Em 28/3/25 o governo italiano publicou no diário oficial daquele país o decreto-lei 36, dispondo sobre novas regras para disciplinar a aquisição da cidadania italiana pelo sistema do iure sanguinis, provocando grande debate na Itália e fora dela. O decreto-lei foi assinado pelo presidente da República Sergio Mattarella, que esteve há pouco no Brasil, pela presidente do Conselho dos ministros Giorgia Meloni e por vários outros ministros integrantes do governo.
O decreto-lei, cujo sistema é parecido com o da nossa medida provisória, pode ser editado pelo governo em casos extraordinários, de necessidade e urgência (art. 77 da Constituição italiana), sob total responsabilidade do governo, e deve ser submetido ao parlamento para que delibere se converte ou não o decreto-lei em lei. Caso não haja a conversão dentro de sessenta dias, o decreto-lei caduca.
A polêmica está no fato de que Meloni altera substancialmente as regras sobre cidadania nos ítalos-descendentes que residem no exterior, notadamente atingindo os que se encontram na América do Sul, dos quais os principais países com esses descendentes são o Brasil, a Argentina, a Venezuela e o Uruguai, nesta ordem de importância.
Diferentemente do Brasil, que adota como critério da cidadania o ius soli (é brasileiro quem nasce no território brasileiro), a Itália adota o critério do ius sanguinis (é italiano quem é filho de cidadã ou cidadão italiano), fazendo-o sem distinção nem limitação de gerações.
O decreto-lei it. 36/25 limita a aquisição da cidadania italiana a duas gerações – pais e avós – e impõe outras condições como morar na Itália, ter ligação com a cultura italiana, falar a língua etc.
A cidadania italiana teve como primeiro regulamento moderno o disposto nos arts. 4 a 15 do primeiro diploma civil da Itália Unificada, que é o revogado CC de 1865. Depois disso sobreveio a lei da nacionalidade italiana: lei 555, de 13/6/1912, cujo art. 1.° dizia ser italiano quem fosse filho de pai italiano, mas não de mãe italiana. Esse artigo foi declarado inconstitucional – por ferir a isonomia –, pela sentença 30, de 1983, da Corte Constitucional, sentença aditiva essa que proclamou ser italiano quem nascesse de pai ou de mãe italiana. Em 9-16/4/1975 a Corte Constitucional já havia proclamado a inconstitucionalidade do art. 10 da mesma lei 555/1912, que dizia que perdia a cidadania italiana a mulher italiana que se casasse com homem estrangeiro.
O CC italiano de 1942 (regio decreto 262, de 16/3/1942) substituiu o CC/1865 it.; a lei 91, de 5/2/1992, que é a atual lei da nacionalidade italiana, substituiu a lei 555/1912. Outras leis também regulam pontos da cidadania italiana como, por exemplo, a lei 123, de 21/4/1983.
No que diz com o Brasil, o governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca, logo após a proclamação da República, promulgou o decreto 58-A, de 14/12/1889, declarando automaticamente naturalizados brasileiros os estrangeiros que se encontrassem em solo nacional até 15/11/1889, completando essa legislação com os decretos 277-D, de março/1890; D 480, de junho/1890 e decreto 6948, de 1908. Movimento conhecido como a “Grande Naturalização”. Com base nessa tese o governo italiano vinha impugnando a declaração de cidadania italiana a brasileiros que, segundo essa tese, descendiam de quem não era mais italiano, pela perda da nacionalidade em virtude da grande naturalização. A Corte de Cassação italiana, equivalente ao nosso STJ, decidiu o recurso 26.093, de 2021, pela sentença 25.317, de 24/8/22, no sentido de rejeitar a tese governista da perda da nacionalidade italiana pelos italianos que se encontravam no Brasil em 15/11/1889, afirmando que nenhum governo estrangeiro pode retirar do cidadão italiano sua nacionalidade, pois isso requer manifestação inequívoca de vontade do italiano em perder sua cidadania pela aquisição da brasileira. Isso colocou uma pá-de-cal sobre a tese da grande naturalização.
O debate que se instaurou agora, com a edição do decreto-lei it. 36, de 28/3/25 é sobre a constitucionalidade desse decreto-lei: há situação extraordinária? Há necessidade e urgência que não poderia aguardar o trâmite de projeto de lei no processo legislativo normal? Esse é o primeiro requisito formal a ser questionado relativamente ao mencionado decreto-lei.
Nos consideranda do decreto-lei o governo italiano diz que há imensas filas nos consulados italianos na América do Sul a exigir esforço hercúleo dos funcionários no tratamento dos requerimentos de cidadania italiana pelos ítalo-descendentes. Essa afirmação vem desmentida pelos fatos, pois há filas para entrevista no consulado de São Paulo, por exemplo, que duram doze, quinze anos para que o interessado seja chamado. Qual a “urgência”, v.g., em 2025, se o fato “acúmulo de filas nos consulados” existe há décadas? Teria sido “urgente” há vinte anos, mas não hoje. As filas de imigrantes italianos que se formaram em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Buenos Aires, Caracas e Montevidéu, durante a diáspora de 1840 a 1940 não estão nas justificativas do decreto-lei italiano.
Outros pontos de questionamento no referido decreto-lei 36/25 é relativamente ao mérito. O governo italiano quer os bônus do sistema do ius soli (caro à esquerda italiana) – quem, morando no exterior, quer ser italiano tem de residir determinado tempo no território italiano – e os bônus do ius sanguinis, mas não o ônus de um e de outro sistema.
Não havendo limitação na lei sobre o número de gerações que podem se valer do sistema do ius sanguinis, poderia o decreto-lei 36/25 criar nacionais de primeira e de segunda classe? Quem descende de italiano mas mora no exterior não seria italiano e quem descende de italiano e mora na Itália seria italiano? Isso estaria de acordo com a garantia constitucional da isonomia (art. 3.° da Constituição Italiana)?
A Corte Constitucional e a Corte de Cassação italianas vêm decidindo sistematicamente que o direito à cidadania italiana pelo iure sanguinis é permanente, imprescritível, pode ser pedido a qualquer tempo mesmo com a morte pregressa dos antepassados, não tem limites de geração etc. Esse decreto-lei 36/25 contraria jurisprudência firme, assentada há décadas nas duas maiores cortes da Justiça italiana, cujas decisões tiveram em conta o sistema constitucional italiano.
Existem muito mais pontos que podem ser discutidos sobre a cidadania italiana dos ítalo-descendentes.
O assunto ainda vai gerar calorosos debates e certamente vai ser submetido ao exame da Corte Constitucional da Itália, que é quem dará a última palavra sobre a constitucionalidade de parte ou da integralidade do decreto-lei italiano 36, de 28/3/25.
Nelson Nery Junior
Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Livre-Docente, Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, Doutor em Direito Processual Civil (PhD) pela Universität Friedrich-Alexander Erlangen-Nürnberg. Graduado em Direito pela Universidade de Taubaté. Foi Professor Titular da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP). É árbitro em diversas câmaras de arbitragem do Brasil e do exterior, destacando-se as do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM/CCBC), do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), da Câmara de Comércio Brasil-Portugal. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo por 27 anos. É membro da Wissenschaftliche Vereinigung für Inter