A arbitragem tem contribuído para que advogados e julgadores repensem a relação e as interações em processos complexos. O procedimento arbitral, dinâmico por natureza, com contraditório e cognição aprofundados, tem oferecido reiteradas oportunidades para reflexões críticas sobre o desenvolvimento de processos judiciais, sobretudo quando diante de questões intrincadas que devem ser decididas pelo Poder Judiciário.
Talvez o campo mais rico para debates dessa natureza seja a instrução probatória. A prática da arbitragem internacional trouxe diferentes métodos – alguns já conhecidos do Direito Processual brasileiro sob outra roupagem, como a cross examination1 –, muitos não só relevantes, mas também necessários para o tratamento das demandas.
Ainda pouco explorada nos processos judiciais – espera-se que não por muito tempo – é a técnica do hot tubbing, que tem contribuído para esclarecer aquelas situações em que assistentes técnicos altamente qualificados – e normalmente contratados pelas partes – divergem quase integralmente sobre as questões submetidas ao tribunal.
A invenção é australiana. Um dos primeiros registros vem de caso de seguros, julgado em 19852. Desde então, a técnica ganhou popularidade na Austrália e foi incorporada à rotina de tribunais nos Estados Unidos. O parágrafo 11 das Civil Procedure Rules prevê hipótese de hot tubbing, ou, como lá chamada, concurrent expert evidence3.
Mas foi só a partir de sua incorporação na rotina de arbitragens internacionais que a técnica começou a chamar a atenção de advogados e de juízes brasileiros. É o que, no “Report on Controlling Time and Costs in Arbitration” da Câmara de Comércio Internacional, se convencionou chamar de “witness conferencing”, tal qual previsto no item 794.
O hot tubbing (i.e., o testemunho simultâneo de peritos e assistentes) consiste em técnica por meio da qual os peritos e assistentes de cada parte são ouvidos simultaneamente na presença do árbitro ou do juiz. Trata-se de mecanismo que permite aos julgadores e aos patronos de cada parte a identificação de inconsistências na análise técnica, atingindo-se, de forma elucidativa, conclusões quanto a questões essenciais da controvérsia posta.
Trata-se de mudança significativa em relação ao paradigma veiculado pelo art. 361 do CPC, que apresenta a inquirição do perito e dos assistentes técnicos das partes em ordem predeterminada5. Por meio do hot tubbing, permite-se que os peritos e assistentes sejam colocados um de frente para o outro, com a finalidade de possibilitar verdadeira interação não só entre eles, mas também com o tribunal. É dessa maneira que os árbitros conseguem direcionar as matérias controvertidas de forma dinâmica, sanando eventuais obscuridades no raciocínio técnico.
Como descrito por Kate Krause, “hot tubbing is the colloquial term for a procedure in which expert testimony is given concurrently, rather than sequentially”6.
Não se trata de simplesmente confrontar as diferentes visões técnicas em cenário de beligerância. Diferente disso, busca-se oferecer ambiente em que os experts debatam diretamente os méritos de suas opiniões, aclarando pontos de convergência e as razões para eventuais divergências7.
A relevância parece clara: não é raro que, na prática do processo civil e de arbitragens, o(s) julgador(es) se depare(m) com dissenso aparentemente inconciliável entre as apresentações dos assistentes técnicos das partes. E igualmente notável é a máxima de que boas respostas apenas são obtidas por aqueles que sabem formular as perguntas corretas. A oitiva simultânea de experts intenta encurtar esse caminho, permitindo que os técnicos apresentem os questionamentos pertinentes, obtendo-se a elucidação da controvérsia.
A técnica é frequentemente empregada em arbitragens com a finalidade de permitir esclarecimentos sobre as opiniões apresentadas por assistentes técnicos das partes, já que é corriqueira a dispensa de nomeação de perito pelo(s) árbitro(s). A divergência entre as opiniões acaba sendo resolvida em audiência, com a possibilidade de que as partes e os árbitros realizem acareações8.
Nesse contexto, “o Tribunal Arbitral usa o mecanismo de hot tubbing para ouvir os diferentes especialistas simultaneamente em temas específicos; cada especialista pode responder os pontos levantados pelos outros especialistas, o que geralmente facilita a compreensão das diferenças pelo Tribunal de Arbitragem mais rapidamente”9.
A incorporação do mecanismo no Direito Processual parte de dois fundamentos autônomos: (i) os poderes instrutórios do magistrado, sobretudo para definir as provas a serem produzidas e para conduzir a audiência de instrução e julgamento; e (ii) a possibilidade de as partes, à luz do art. 190 do CPC, celebrarem convenções processuais.
Primeiro, o art. 370 do CPC veicula previsão ampla de poderes instrutórios, sobretudo ao determinar que “caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito”. O dispositivo, quando combinado com o art. 139, VI, do CPC, segundo o qual incumbem ao magistrado “alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito”, permite concluir que o julgador tem a possibilidade de adaptar a forma de produção da prova pericial.
