A lavagem de dinheiro é um crime financeiro que consiste na ocultação da origem ilícita de recursos, conferindo-lhes aparência de legalidade. No âmbito jurídico, a construção das acusações costuma se apoiar em relatórios unilaterais elaborados pelo Ministério Público e por órgãos de fiscalização, muito embora esses documentos sejam instrumentos de investigação, não podem ser tratados como provas absolutas, pois frequentemente contêm interpretações subjetivas ou suposições baseadas em critérios estatísticos descontextualizados. À vista desse cenário, a prova pericial contábil surge como um elemento indispensável para assegurar a análise técnica e precisa das informações apresentadas no processo. Nesse contexto, é oportuno citar os ensinamentos de MENDONÇA, ao afirmar que “A tentativa de buscar um equilíbrio entre a eficácia da persecução penal do delito de lavagem e a proibição da inversão do ônus da prova deve passar pela utilização e aceitação da prova indireta/indiciária, notadamente para comprovar os dois aspectos centrais da produção probatória do delito de lavagem, quais sejam: a origem ilícita dos bens, valores e direitos e o elemento subjetivo do tipo. O uso dos indícios é de importância inquestionável para provar ambos os requisitos, especialmente para suprir as carências da prova direta em processos penais relativos a atividades delitivas enquadradas naquilo que se conhece como criminalidade organizada. De fato, será habitual que não haja prova direta das circunstâncias relacionadas à procedência ilícita dos bens e do elemento subjetivo. Justamente por isso, a prova indiciária adquire especial importância no delito de lavagem de dinheiro, já tendo se afirmado que se trata da “rainha” das provas em matéria de lavagem”.1
No campo penal-econômico, é comum que as acusações por lavagem de dinheiro se apoiem em relatórios unilaterais elaborados pelo Ministério Público e por órgãos de fiscalização. Embora esses documentos desempenhem papel relevante na fase investigativa, não podem ser automaticamente considerados como provas conclusivas, já que, muitas vezes carregam interpretações subjetivas ou análises estatísticas descontextualizadas, e quando analisados fora de contexto, esses dados podem dar margem a interpretações equivocadas e levar a conclusões apressadas. Nesse sentido, SOARES e BORRI observam “que a simples menção ao crime de lavagem de dinheiro em uma investigação preliminar já é suficiente para autorizar o uso de instrumentos rigorosos previstos na Lei de Organização Criminosa (Lei 12.850/13), o que pode implicar em sérias limitações aos direitos fundamentais do investigado”.2 É justamente por isso que a perícia contábil assume papel central: ao oferecer uma análise técnica, imparcial e ancorada na realidade dos fatos, consegue separar suspeitas infundadas de operações legítimas, protegendo o processo de erros que poderiam comprometer sua integridade.
As investigações geralmente começam com a detecção de movimentações financeiras que fogem ao padrão, sendo classificadas como suspeitas, entretanto, esses relatórios nem sempre refletem a realidade das operações realizadas. Transações perfeitamente lícitas podem ser equivocadamente rotuladas como suspeitas quando analisadas à luz de padrões estatísticos genéricos, desconsiderando o contexto econômico real do investigado. Esse tipo de abordagem, quando não é contestado, pode levar a acusações infundadas e condenações injustas.
O problema central está na aceitação irrestrita desses relatórios como evidências conclusivas de crime. O Judiciário, em muitos casos, considera esses documentos como elementos definitivos de prova, sem levar em conta a necessidade de uma análise mais aprofundada. Como destacam AZAMBUJA AMARAL e BRUNI, “Na interface jurídica, por sua vez, esse conjunto de informações são indispensáveis para que se produza uma perícia de qualidade e mais transparente, propiciando uma maior efetivação dos direitos à prova lícita, à ampla defesa e ao contraditório. Como consequência, tem-se a redução de erros e arbítrios judiciais, se colocando como um mecanismo de respeito aos direitos humanos e aos princípios de um processo penal democrático”3. Nesse contexto, a perícia contábil surge como ferramenta essencial para rebater inconsistências e apresentar explicações plausíveis às movimentações financeiras questionadas.
A perícia contábil permite uma reconstituição detalhada da origem dos recursos, diferenciando transações legítimas de operações fraudulentas. Em diversas situações, movimentações financeiras volumosas ou frequentes podem ser explicadas a partir do perfil econômico do investigado, da natureza de suas atividades ou da estrutura de seu negócio. O trabalho do perito consiste em comprovar, por meio de registros técnicos e documentais, que as operações realizadas são compatíveis com a realidade contábil do acusado, afastando qualquer intenção criminosa.
Muitas vezes, a acusação se apoia em critérios genéricos para classificar transações como suspeitas, sem considerar fatores específicos de cada setor econômico. Empresas que operam com grande volume de dinheiro em espécie, por exemplo, podem ser indevidamente enquadradas em esquemas de lavagem de dinheiro apenas porque suas movimentações fogem ao padrão bancário convencional. A perícia contábil é capaz de demonstrar que essas movimentações fazem parte da rotina do negócio, invalidando alegações de ocultação ilícita.
