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Multiparentalidade - Dupla Paternidade/Maternidade

Multiparentalidade busca proteger não somente a criança ou adolescente, mas pessoa que durante anos desenvolveu relação socioafetivo como se pai/mãe fosse.

27/3/2015
Rivadavio Anadão de Oliveira Guassú Jéssica Cova e

O conceito de Família vem passando por significativas mudanças, especialmente a partir da CF/88. Antes marcado por uma bagagem conceitual extremamente conservadora, o tema evoluiu com a evolução no pensamento, nas atitudes e nas relações socioafetivas, que aos poucos foram incorporadas pelo nosso ordenamento jurídico.

Anteriormente a família era vista sob um enfoque patrimonial e era formada exclusivamente pelo matrimônio, ou seja, a família era somente aquela advinda do casamento entre um homem e uma mulher.

A família contemporânea, por outro lado, é formada pelo vínculo afetivo e deve ser analisada não somente sob o prisma do CC, mas também pelas disposições e princípios da CF, especialmente pelo princípio da dignidade da pessoa humana, bem como sob o enfoque das previsões do ECA.

Com a evolução das relações sociais tornou-se comum o divórcio de casais e o novo casamento dos pais da criança e do adolescente, culminando no surgimento de vínculos afetivos com as madrastas e padrastos.

Em muitos desses casos o “padrasto/madrasta” mantém com os filhos do cônjuge laços de zelo, dedicação, educando-o e proporcionando o que lhe é necessário para uma vida digna. Cria-se, dessa forma, vínculo socioafetivo com as mesmas e, muitas vezes, os mesmos são reconhecidos pelas crianças e adolescentes como outro pai/mãe.

Esse fenômeno demonstra que a família ultrapassou o território exclusivo do matrimônio, estando em constante mudança. Considerando que o novo conceito de família tem origem no afeto, essa relação socioafetiva na qual, uma pessoa diversa do parentesco biológico assume a função de pai/mãe na vida da criança/adolescente, merece especial proteção perante a sociedade.

Assim, para que a família possa cumprir seu objetivo principal qual seja a promoção da dignidade, mostra-se imprescindível a manutenção dos vínculos afetivos existentes naquele núcleo familiar, mesmo que ele fuja dos padrões, o que pode ocorrer através do reconhecimento da multiparentalidade.

A multiparentalidade (dupla maternidade/paternidade) busca proteger não somente a criança ou adolescente, mas também a pessoa que durante anos desenvolveu uma relação socioafetivo como se pai/mãe fosse.

Saliente-se que a paternidade/maternidade biológica não é suprimida pela paternidade/maternidade socioafetiva, estando ambas em igual patamar e sob os mesmos efeitos jurídicos, abrindo-se a possibilidade de se reclamar todos os direitos inerentes a paternidade socioafetiva, inclusive herança, tudo visando precipuamente a proteção integral da criança e do adolescente.

Apesar de não haver previsão legal expressa para o reconhecimento da multiparentalidade, sendo um tema relativamente novo, temos que considerar que, a CF outorga para quem planeja constituir família, ampla liberdade de escolha, consubstanciada pelo livre planejamento familiar (artigo 226, parágrafo 7°), sendo que, em situações semelhantes, o poder judiciário já vem reconhecendo a multiparentalidade e a possibilidade de manutenção no registro da criança de dois pais, dois pais e uma mãe, ou vice versa.

Em brilhante decisão o STJ, nos autos do REsp 889.852/RS, analisando a possibilidade de adoção de crianças por um casal homoafetivo, reconheceu a existência da dupla maternidade em decorrência dos vínculos afetivos existente entre as partes, senão vejamos:

“8. É incontroverso que existem fortes vínculos afetivos entre a recorrida e os menores – sendo a afetividade o aspecto preponderante a ser sopesado numa situação como a que ora se coloca em julgamento.”

“10. O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade fenomênica. Vale dizer, no plano da “realidade”, são ambas, a requerente e sua companheira, responsáveis pela criação e educação dos dois infantes, de modo que a elas, solidariamente, compete a responsabilidade.

11. Não se pode olvidar que se trata de situação fática consolidada, pois as crianças já chamam as duas mulheres de mães e são cuidadas por ambas como filhos. Existe dupla maternidade desde o nascimento das crianças, e não houve qualquer prejuízo em suas criações.”

12. Com o deferimento da adoção, fica preservado o direito de convívio dos filhos com a requerente no caso de separação ou falecimento de sua companheira. Asseguram-se os direitos relativos a alimentos e sucessão, viabilizando-se, ainda, a inclusão dos adotados em convênios de saúde da requerente e no ensino básico e superior, por ela ser professora universitária.”

Assim, demonstrada a paternidade/maternidade socioafetiva, mostra-se possível a busca no judiciário do reconhecimento da mesma com a manutenção no registro dos pais biológicos, ou seja reconhecendo-se a multiparentalidade (dupla paternidade/maternidade), tudo para proteção integral da criança e do adolescente.

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*Rivadavio Guassú e Jéssica Cova são advogados do escritório Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados.

Rivadavio Anadão de Oliveira Guassú

Rivadavio Guassú, advogado na Guassú Advocacia. Pós Graduando em Direito Administrativo pela PUC SP. Possui 15 anos de experiência na defesa de servidores públicos. Mais informações: guassu.adv.br

Jéssica Cova

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