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O legado de RBG na Suprema Corte dos Estados Unidos

Ruth Bader Ginsburg destacou-se pela promoção da igualdade de gênero.

19/9/2020
Guilherme Brenner Lucchesi e Luciana Pedroso Xavier

Faleceu em 18 de setembro de 2020 a Justice Ruth Bader Ginsburg da Suprema Corte dos EUA, considerada por muitos a liderança da ala liberal da Corte. ‘RBG’, como era conhecida, destacou-se pela promoção da igualdade de gênero. Este tema permeou toda a sua vida pública, tanto na docência quanto em sua atuação profissional. Ginsburg, antes de ascender à Corte em 1993, fora advogada militante na defesa de direitos civis e, posteriormente, juíza federal. Na Suprema Corte, com a consolidação de uma maioria masculina e conservadora, Ginsburg foi autora de importantes votos dissidentes que marcaram sua oposição às restrições impostas por seus pares aos precedentes firmados nas gestões Warren e Burger ao logo das décadas de 1960 e 1970.

Notadamente na questão dos direitos sexuais e reprodutivos, Ginsburg vinha batalhando pela manutenção do precedente fixado no caso Roe v. Wade. Este julgamento notoriamente foi responsável por assegurar às gestantes o direito de interromper a gestação até o término do primeiro trimestre. Exemplo disto fora o julgamento do caso Gonzales v. Carhart, em que, por cinco votos a quatro, a Suprema Corte autorizou o Estado de Nebraska a proibir o abortamento provocado pela dilatação vaginal e extração do feto. Este procedimento era comum para os casos de abortamento legal, mas fora tachado com a pecha de “aborto de nascimento parcial” (partial-birth abortion). Para Ginsburg, esta era uma vedação irracional, com o único objetivo de eliminar, pouco a pouco, o direito ao abortamento legal e seguro, sem enfrentar diretamente o tema.

Apesar de suas posições marcadas e combativas, Ginsburg se notabilizou pela maneira respeitosa com que expunha contrariedade ao posicionamento de seus colegas. Por este fato, acabou sendo pitoresca a sua amizade muito próxima com Justice Antonin Scalia, líder da ala conservadora da Corte por décadas. Enquanto Scalia, falecido em 2016, era conhecido por seu estilo ácido e provocativo. A diferença temperamental e ideológica, contudo, não impediu que se formasse uma improvável afeição entre os membros mais diametralmente opostos da Suprema Corte.

A morte de Scalia no término do mandato de Barack Obama iniciou uma verdadeira batalha pela composição ideológica da Suprema Corte. Desde a década de 1970, a maioria da Corte fora indicada por presidentes Republicanos. Haveria, enfim, uma chance de os democratas firmarem uma maioria de cinco justices. Contudo, os procedimentos de indicação e confirmação no Senado impediram que o candidato de Obama viesse a ser nomeado. Durante a administração Trump houve duas nomeações à Suprema Corte, mantendo-se uma maioria conservadora. De um lado, o Chief Justice John Roberts, Clarence Thomas, Samuel Alito, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh; de outro, Ruth Bader Ginsburg, Stephen Breyer, Sonia Sottomayor e Elena Kagan. A possibilidade de Trump nomear eventual sucessor à cadeira de Ginsburg pode levar o pêndulo da Suprema Corte ainda mais à direita.

A possibilidade de oscilação da composição ideológica da Corte e a especulação a respeito da sucessão de seus membros é em si assunto de calorosos debates. Este tema tem sido central nas campanhas presidenciais de 2016 e 2020, de modo que tão logo fora anunciado o passamento de Ginsburg, a liderança republicana no Senado rapidamente se pronunciou, informando que eventual indicado por Trump seria nomeado sem demora.1

Esta tensão acaba por reacender importantes discussões sobre a nomeação dos justices à Corte, desde o processo de confirmação e nomeação pelo Senado até a própria vitaliciedade dos justices, sem qualquer idade limite, inclusive para o Chief Justice. Atualmente, um Presidente com maioria no Senado consegue emplacar o seu indicado sem maiores dificuldades. Por outro lado, sem apoio na câmara alta, podem ocorrer situações com a do indicado de Obama, em 2016. Merrick Garland fora indicado à corte, mas não chegou a ser sequer sabatinado. A justificativa da liderança republicana à época — um Presidente nos últimos meses de seu mandato não poderia influenciar de maneira tão profunda o futuro da nação — aparentemente não se aplicará aos três finais do atual mandato do Presidente Donald Trump.

O risco de consolidação de uma ampla maioria conservadora fez com que Ginsburg, à época já com 83 anos, sofresse críticas por seus apoiadores liberais, por não ter voluntariamente se aposentado da Corte, de modo a permitir que Obama nomeasse sucessor mais jovem e com perfil ideológico semelhante. Ginsburg, com sua assertividade habitual, respondeu às críticas afirmando que, enquanto se sentisse apta a desempenhar a judicatura de maneira adequada, permaneceria na Suprema Corte.

Apesar de seu estilo de vida reservado, Ruth Bader Ginsburg fez uma opção consciente por se posicionar com coerência perante a vida e as grandes questões jurídicas de seu tempo. Nos 27 anos em que esteve na Suprema Corte, Ginsburg deixou a sua marca. Naturalmente, não agradaria a todos. Nem mesmo em sua sabatina perante o Senado, Ginsburg arrefeceu ou suavizou o seu pensamento. A maneira com que se portou na judicatura honrou o seu passado. Idolatrada a ponto de se tornar ícone cultural para seus apoiadores, também angariou desafetos. Concorde-se ou não com RBG, o seu legado é de um valor inquestionável: uma mulher destemida que enfrentou os temas submetidos à sua jurisdição com comprometimento e firmeza, ao mesmo tempo que manteve a cordialidade e o respeito aos seus pares.

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1 https://www.nytimes.com/2020/09/18/us/mitch-mcconnell-rbg-trump.html

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*Guilherme Brenner Lucchesi é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Mestre pela Cornell Law School (EUA). Attorney-at-law inscrito no New York State Bar. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia. (guilherme@lucchesi.adv.br)

 

 

 

*Luciana Pedroso Xavier é professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora e Mestre em Direito pela UFPR. Advogada sócia da P.X Advogados. (luciana@pxadvogados.com.br)

Guilherme Brenner Lucchesi

Advogado sócio da banca Lucchesi Advocacia. Presidente do Instituto dos Advogados do Paraná. Coordenador do Curso de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR.

Luciana Pedroso Xavier

Professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora e Mestre em Direito pela UFPR. Advogada sócia da P.X Advogados.

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