Migalhas de Peso

Medicamentos de alto custo: reserva do possível ou mínimo existencial?

Além do mínimo necessário à sobrevivência humana, também está o bem estar social e o Estado Democrático de Direito, os quais se interligam em questões de saúde pública.

5/3/2020
Bianca Stephanie Souza Ragasini

Inicialmente, antes mesmo de explicar o debate existente acerca destes dois princípios, faz-se necessário o entendimento de cada um deles, para compreender sua relevância no direito administrativo (visto ser o medicamento requerido de responsabilidade pública), no direito constitucional (por ser a saúde um direito fundamental previsto constitucionalmente) e no direito tributário (uma vez que envolve questões orçamentárias).
Reserva do possível

Entende-se por reserva do possível, a limitação do Estado ao investir em condições sociais, como a saúde. Dentre os motivos para tanto, está a verba orçamentária, visto que, ao utilizar altos valores com um indivíduo, outros terão menos recursos, pois haverá desequilíbrio financeiro. Justamente por conta disto, deve-se observar três pontos em sua pretensão: a proporcionalidade, a razoabilidade e a disponibilidade financeira do Estado.

Em dados recentes deste ano de 2020, do Portal da Transparência, da Controladoria Geral da União, o orçamento para a saúde é de 136,25 bilhões de reais, e o total de despesas executadas nesta mesma área é de 10,21 bilhões de reais. Estes valores são distribuídos para órgãos e entidades executadoras, bem como para fundos de saúde e associações.

A questão é que, embora os valores empregados sejam altíssimos, a demanda é ainda maior. Provavelmente o valor supriria a maior parte da população ou quase todas as pessoas se não fosse preciso medicamentos de alto custo para parcela delas. Mas não é assim que funciona. Muitos necessitam de remédios específicos para se manterem vivos, motivo pelo qual os pleiteiam judicialmente.

Embora o Estado tenha a obrigação de tratar da saúde pública, não é o valor integral de todos os tributos que é revertido para a mesma. Há também demais áreas que necessitam de investimentos, como a educação, a moradia, a cultura e etc., todos eles previstos no rol dos direitos fundamentais da Constituição Federal.

Por conta disto, ao ultrapassar o valor reservado para a área da saúde, há risco de faltar verba pública nas demais áreas, pois os recursos financeiros por parte do Poder Público são escassos, e com isso, originam-se as escolhas trágicas. 

Contudo, sabe-se que uma vida humana importa, e importa muito. Justamente por isso, a Constituição a protege e trouxe o fundamento do mínimo existencial, conforme exposto a seguir.

Mínimo existencial

Compreende-se por mínimo existencial tudo aquilo que é necessário para uma vida digna, pois é observado o princípio da dignidade da pessoa humana. Há previsão constitucional a seu respeito, no artigo 1º, inciso III, da CRFB/88, conforme passa a expor:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana; (...)

Portanto, ao se tratar de saúde pública, embora o Estado tenha que lidar com limites orçamentários, o indivíduo não pode deixar de ser amparado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

O autor Clever Vasconcelos (2017) aponta que a dignidade da pessoa humana cuida do "conjunto de diversos direitos fundamentais indeterminados; por exemplo, o mínimo existencial e a proteção do Estado a sofrimentos evitáveis. Vale dizer que os direitos fundamentais são passíveis de renúncia desde que não se ofenda a dignidade dessa pessoa". (p. 72).

Ainda, após mencionar o que se entende por este princípio tão importante no direito constitucional, o mencionado doutrinador faz uma ligação com os medicamentos de altos valores em um possível Mandado de Segurança, para pleitear tal direito líquido e certo. Vejamos:

Na prática, podemos imaginar a seguinte situação: alguém impetra um Mandado de Segurança contra o Secretário de Saúde do Estado (ou ministro, ou do município – em questão de saúde são solidários), para liberar medicamentos caros. Usa-se este fundamento como comando-regra, pois pode ser aplicado de imediato. Conforme se verá adiante, como matéria de defesa o Estado usa a Teoria da Reserva do Possível – não é possível atender a todos; cabe ao Estado determinar o que é prioridade, onde utilizar o recurso. No caso em tela, podemos supor que com a verba de apenas um medicamento o Estado poderia empregar este dinheiro para comprar cinco mil xaropes para tuberculosos. Todavia, atendendo às condições casuísticas, geralmente o Judiciário concede ordem para o medicamento ser fornecido ao particular. A regra de legitimidade dos gastos públicos está ligada ao atendimento do bem-estar social. (VASCONCELOS, 2017, p. 72).

Pois bem. Pode-se observar que, além do mínimo necessário à sobrevivência humana, também está o bem estar social e o Estado Democrático de Direito, os quais se interligam em questões de saúde pública. Os tributos que pagamos são revertidos para diversas ações em prol da sociedade, e a saúde é uma delas. Assim, cabe ao poder público o amparo com quem necessita, seja de um xarope ou de um medicamento de valor exorbitante.
O debate existente acerca destes dois princípios constitucionais

O debate jurídico é justamente este: de um lado tem-se a limitação do Estado, e do outro, a dignidade da pessoa humana que necessita ser levada em consideração pelo Poder Público.

E o que se faz, nestes casos então? Observa-se quais os medicamentos estão registrados na Anvisa e os fornece.

Mas, e se o remédio não estiver registrado? Neste caso, o Supremo Tribunal Federal já entendeu o que se deve fazer, conforme decisão abaixo.

Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)

No mês de maio do ano de 2019, o Supremo entendeu que o Estado não é obrigado a fornecer medicamento experimental ou sem registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), salvo em casos excepcionais. Assim, conforme o STF, a decisão foi tomada, por maioria de votos, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 657718, com repercussão geral reconhecida, de relatoria do ministro Marco Aurélio.

A tese firmada pelo Plenário, por maioria dos votos, para efeito de repercussão geral, foi no seguinte sentido:

1) O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.

2) A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.

3) É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na lei 13.411/16), quando preenchidos três requisitos:

I – a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras;

II – a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior;

III – a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

4) As ações que demandem o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão ser necessariamente propostas em face da União.

Logo, pode-se perceber que não se trata de uma negação absoluta por parte do Poder Público em fornecer os referidos medicamentos, pois cabe exceção aplicável em casos excepcionais: de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido. Portanto, a não obrigatoriedade do Estado em seu fornecimento é regra, sendo a mora irrazoável, exceção.

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BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Disponível em: Clique aqui.

BRASIL. Portal da Transparência. Controladoria Geral da União. Disponível em: Clique aqui.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão do STF desobriga Estado de fornecer medicamento sem registro na Anvisa. Disponível em: Clique aqui.

VASCONCELOS, Clever. Curso de Direito Constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2017. (p. 71/72).

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*Bianca Stephanie Souza Ragasini é bacharel em Direito pela Universidade de Taubaté.

Bianca Stephanie Souza Ragasini

Advogada. Especialista em Direito Público com ênfase em Gestão Pública. Membro da Comissão da Jovem Advocacia da 36ª Subseção. Autora de sites jurídicos. Me siga no instagram: biancaragasini.juridico

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