Como expõe Carlos Eduardo Stefen Elias, “o exercício dos poderes instrutórios permite tanto a inserção de atos processuais não previstos (ou a alteração da ordem prevista para sua prática), como também a utilização de técnicas não compreendidas originalmente no procedimento”10. A amplitude dos poderes instrutórios para utilização do hot tubbing também é encampada por Giovanni Ettore Nanni e por Pedro Guilhardi11.
Os poderes instrutórios permitem que o magistrado, quando verificada a necessidade, adapte o procedimento, de modo a inquirir os assistentes técnicos – e até mesmo o perito nomeado por si – simultaneamente, facultando que os próprios experts formulem questionamentos, preenchendo eventuais lacunas e esclarecendo pontos que tenham ficado obscuras ou que tenham sido convenientemente omitidas.
Segundo, também é possível que as partes celebrem negócio jurídico processual, com fundamento no art. 190 do CPC, para que seja adotada a técnica do hot tubbing para esclarecimento das questões técnicas relevantes.
Nos termos do art. 190 do CPC, “é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa”. De modo semelhante ao que ocorre nos procedimentos arbitrais, foi conferido às partes amplo poder de escolha da forma como será conduzido o processo, desde que a convenção não seja ilícita e/ou imponha ônus ao Poder Judiciário – o que não é o caso. Concede-se às partes a oportunidade de adaptar a estrutura do processo judicial às particularidades do caso concreto, com vistas a criar mecanismos para solucionar o conflito de forma eficiente.
Podem as partes, portanto, celebrar acordos sobre diferentes tópicos processuais. Segundo o enunciado 21 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, por exemplo, podem ser objeto de negócio processual: a realização e o tempo de sustentação oral, o julgamento antecipado do mérito, as provas e a redução de prazos processuais12. As partes podem, ainda, (i) derrogar normas processuais; (ii) alterá-las13 e; (iii) até mesmo, impor sanções para o caso de descumprimento da convenção14.
Recentemente, o Grupo de Boas Práticas Probatórias do XIV Fórum Permanente de Processualistas, realizado em março de 2025 em Brasília, reconheceu a “prova pericial produzida no formato hot-tubbing em processo arbitral” como prática lícita, inovadora e que aprimora a prestação jurisdicional15 – o que evidencia a contribuição significativa que a técnica tem a oferecer ao processo judicial.
O hot tubbing consubstancia técnica com profunda utilização na arbitragem que pode – e deve – ser incorporada à rotina dos processos judiciais, sobretudo para que possam ser esclarecidas questões técnicas complexas sobre as quais haja divergências entre os assistentes técnicos – e até mesmo em relação à opinião do perito. O emprego dessa forma de análise da prova pericial e/ou das opiniões de assistentes encontra fundamento nos poderes instrutórios do magistrado e na possibilidade de as partes celebrarem convenções processuais.
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1 Sobre o tema, ver MIRANDA, Daniel Chacur de. Cross-Examination no Processo Civil e na Arbitragem: Um Diálogo entre Processo Arbitral e Estatal. São Paulo: Quartier Latin, 2022.
2 Spika Trading Pty Ltd v Royal Insurance Australia Ltd (1985) 3 ANZ Insurance Cases 60-663 (in the Commercial List of the Supreme Court of New South Wales).
3 “11.1 At any stage in the proceedings the court may direct that some or all of the evidence of experts from like disciplines shall be given concurrently. The procedure set out in paragraph 11.4 shall apply in respect of any part of the evidence which is to be given concurrently. 11.2 To the extent that the expert evidence is not to be given concurrently, the court may direct the evidence to be given in any appropriate manner. This may include a direction for the experts from like disciplines to give their evidence and be cross-examined on an issue-by-issue basis, so that each party calls its expert or experts to give evidence in relation to a particular issue, followed by the other parties calling their expert or experts to give evidence in relation to that issue (and so on for each of the expert issues which are to be addressed in this manner). 11.3 The court may set an agenda for the taking of expert evidence concurrently or on an issue-by-issue basis, or may direct that the parties agree such an agenda subject to the approval of the court. In either case, the agenda should be based upon the areas of disagreement identified in the experts’ joint statements made pursuant to rule 35.12. 11.4 Where expert evidence is to be given concurrently, then (after the relevant experts have each taken the oath or affirmed) in relation to each issue on the agenda, and subject to the judge’s discretion to modify the procedure—(1) the judge will initiate the discussion by asking the experts, in turn, for their views in relation to the issues on the agenda. Once an expert has expressed a view the judge may ask questions about it. At one or more appropriate stages when questioning a particular expert, the judge may invite the other expert to comment or to ask that expert’s own questions of the first expert; (2) after the process set out in (1) has been completed for any issue (or all issues), the judge will invite the parties’ representatives to ask questions of the experts. Such questioning should be directed towards: (a) testing the correctness of an expert’s view; (b) seeking clarification of an expert’s view; or (c) eliciting evidence on any issue (or on any aspect of an issue) which has been omitted from consideration during the process set out in (1); and (3) after the process set out in (2) has been completed in relation to any issue (or all issues), the judge may summarise the experts’ different positions on the issue and ask them to confirm or correct that summary.”
