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Recuperação judicial e atividade não empresária

Em uma perspectiva histórica, se verifica que Bento de Faria dissecou quais eram os países que faziam o uso da distinção entre empresários e não empresários. Este é um critério atualmente adotado para separar quem tem acesso aos procedimentos de recuperação e de falência em contraposição ao sistema de insolvência.

7/8/2020
André Fernandes Estevez e Caroline Pastro Klóss

1. Introdução

Entre tantos pontos que têm sido discutidos habitualmente, este é um tema que, embora não tão atual, permanece extremamente controvertido, com grandes discussões doutrinárias e jurisprudenciais.

Em uma perspectiva histórica, se verifica que Bento de Faria1 dissecou quais eram os países que faziam o uso da distinção entre empresários e não empresários. Este é um critério atualmente adotado para separar quem tem acesso aos procedimentos de recuperação e de falência em contraposição ao sistema de insolvência2. Os relatos indicam uma divisão entre três modelos: anglo-saxônico, germânico e francês.

Os modelos anglo-saxônico e germânico possuem caráter ampliativo, por não distinguir, para estes fins, as atividades como empresárias ou não empresárias, ao passo que o modelo francês é restritivo por fazer a mencionada distinção, sendo que neste a falência e a concordata são institutos exclusivamente mercantis3. O Brasil, tributário do modelo francês, segue uma corrente que à época já era minoritária, uma vez que não eram tantos países da cultura ocidental que faziam essa distinção entre comerciantes e não comerciantes.

Muito embora o modelo francês tenha sido abandonado pela maioria dos ordenamentos jurídicos, inclusive pela França4, nosso país segue utilizando tal modelo restritivo. Nos Estados Unidos, de tradição diversa, por exemplo, o Chapter 11 (Bankruptcy Code) admite a aplicação para todos os negócios, incluindo pessoas físicas5. O Brasil remanesce numa tradição que faz muito pouco sentido, não parece natural e historicamente, nas mais variadas legislações6, não tem sido tradicional.

São muitos os reflexos que resultam da distinção entre empresários e não empresários. No entanto, o que se tem observado, a partir de casos de ampla repercussão, é um importante movimento por parte da doutrina e também da jurisprudência em admitir os mecanismos de reestruturação, previstos na lei 11.101/05, para atividades que, originalmente, não se enquadravam como empresárias ou que possuem registro como atividade empresária há menos de dois anos7. Nesse sentido, merecem destaque a recuperação judicial de produtores rurais8, de cooperativas9 e também de associações, tal como da AELBRA (mantenedora da ULBRA) e da Universidade Cândido Mendes (UCAM)10.

Para ler o artigo na íntegra clique aqui.

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1 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F., 1947, t. 1. p. 27-33. 

2 O critério de dicotomia entre empresários e não empresários também leva a outros efeitos, como algumas distinções tributárias e no campo do direito das obrigações, assuntos que não são objeto de análise neste texto.

3 CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. 3. ed. Vol. VII. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1939. pp. 123/124.

4 O que pode ser vislumbrado no Art. L631-2, do Code de Commerce francês: “La procédure de redressement judiciaire est applicable à toute personne exerçant une activité commerciale, artisanale ou une activité agricole définie à l'article L. 311-1 du code rural et de la pêche maritime et à toute autre personne physique exerçant une activité professionnelle indépendante y compris une profession libérale soumise à un statut législatif ou réglementaire ou dont le titre est protégé, ainsi qu'à toute personne morale de droit privé.”

5 Conforme se observa nas disposições do Chapter 1, General Provisions (§§ 101 – 112), Title 11 - Bankruptcy.

6 Nesse sentido, verifica-se em países como Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Coreia do Sul, Espanha, Estados Unidos, França, Índia, Inglaterra, Itália, México, Portugal e Rússia.

7 Além da controvérsia já existente em razão da dicotomia, outra discussão se insere. Parte da doutrina e da jurisprudência compreendeu que a redação do art. 48 da lei 11.101/2005 exigia que a atividade fosse registrada e empresária há dois anos. Esta posição mais restritiva está em franco declínio. Com efeito, o art. 48 diz que pode postular recuperação judicial “o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos”, sem mencionar que o registro tenha que existir há dois anos (o Art. 51, V, exige apenas a existência do registro) e também sem mencionar que a atividade precisa estar caracterizada como empresária há dois anos (o Art. 1º apenas indica que a lei será aplicável a empresários ou sociedades empresárias, sem fixar prazo para tal). Erasmo Valladão esclarece que a lei criou diversos pequenos incentivos para que se faça o registro, devendo ser considerado o indicativo de registro como um estímulo neste sentido (FRANÇA, Erasmo Valladao Azevedo e Novaes. A sociedade em comum: uma mal compreendida inovação do Código Civil 2002. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro: São Paulo, v. 52, n. ja ago. 2013, p. 32-61). Ademais, o prazo de 2 anos de exercício de atividade (que também não é comum nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, que normalmente não fixam qualquer prazo para que se possa pedir recuperação judicial) tem a finalidade de evitar pedidos de recuperação judicial de atividades que enfrentem crise semanas ou poucos meses após o seu início, fundado na ideia de que negócios em estágio inicial naturalmente possuem maior risco de insucesso (assim aponta estudo estatístico desenvolvido pelo SEBRAE, disponível em: Clique aqui ).

8 Sobre recuperação judicial de produtor rural ver mais em: Clique aqui

9 No que se refere a possibilidade de recuperação judicial de cooperativas: Clique aqui

10 Importante pontuar a distinção entre o caso envolvendo a Recuperação Judicial do Instituto Cândido Mendes e a Recuperação Judicial da AELBRA (mantenedora da ULBRA). No segundo caso houve a transformação da associação para sociedade anônima, através da realização de registro antes da propositura do pedido. Sobre o tema envolvendo a Recuperação Judicial da AELBRA: Clique aqui

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*André Fernandes Estevez é professor adjunto de Direito Empresarial na PUC/RS. Doutor em Direito Comercial pela USP. Sócio do escritório Estevez Advogados.





*Caroline Pastro Klóss
é mestranda em Direito pela Universidade de Lisboa. Sócia do escritório Estevez Advogados.

André Fernandes Estevez

Diretor executivo da Câmara de Arbitragem da FEDERASUL (CAF). Professor adjunto de Direito Empresarial na PUCRS. Doutor em Direito Comercial pela USP. Sócio em Estevez Advogados.

Caroline Pastro Klóss

Mestranda em Direito pela Universidade de Lisboa. Sócia do escritório Estevez Advogados.

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