o exame da constitucionalidade, um novo caminho que aproxima o controle difuso e valoriza a força do consenso no Direito.

2/10/2025

Esse é daqueles temas que desafiam a dogmática tradicional. Afinal, o que se aprende na faculdade é que as ações de controle concentrado de constitucionalidade não dizem respeito a um caso concreto específico e, para que sejam solucionadas, basta que se faça uma comparação de textos: o da lei tida como inconstitucional (ou como constitucional) e o da CF/88. No sistema brasileiro temos um complicador, a figura da ADPF, que não encontra correspondente no Direito Estrangeiro.

Por isso é que gera uma dose considerável de estranheza supor-se poder haver acordos no bojo de uma ação como esta. Para usar uma terminologia própria do processo civil tradicional, diríamos que a lide, numa ação como esta, consiste exatamente em se saber se o texto do Direito Infraconstitucional apontado está (ou não) de acordo com o da CF/88. Como imaginar um acordo em tal contexto? Um acordo sobre considerar-se ou não se considerar constitucional um texto de lei? Não estaria, por acaso, o STF, abrindo mão de sua função?

O que tem acontecido cada vez com mais frequência é que as ações de controle concentrado têm nascido de situações concretas, em que a aplicação de determinada norma é apontada como inconstitucional. Isso significa que a inconstitucionalidade é levantada em função de uma situação concreta que não é, em si mesma, o conflito que se pretende, com uma ação de controle concentrado, resolver. Estes casos, embora possam dar ensejo à discussão abstrata da constitucionalidade da norma, são permeáveis à autocomposição. 

É claro que esta possibilidade que, a nosso ver, deve ser vista com bons olhos, porque apresenta incontáveis vantagens do ponto de vista pragmático, pode gerar problemas: se há um acordo no plano do conflito que gerou o questionamento a respeito da inconstitucionalidade da norma, permanece aberta a via para que esta constitucionalidade seja discutida em outra ação posterior? Quando o acordo é homologado, deve o tribunal manifestar-se sobre a constitucionalidade da lei, apontada na inicial da ação? A possibilidade de celebrar acordos transmuta o processo constitucional, tradicionalmente objetivo, em um processo de índole subjetiva?

É tarefa da doutrina e do próprio tribunal tentar resolver essas questões, e isso, evidentemente, deve ser feito de uma forma sistemática, para que não haja tratamentos diversos, em diferentes ações. Não é da índole do nosso processo civil, nem do processo constitucional, que as soluções sejam encontradas caso a caso. Um esforço da concepção de regras gera previsibilidade e respeito à isonomia, requisitos extremamente desejáveis porque levam à realização concreta da segurança jurídica.

É imprescindível que se diga que esses acordos não são possíveis nas ações de controle concentrado de constitucionalidade tradicionais, isto é, naquelas que se encaixam na descrição da doutrina e que não guardam relação com um conflito intersubjetivo subjacente. Óbvia e evidentemente, não pode haver acordos quanto à constitucionalidade da lei em si mesma.

Entretanto, nos últimos tempos, têm sido relativamente comuns acordos homologados em ações de controle concentrado, para, como se observou, por fim ao conflito subjacente, e nessas ações tem havido (nem sempre) manifestações a respeito da constitucionalidade do dispositivo apontado como inconstitucional (ou como constitucional).

Esta solução, como se vê, guarda relação de analogia com a solução prevista pelo legislador para os recursos repetitivos, quando há desistência: se decide sobre a questão jurídica (art. 998, parágrafo único do CPC). Isto se deve ao fato de que o processo constitucional, assim como as técnicas de formação de precedentes vinculantes, tem em vista a tutela do direito objetivo, havendo interesse público no pronunciamento do Poder Judiciário sobre a questão de direito.

Raciocínio análogo é aquele que leva à possibilidade de acordos com o Poder Público: naturalmente, não é o interesse público em si mesmo o objeto do acordo. Este é irrenunciável. O que se negocia é a forma por meio da qual este interesse será concretizado.

A situação da arguição de descumprimento de preceito fundamental é peculiar no contexto das demais formas de controle consta de constitucionalidade concentrado. Esta ação de controle concentrado tem hipótese de cabimento razoavelmente indeterminada. Por isso seu uso tem sido associado a situações que idealmente deveriam até mesmo ter dado origem a um processo do tipo estrutural. Nesses casos, o STF tem se incumbido bem, normalmente orientando a realização de um acordo. 

O primeiro dos acordos homologados pelo plenário do STF em processo de controle concentrado de constitucionalidade foi o que aconteceu na arguição de descumprimento de preceito fundamental 165, em que se discutiam perdas com expurgos inflacionários nos planos Bresser, Verão e Collor 2. Esta ação foi movida contra a Confederação Nacional do Sistema Financeiro, em março de 2009. Houve um processo de mediação conduzido pela Advocacia Geral da União que desembocou na homologação de acordo em 1/3/18. Não houve manifestação sobre a inconstitucionalidade apontada.

Posteriormente, o ministro Dias Toffoli, por meio da resolução 697, durante a sua presidência, criou o Centro de Mediação e Conciliação no STF. Em dezembro de 2023, foi criado o Núcleo de Solução Consensual de Conflitos, no âmbito do STF, sob a presidência do ministro Barroso, por meio do ato regulamentar 27, de 11 de dezembro deste mesmo ano.