4 “Witness conferencing is a technique in which two or more fact or expert witnesses presented by one or more of the parties are questioned together on particular topics by the arbitral tribunal and possibly by counsel. Consider whether this technique is appropriate for the arbitration at hand.” (Disponível em https://www.iccwbo.be/wp-content/uploads/2012/03/20151101-Controlling-Time-and-Costs-Report.pdf. Acesso em 09.04.2025).
5 “Art. 361. As provas orais serão produzidas em audiência, ouvindo-se nesta ordem, preferencialmente: I – o perito e os assistentes técnicos, que responderão aos quesitos de esclarecimentos requeridos no prazo e na forma do art. 477, caso não respondidos anteriormente por escrito; (...)”.
6 KRAUSE, Kate. Hot Tubbing and Expert Conferences—Using Concurrent Expert Evidence to Streamline Construction Arbitration. Dispute Resolution Journal, 74, Issue 3, 2019, p. 81.
7 “Essa analogia com a acareação, no entanto, não deve ser levada muito longe. Para que o método funcione, é importante que a discussão transcorra de forma menos formal e coreografada, como usualmente ocorre com as audiências judiciais, no Brasil. A proposta da técnica é que os experts possam debater, diretamente entre si, os méritos e deméritos de seus pareceres, os quais devem ser submetidos por escrito, anteriormente, para que sejam analisados. Assim, não se cria uma dinâmica em que o perito é apenas alvo de censuras dos assistentes técnicos, que têm ampla liberdade para fazer críticas genéricas e pouco fundadas, transferindo ao perito o ônus de produzir longas justificativas. No hot-tubbing, os assistentes técnicos também devem apresentar os seus posicionamentos técnicos, para que sejam criticados pelo perito” (VITORELLI, Edilson. Da educação científica ao consultor técnico pericial: respostas práticas para o problema da análise da perícia pelo juiz. Revista de Processo, v. 339, 2023, versão eletrônica, item 5).
8 FARIA, Marcela Kohlbach de. A produção de prova no processo arbitral: a prova pericial. Revista de Processo, v. 361, 2025, versão eletrônica, item 3.
9 FIGUEROA, Juan Eduardo. Notas sobre a produção de prova nas arbitragens de construção. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 60, 2019, p. 219-235.
10 ELIAS, Carlos Eduardo Stefen. O árbitro é (mesmo) juiz de fato e de direito? Análise dos poderes do árbitro vis-à-vis os poderes do juiz no novo Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 54, 2017, versão eletrônica, item 5.2.
11 Ver NANNI, Giovanni Ettore; e GUILHARDI, Pedro. Reflexões sobre a produção de provas na arbitragem: notas acerca da prova oral. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 78, 2023, versão eletrônica, item 3.
12 “São admissíveis os seguintes negócios, dentre outros: acordo para realização de sustentação oral, acordo para ampliação do tempo de sustentação oral, julgamento antecipado do mérito convencional, convenção sobre prova, redução de prazos processuais.” (Grupo: Negócio Processual; redação revista no III FPPC-Rio).
13 “Admite-se o negócio processual que estabeleça a contagem dos prazos processuais dos negociantes em dias corridos.” (Grupo: Negócios processuais)
14 “As partes podem, no negócio processual, estabelecer outros deveres e sanções para o caso do descumprimento da convenção.” (Grupo: Negócio Processual; redação revista no III FPPC-Rio).
15 A boa prática em questão foi apresentada por Carolina Meireles, em grupo coordenado por Clarisse Frechiane Lara Leite e secretariado por Artur Thompsen Carpes, tendo recebido aprovação na Plenária em que presentes mais de 400 participantes. Contou com a seguinte redação final: “30. Prova pericial produzida no formato hot-tubbing em processo arbitral. (Grupo: Práticas probatórias (processo estatal e processo arbitral); XIV FPPC-Brasília) Descrição. Foi determinada a realização de prova pericial de engenharia e econômico-financeira. Apresentado o laudo e parecer dos assistentes técnicos, o Tribunal designou audiência para a oitiva de peritos e assistentes técnicos das partes em formato hot-tubbing. Trata-se de técnica em que peritos e assistentes técnicos das partes são ouvidos simultaneamente. Os peritos e assistentes respondem às perguntas das partes e do tribunal, bem como podem debater diretamente entre si sobre questões técnicas, facilitando uma comparação imediata de suas opiniões. Dispositivos normativos concretizados: art. 369, CPC; art. 22, Lei n. 9307/96. Órgão envolvido: Corte de Comércio Internacional – CCI. Responsáveis pela prática: Luciano de Souza Godoy, Sérgio Guerra e Lauro Gama”.