Migalhas de Peso

Fritadeira elétrica ou vida? Robô-aspirador ou liberdade?

Prioridades de uma sociedade doente

1/7/2020
Cauê Bouzon Machado Freire Ribeiro

Diversos estudos apontam o isolamento social e a testagem em massa da população como os meios mais eficazes de mitigar a disseminação do coronavírus.1 Mesmo assim, por aqui, o isolamento é muito pouco respeitado e bem menos estimulado do que deveria pelo Poder Público. Além disso, o Brasil é o país que menos testa no mundo2, já registra quase 50 mil mortos por covid-193 e caminha a passos largos para superar os Estados Unidos como recordista mundial em número de mortes.4

Como se nada disso estivesse acontecendo, noticia-se amplamente um movimento nacional de flexibilização das regras de isolamento social.5 6 O “relaxamento” é explicado pelos governantes com base em uma suposta necessidade emergencial de reaquecimento do comércio.7 Isso mesmo, abre-se mão de medidas que salvam vidas por razões comerciais. E isso não é sequer escondido, é discurso oficial mesmo.

A irresponsável “volta do comércio”, traz consigo a óbvia reflexão sobre as prioridades de nossos representantes e da própria sociedade. Que não ligam para a vida alheia, já ficou claro. Que não escondem isso, também. Mas, ao menos, sejam coerentes.

Como justificar a flexibilização de medidas sanitárias para que o “comércio volte a produzir” e continuar super rigoroso no que diz respeito a não realização de audiências e atos processuais presenciais durante a pandemia?

Os Tribunais de Justiça de todo o país elaboraram portarias, decretos e resoluções suspendendo as audiências de custódia, Tribunais do Júri e vários outros atos que dependem da presença física do réu, seu defensor, promotor de justiça e juiz, baseando a decisão em orientações da Organização Mundial da Saúde.8

Contudo, diante da abertura de shoppings centers, salões de beleza e restaurantes (atividades obviamente não essenciais) fica difícil justificar a manutenção da suspensão dos atos processuais. As regras sanitárias só devem ser seguidas por atores processuais e réus? De que adianta não ter audiências, que reúnem, diga-se de passagem, ente quatro e cinco pessoas no mesmo ambiente, e ter aglomerações em restaurantes, bares e centros comerciais? É isso mesmo que o caro leitor está pensando: de nada, não vale absolutamente de nada. É totalmente ilógico e só deixa escancarada a existência de uma sociedade doente.

Lembrando que o adiamento destes procedimentos leva a um processo com maior grau de aflição ao réu, pois mais demorado, ou, até mesmo, é sinônimo da manutenção de prisões provisórias, fazendo crescer o número já absurdo de presos aguardando julgamento no Brasil.9 Ao contrário da abertura de shoppings, no caso de pessoas presas, há urgência na realização do ato, e a atividade judiciária deve, sim, quase que por obviedade, vez que lida com a liberdade das pessoas, ser considerada uma atividade essencial.

Estamos mesmo naturalizando o fato de que produtos e o consumismo valem mais do que seres humanos? Normalizou-se de tal forma a objetificação da pessoa processada criminalmente ou presa que não conseguimos mais percebê-las como seres humanos? A sociedade é tão consumista e capitalista a ponto de crer ser mais essencial comprar do que tutelar a liberdade de uma pessoa?

Estas perguntas parecem se inclinar para uma resposta positiva. A coisificação dos homens e mulheres encarcerados chegou ao ponto de valer menos do que um robô-aspirador ou uma fritadeira elétrica, sonhos de consumo de uma burguesia cega para os problemas sociais ao seu redor. Cega a tal ponto de sair para o shopping, mesmo sabendo que pode ser um disseminador do vírus e que quase meio milhão de pessoas perderam sua vida para esta doença.10

O poeta, compositor e cantor Cazuza já dizia, 31 anos atrás, em uma de suas músicas mais vanguardistas:

A burguesia quer ser sócia do Country.
A burguesia quer ir a New York fazer compras. São caboclos querendo ser ingleses.
A burguesia só olha pra si, a burguesia só olha pra si [...] A burguesia fede, a burguesia quer ficar rica”.

Triste, preocupante, agoniante. Parece mesmo que a humanidade não deu certo. Tomara que a espécie que nos suceda neste farto planeta seja mais, ou menos, já nem sei mais, humanos.

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*Cauê Bouzon Machado Freire Ribeiro é defensor Público do Estado do Paraná. Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-graduado em Direito Processual Civil. Pós-graduando em Direitos Humanos no Ciclo de Estudos Pela Internet (Curso CEI).

Cauê Bouzon Machado Freire Ribeiro

Defensor Público do Estado do Paraná. Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-graduado em Direito Processual Civil. Pós-graduando em Direitos Humanos no Ciclo de Estudos Pela Internet (Curso CEI).

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