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Receita Federal volta a analisar VT e VR na solução de consulta 58/2020

É imprescindível que o entendimento da Receita Federal seja interpretado e aplicado pelas Autoridades Fiscais com o devido cuidado.

2/7/2020
Cristiane I. Matsumoto , Mariana Monte Alegre de Paiva e Lucas Barbosa Oliveira

Em 30 de junho de 2020, a Receita Federal publicou a solução de consulta Cosit 58/2020, tratando, ainda que de forma oblíqua, sobre a tributação dos benefícios indiretos de vale-transporte e auxílio-alimentação.

Primeiramente, é importante notar que a solução de consulta Cosit 58/2020 foi formulada por uma autarquia federal que, na condição de órgão da Administração Pública, tem a obrigação de reter 11% do valor bruto da nota fiscal, fatura ou recibo de prestação de serviços quando da contratação de serviços prestados mediante cessão de mão-de-obra, nos termos do artigo 31 da lei 8.212/1991.

A nosso ver, o teor da solução de consulta, portanto, vincula apenas os contribuintes que se enquadrem na hipótese por ela abrangida, nos exatos termos do artigo 9º da instrução normativa 1.396/2013. Logo, entendemos que somente os órgãos da Administração Pública contratantes de serviços envolvendo cessão de mão-de-obra estão abarcados pelo entendimento da Receita Federal.

A despeito disso, vale examinar o teor da referida solução. A autarquia questionou, de forma específica, o disposto no artigo 124 da instrução normativa 971/2009, que autoriza, nesse caso particular da retenção, a dedução das parcelas correspondentes ao custo da alimentação fornecida pela empresa contratada e o fornecimento de vale-transporte. Note-se que referido artigo 124 não especifica se o custo abarca a parcela paga pela contratada e também a parcela descontada dos salários dos empregados da contratada.

Para responder ao questionamento feito pela autarquia, a Receita Federal se debruçou sobre a legislação previdenciária. Quanto ao vale-transporte, entendeu que, caso a empresa contratada pela autarquia deixe de descontar o percentual de 6% (previsto na lei 7.418/1985), ou recolha a menor, a diferença será considerada salário e deverá incidir contribuições previdenciárias.

Quanto ao vale-alimentação, porém, a Receita Federal vai além, embora de forma pontual e sem grandes fundamentações, ao afirmar que "eventual parcela desse auxílio for descontada da remuneração do empregado, esses valores comporão o salário de contribuição, e, portanto, não serão dedutíveis da base de cálculo".

No caso do auxílio-alimentação, assim como ocorre com o vale-transporte, é importante pontuar que, em nenhum momento, a lei 8.212/1991, em seu artigo 28, § 9º, delimita a isenção sobre a parcela "paga pela empresa", como pretende fazer crer a Receita Federal. A simples leitura dos dispositivos evidencia isso. O referido artigo 28, § 9º expressamente retira da base de cálculo da contribuição previdenciária - denominada salário-de-contribuição -  diversas verbas.

Tecnicamente, a nosso ver, não se trata de uma isenção propriamente dita. É mais do que isso: ao delimitar o campo de incidência, o legislador propositalmente deixou de contemplar as verbas que estão listadas no artigo 28, § 9º da lei 8.212/1991.

O racional que embasa a não incidência decorre da própria Constituição Federal: a empresa, ao prover tal benefício previdenciário aos seus empregados, assume o papel que deveria estar sendo protagonizado pelo Estado, enquanto agente responsável pela manutenção do Sistema de Seguridade Social1.

Assim sendo, seria completamente irrazoável e contraditório exigir que as empresas incluíssem tal benefício na base de cálculo da contribuição previdenciária, tributo constitucionalmente direcionado para financiamento da Previdência Social (Regime Geral da Previdência Social – RGPS).

No caso do vale-transporte e do auxílio-alimentação, os benefícios indiretos estão em geral decompostos em duas parcelas: aquela custeada pela empresa (cota patronal) e aquela custeada diretamente pelo empregado, com seus recursos próprios. Tais parcelas têm, indiscutivelmente, a natureza jurídica não salarial, conforme disposto no artigo 457 da CLT23 e entendimento pacífico do STF4, para vale-transporte e decisões do STJ5, para o auxílio-alimentação.

Ainda que a Receita Federal não tenha discorrido de forma clara e completa sobre o seu entendimento, nos parece que a natureza jurídica destes benefícios é a mesma, pouco importando se o custo está sendo incorrido pelas empresas ou diretamente pelos seus empregados. Em resumo: o benefício, como um todo, deveria estar fora do campo de incidência das contribuições previdenciárias.

Logo, para ambos os benefícios, o valor descontado dos empregados não tem natureza remuneratória e, ademais, está abarcado pela regra isentiva.

Se aplicada de forma indistinta, a solução de consulta pode levar à conclusão de que as empresas em geral não poderiam excluir da sua base de cálculos a parcela dos benefícios isentos descontados dos empregados, o que, como visto, é plenamente passível de exclusão. Inclusive, há uma série decisões judiciais nesse sentido. Portanto, é imprescindível que o entendimento da Receita Federal seja interpretado e aplicado pelas Autoridades Fiscais com o devido cuidado.

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1 "Constituição Federal. Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:

I - universalidade da cobertura e do atendimento;

II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;

III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;

IV - irredutibilidade do valor dos benefícios;

V - eqüidade na forma de participação no custeio;

VI - diversidade da base de financiamento;

VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados."

2 Art. 457 - Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber. (...)

§ 2º As importâncias, ainda que habituais, pagas a título de ajuda de custo, auxílio-alimentação, vedado seu pagamento em dinheiro, diárias para viagem, prêmios e abonos não integram a remuneração do empregado, não se incorporam ao contrato de trabalho e não constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário.

3  Art. 458 - Além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações "in natura" que a empresa, por força do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado. Em caso algum será permitido o pagamento com bebidas alcoólicas ou drogas nocivas. (...)

§ 2º Para os efeitos previstos neste artigo, não serão consideradas como salário as seguintes utilidades concedidas pelo empregador: (...)

III – transporte destinado ao deslocamento para o trabalho e retorno, em percurso servido ou não por transporte público;     

4 STF, Tribunal Pleno, RE 478410, relator ministro Eros Grau, julgamento de 10/3/2010

5 REsp 1.185.685, 1ª turma do STJ, ministro Luiz Fuz, DJE 10/5/2011

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*Cristiane I. Matsumoto é sócia da área previdenciária do Pinheiro Neto Advogados.

*Mariana Monte Alegre de Paiva é associada da área previdenciária do Pinheiro Neto Advogados.

*Lucas Barbosa Oliveira é associado da área previdenciária do Pinheiro Neto Advogados.







*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. 

© 2020. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS

Cristiane I. Matsumoto

Sócia do escritório Pinheiro Neto Advogados.

Mariana Monte Alegre de Paiva

Advogada do escritório Pinheiro Neto Advogados.

Lucas Barbosa Oliveira

Associado da área previdenciária do Pinheiro Neto Advogados.

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