Esses acordos vêm sendo realizados com base em participação da sociedade, realizada principalmente por meio de audiências públicas. 

Outro dado interessante é o de que em dois dos casos em que houve acordo, o próprio tribunal encaminhou ao Poder Executivo a proposta de alterações normativas bem como ao Congresso Nacional. 

O primeiro caso, foi o acordo dos Estados envolvendo a compensação do imposto sobre a circulação de mercadorias e prestação de serviços (ADPF 984 e ADIn 7.191). Neste caso, a minuta do acordo foi enviada ao Congresso, para que se transformasse em projeto de lei ou em PEC. O acordo acabou acontecendo porque se passaram muitos anos sem que o Legislativo tivesse tomado alguma iniciativa, então o STF resolveu tomar a iniciativa de mediar um acordo que fizesse as vezes da lei temporariamente, assim surgiu o acordo ADO 25, que também foi enviado ao Legislativo para que fosse convertido em lei. Enquanto isso não ocorre o acordo continua produzindo efeitos. 

Outro exemplo interessante é o da ADPF 829, ajuizada pelo governador do Rio Grande do Sul, em que este questionava a ordem de prioridade estabelecida pelo plano de operacionalização de vacinação contra a Covid-19, elaborado pelo Ministério da Saúde. O pedido foi no sentido de que fossem incluídos os profissionais de educação entre os grupos prioritários, especialmente diante da retomada das aulas presenciais. Esse pedido havia sido negado pelo Ministério da Saúde, pelo que foi pleiteada a declaração de inconstitucionalidade das diretrizes técnicas do plano. Foi homologado acordo entre o Estado do Rio Grande do Sul e a União, tendo esta se disponibilizado a fornecer, de forma regular e gradativa, doses de vacina para os profissionais da área de educação. Neste caso, o STF não se pronunciou sobre o mérito, tendo havido exclusivamente a homologação do acordo celebrado entre as partes. 

Nas ADIns 7.433, 7.483, 7.486 e 7.487, de relatoria do ministro Cristiano Zanin, sendo apenas a ADIn 7.486 de relatoria do ministro Dias Toffoli, se discutia a constitucionalidade de leis estaduais que limitavam a participação de mulheres nos concursos públicos para a polícia militar e para o corpo de bombeiros no Distrito Federal, no Rio de Janeiro, no Mato Grosso e no Pará. Em todas essas ações houve acordos, pondo fim ao conflito subjacente, tendo, no entanto, o procedimento prosseguido para enfrentar o mérito da inconstitucionalidade apontada na ação. 

Dentre as várias razões que nos levam a ver com bons olhos a possibilidade da celebração de acordos em ações de controle concentrado está o fato de que, nos dias de hoje, não há diferença fundamental, para não dizer que não há diferença alguma, entre a eficácia de uma decisão proferida numa ação de controle concentrado e a eficácia de uma ação proferida no controle difuso feito no âmbito do STF no regime da repercussão geral. Embora se possam fazer malabarismos com palavras, indo e voltando no exame das expressões efeito vinculante e efeito erga omnes, o fato é que dessas decisões resultam regras que devem ser obedecidas por todos. São verdadeiras normas jurídicas, cuja eficácia equivale à das normas emanadas do Poder Legislativo. 

Portanto... se pode haver acordo no bojo de um recurso extraordinário, julgado no regime da repercussão geral, por que não poderia haver acordo numa ação de controle concentrado?  Mesmo os doutrinadores mais céticos não conseguem deixar de ver uma aproximação evidente entre o controle concentrado e o controle difuso, quando feito pelo próprio STF. De fato, há muito tempo se fala da “objetivação” do recurso extraordinário, expressão essa que revela, exata e precisamente, esta aproximação. A nosso ver, trata-se, de rigor de identificação. Logo, ou se admitem acordos em ambos os procedimentos, ou em nenhum dos dois.

A nosso ver, para que o STF não abra mão da sua função, fugindo um pouco da ortodoxia das regras do processo civil tradicional, deve o acordo ser homologado e também deve haver manifestação a respeito da constitucionalidade da norma, cuja constitucionalidade se discute. Com isso, além de o STF não estar abrindo mão da sua função, estará fechando as portas para o ajuizamento de uma nova ação de controle concentrado.

Este é um feliz exemplo de uma saída, harmônica com novos tempos em que a consensualidade vem sendo progressivamente valorizada, encontrada no plano da jurisprudência, muito provavelmente fruto da sensibilidade social dos magistrados, que percebem que, em todo e em qualquer contexto, a melhor solução é sempre a consensual. Agora, cabe à doutrina, interpretar o que vem ocorrendo no contexto do ordenamento jurídico brasileiro, aquilo que os tribunais vêm fazendo, com o objetivo de sistematizar as regras que vêm sendo criadas no plano da jurisprudência, sem abrir mão, é claro, do olhar crítico. É este olhar que nos diz, por exemplo, que a manifestação sobre a constitucionalidade da norma é sempre imprescindível. Afinal, se a doutrina não tiver este olhar crítico, é melhor que nem exista.

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão & Lins Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.