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Acidentes aeronáuticos: De quem é a competência para investigar? Polícia, Ministério Público, ANAC ou Aeronáutica?

A sociedade brasileira pôs em pauta um longo debate legislativo para o melhoramento e aperfeiçoamento da atividade aérea no país, inserindo-se, nesse contexto, a investigação de acidentes aeronáuticos.

7/8/2020
Ricardo Fenelon Junior e Adriano Trindade

Há aproximadamente um mês, no dia 8/7/20, em plena quarta-feira fim de expediente, começamos a receber por mensagem imagens de um avião que caiu e pegou fogo próximo ao aeroporto Campo de Marte, em São Paulo.

Segundo informações preliminares, extraídas do sítio eletrônico do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), por volta da 21h, a aeronave Beechcraft Baron 58, de matrícula PR-OFI, ao ser comandada para realizar procedimento de arremetida, colidiu contra o solo, em via pública, logo após a cabeceira 12 do Aeroporto Campo de Marte.

Quando nos deparamos com notícias como essa, de pronto, surgem algumas perguntas, tais como: e agora, quem investiga? É a Polícia? É o Ministério Público? É a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC)? É o Comando da Aeronáutica? Qual é objetivo? Qual o prazo da investigação?

Sem ter a pretensão de esmiuçar o tema, abordaremos o assunto da forma mais clara, direta e objetiva possível de modo que, ao final da leitura, seja possível responder as indagações sugeridas, dando atenção e enfoque especial para a investigação que é realizada pela Aeronáutica.

Pois bem, inicialmente importa tecermos relevante digressão histórica recente, para compreendermos momentos de crise pelos quais passamos e que motivaram, no Brasil, importantes modificações e evoluções na investigação de catástrofes aéreas.

Entre os anos de 2006 e 2007, duas grandes tragédias aeronáuticas ocorreram no Brasil, envolvendo duas das maiores companhias aéreas do país, as quais vitimaram centenas de pessoas e atingiram outras centenas de familiares das vítimas.

Impulsionada pelos nefastos impactos dessas catástrofes, a sociedade brasileira pôs em pauta um longo debate legislativo para o melhoramento e aperfeiçoamento da atividade aérea no país, inserindo-se, nesse contexto, a investigação de acidentes aeronáuticos.

Desse modo, após aproximadamente 8 longos anos de amplos debates na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, ao cabo de todo o processo legislativo pertinente, o Poder Legislativo aprovou a lei ordinária 12.970/14, que alterou e inseriu dispositivos no Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), como resposta aos anseios e demandas sociais para o aperfeiçoamento operacional da aviação civil brasileira, visando mitigar a possibilidade de repetição de novas tragédias.

Referido processo legislativo contou com a participação e contribuição de órgãos de segurança pública, associações de empresas, associações de aeronautas e aeroviários, membros da advocacia pública, integrantes do Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (SIPAER), dentre outros.

As inovações trazidas à baila se consubstanciaram em imprescindível evolução normativa, lastreada nas realidades e exigências práticas e técnicas, consideradas as peculiaridades do cenário internacional e nacional afeto à investigação de acidentes aéreos com foco na prevenção de outras catástrofes.

Desse modo, houve uma internalização adequada e compatível de normas, preceitos e princípios internacionais, com o delineamento focado nas especificidades, peculiaridades, necessidades e finalidades próprias de investigações voltadas tão somente para prevenção de acidentes aéreos.

Cumpre destacar que a necessidade dessa evolução não surgiu de um dia para o outro e, nem mesmo, por mera especulação. Ela foi fruto do aperfeiçoamento sistêmico, decorrente das necessidades evolutivas técnicas e práticas das investigações de acidentes aeronáuticos que ocorrem há décadas no Estado Brasileiro, tudo em consonância com normas internacionais.

Para que se preserve o contexto histórico e evolutivo sobre a temática, importa rememorar que, no Brasil, a investigação de acidentes aéreos teve seu propósito focado na persecução criminal/punitiva.

Em 1941, com a criação do então Ministério da Aeronáutica, que era responsável, de um modo geral, pelas atividades da Aviação Civil e Militar, foi instituída a figura do “Inquérito Técnico Sumário”, o qual visava a pesquisa de ocorrência de culpa e apuração/imposição de responsabilidade dos envolvidos nos acidentes aeronáuticos.

Nesse período, uma única investigação sobre acidente aeronáutico, ao mesmo tempo em que responsabilizava culpados, também intentava de forma tímida, limitada e subsidiária evitar outros acidentes semelhantes.

Tal modelo de investigação, que ocorria de maneira inquisitiva e sumária, tinha resultados pobres, escassos de informações voluntárias, pois não havia nenhuma colaboração dos envolvidos, carente de análises detalhadas e sistêmicas, com pouca, senão rara, contribuição prática para a prevenção.

Assim, no campo prático e aplicado, a sistemática do “Inquérito Técnico Sumário” se mostrou inadequada, totalmente ineficaz e ineficiente para evitar a recorrência, sendo modelo fadado ao insucesso.

Diante da imprescindível necessidade evolutiva, em 1944, o Estado Brasileiro aderiu à Convenção sobre Aviação Civil Internacional (Convenção de Chicago), recepcionada já em 1946 pelo ordenamento jurídico pátrio por meio do decreto 21.713/46.

A partir desse marco temporal, os processos evolutivos dos mecanismos de prevenção de acidentes foram constantes, podendo citar, entre eles o decreto 69.565/71, o decreto 87.249, o próprio CBA com a atual redação dada pela lei 12.970/14, e o decreto 9.540/18 (decreto SIPAER), os quais estabeleceram as atuais bases, princípios e preceitos sobre a investigação de acidentes aeronáuticos.

Tais disposições normativas disciplinaram e encaminharam o SIPAER com destinação específica à prevenção de outras ocorrências, tendo por escopo o estabelecimento de hipóteses e a identificação de fatores contribuintes para a consumação de uma ocorrência aeronáutica, sempre dissociada da persecução sobre culpa, responsabilidade, contraditório, ampla defesa, nexo de causalidade estrito ou qualquer outro elemento punitivo ou sancionador.

Com tal aperfeiçoamento, pode-se compreender e visualizar que o Brasil adotou, assim como os demais países pactuantes da Convenção de Chicago, o modelo dualista de investigação de acidentes aeronáuticos: o sistema policial-judiciário e o sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos (SIPAER), este último independente e neutro.

Justamente com a compreensão sobre a necessidade da atuação do Estado em suas mais diversas formas e competências (civil/criminal/administrativa), o próprio CBA, agasalhando tratados e princípios internacionais sobre a investigação de acidentes aeronáuticos, instituiu uma modalidade específica de investigação, denominada Investigação SIPAER, a qual tem como objetivo tão somente a prevenção de outras ocorrências, desenvolvendo-se de maneira totalmente autônoma e independente de outras investigações sobre o mesmo acidente.

Todavia, é necessário que seja esclarecido que tal especificidade não exclui a necessidade de outras investigações para finalidades diversas, paradigma expressamente previsto nos artigos 88-A, 88-B e 88-C do CBA e no decreto SIPAER. Tais preceitos legais internalizaram os princípios e normas do Anexo 13 à Convenção sobre Aviação Civil Internacional (Convenção de Chicago) de 1944.

Percebe-se, portanto, que o Brasil criou ao longo de décadas, um sistema específico para investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos, tendo como viga-mestra a implementação do conceito de “Cultura Justa” que, hodiernamente, é considerada como um elemento-chave para o reforço da segurança da aviação na medida em que visa melhorar a comunicação das ocorrências na aviação, aperfeiçoando e otimizando o fluxo contínuo de informações.

Foi compreendido que, sob o amparo da “Cultura Justa”, é criada uma condição essencial para o estabelecimento de um ambiente nacional e internacional lastreado na maior cooperação e coordenação institucional entre as esferas de segurança pública e as autoridades judiciárias, sem que as atividades de uma se sobreponham, interfiram ou impeçam as investigações realizadas sob o manto da Convenção de Chicago.

Dessa forma, percebe-se que o próprio CBA, de maneira expressa, além de não impossibilitar, impedir ou embaraçar eventuais investigações no âmbito do administrativo da ANAC, ou sobre a persecução do Parquet, da Polícia Judiciária ou de qualquer apuração cível ou criminal, prevê de forma expressa a possibilidade de coordenação e cooperação técnica e institucional. As investigações, em cada um dos órgãos constituídos, ocorrem de forma autônoma e independente, se complementando, sem criar embaraços ou entraves.

Feita essa digressão sobre competências, limites, objetivos e finalidades das investigações sobre acidentes aéreos, com foco especial para aquela que é realizada no âmbito do SIPAER, pende apenas a indagação sobre o prazo das investigações.

De forma sucinta, as investigações criminais promovidas pelos órgãos de persecução penal, observam os trâmites e prazos próprios do Código Penal e de Processo Penal, observando ainda o Parquet, na seara da responsabilização civil e administrativa, as peculiaridades da lei 7.347/85, e da lei complementar 75/93, no que atinem às Notícias de Fato (NF), aos Inquéritos Civis Públicos (ICP) e eventuais Ações Civis Públicas (ACP).

No campo de atuação da ANAC, na sua condição legal de órgão regulador e fiscalizador da aviação civil brasileira, incumbe a observância aos procedimentos e prazos administrativos previstos na lei 11.182/05 e nos respectivos regimentos e resoluções.

Especificamente na seara das investigações realizadas com o propósito exclusivo de prevenção de acidentes aéreos, cujas atividades são realizadas pelo CENIPA, embora haja amplo detalhamento normativo e procedimental no CBA e no Decreto SIPAER, o legislador infraconstitucional foi silente, não tendo estipulado um prazo, talvez com o entendimento sobre toda a complexidade que envolve a investigação de catástrofes aéreas, em função das diversas circunstâncias técnicas, o que exige um tempo próprio para cada ocorrência.

Em que pese o silêncio legal, pode ser aplicada a Norma Sistêmica do Comando da Aeronáutica 3-13/17 (NSCA) que trata dos “Protocolos de Investigação de Ocorrências Aeronáuticas da Aviação Civil Conduzidas pelo Estado Brasileiro”, a qual estima o prazo de 12 meses a ser observado (6.3.d). Esta previsão certamente teve por objetivo dar respostas à sociedade no menor tempo possível sobre as investigações que são realizada pelo CENIPA.

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*Ricardo Fenelon Junior é sócio fundador do escritório Fenelon Advogados. Advogado especialista em aviação, infraestrutura e regulação. Ex-diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Professor de Direito Aeronáutico no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (IBAER).



*Adriano Trindade
é consultor do Fenelon Advogados. Advogado especialista em Direito Aeronáutico, em especial Acidentes Aéreos, e Direito Trabalhista. Ex-chefe da Assessoria Jurídica do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA).

Ricardo Fenelon Junior

Sócio fundador do escritório Fenelon Barretto Rost Advogados. Advogado especialista em aviação, infraestrutura e regulação. Ex-diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Professor de Direito Aeronáutico no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (IBAER).

Adriano Trindade

Consultor do Fenelon Advogados. Advogado especialista em Direito Aeronáutico, em especial Acidentes Aéreos, e Direito Trabalhista. Ex-chefe da Assessoria Jurídica do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA).

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