Além de esclarecer a origem dos valores, a perícia contábil é fundamental para apontar erros e lacunas nos relatórios da acusação. Em muitos processos, análises produzidas na fase investigativa apresentam falhas técnicas, interpretações parciais ou ausência de fundamentação consistente. Segundo MENDINA, “somente pela realização da investigação contábil, durante a investigação criminal das organizações criminosas e seus membros, em todos os meios e recursos disponíveis, é possível trazer ao inquérito policial os aspectos patrimoniais e financeiros relacionados à macrocriminalidade”4. A revisão pericial pode revelar falhas nos cálculos apresentados, demonstrando que os valores supostamente ilícitos podem, na verdade, ter uma justificativa legítima e documentada.
O perito contábil desempenha um papel estratégico na defesa, não apenas na fase judicial, mas também durante a investigação. Um laudo técnico bem estruturado e tempestivo pode inviabilizar acusações frágeis ainda na fase pré-processual, impedindo a formação de uma denúncia sem suporte técnico adequado. Quando as evidências são analisadas com rigor técnico desde o início, é possível impedir que equívocos levem a penalizações desproporcionais e injustas.
Para que a perícia contábil seja realmente eficaz, é essencial que os profissionais envolvidos tenham profundo conhecimento das normas contábeis, tributárias e financeiras, bem como das particularidades do direito penal econômico, além disso, a clareza expositiva e a objetividade na apresentação dos dados são indispensáveis para que juízes e promotores compreendam o conteúdo técnico de forma acessível. Um laudo bem fundamentado, com explicações técnicas robustas e sustentadas em documentação idônea, pode ser decisivo para alterar os rumos de um processo.
A evolução constante da legislação e das técnicas de fiscalização impõe a necessidade de atualização contínua dos peritos contábeis. Os métodos de investigação financeira estão cada vez mais sofisticados, exigindo que os profissionais saibam rebater novas abordagens e contestar interpretações equivocadas que possam comprometer a isenção da análise pericial. A especialização contínua e o domínio metodológico são fatores determinantes para garantir a credibilidade e a efetividade da prova contábil no processo penal.
A perícia contábil desempenha um papel essencial na defesa penal, garantindo que os julgamentos sejam baseados em fatos concretos e não em interpretações equivocadas ou meras suspeitas. Mais do que interpretar números, o perito contábil traduz a realidade econômica de maneira técnica, clara e verificável, podendo seu laudo ser determinante tanto para afastar uma acusação sem fundamento quanto para comprovar irregularidades com base em evidências concretas. Como destaca a doutrina processual penal, há filtros normativos que condicionam a admissibilidade da prova5, não se podendo confundir os planos de admissão com os de valoração, e muito menos tratar a liberdade probatória como um abolicionismo do regramento probatório6, assim, o exercício do direito à prova, como qualquer outro, é regido por limites legais e constitucionais, o que exige que sua produção atenda a critérios de legalidade, pertinência e necessidade.
Nos processos que envolvem crimes financeiros, como lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e fraudes, as transações costumam ser complexas e nem sempre são bem compreendidas por aqueles que não têm conhecimento técnico. Em muitos casos, erros na interpretação dos registros contábeis podem levar a acusações injustas. O perito contábil, ao examinar cada detalhe com precisão, consegue identificar inconsistências, validar informações e esclarecer operações financeiras, apresentando a verdade de forma objetiva e imparcial. Seu laudo pode ser determinante tanto para afastar uma acusação sem fundamento quanto para comprovar irregularidades com base em evidências concretas.
Valorizar a perícia contábil no processo penal é assegurar julgamentos mais justos, tecnicamente fundamentados e juridicamente equilibrados. Quando essa ferramenta é utilizada de maneira adequada, as decisões se tornam mais seguras e bem embasadas, protegendo tanto os direitos dos acusados quanto a credibilidade do próprio sistema de justiça. O que realmente importa é que cada caso seja analisado com responsabilidade, evitando condenações injustas e assegurando que a verdade prevaleça.
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1 MENDONÇA, Andrey Borges de. Do processo e julgamento. In: CARLI, Carla Veríssimo de (org.). Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011. pp. 501-503.
2 SOARES, Rafael Junior; BORRI, Luiz Antonio. O Direito Penal na era da lavagem de dinheiro: quando quase tudo pode ser infração antecedente. https://www.conjur.com.br/2025-jan-10/o-direito-penal-na-era-da-lavagem-de-dinheiro-quando-quase-tudo-pode-ser-infracao-antecedente / acesso em 2.5.2025
3 AZAMBUJA AMARAL, Maria Eduardo. BRUNI, Aline Thaís. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 9, n. 2, p. 877-912, mai.-ago. 2023, p. 882
4 MENDINA, Silnei Dario Silveira Netto. REPRESSÃO À LAVAGEM DE DINHEIRO COM UTILIZAÇÃO DA INVESTIGAÇÃO CONTÁBIL –Brasília: Academia Nacional de Polícia, 2012, p. 32
5 A admissibilidade da prova foi objeto de recente monografia sob a perspectiva da racionalidade da prova: CARPES, Artur. O Que Provar? Admissibilidade e eficiência no processo civil. São Paulo: RT, 2023
6 FERRER BELTRÁN. La prueba es libertad pero no tanto: una teoría de la prueba cuasi benthamiana. Estándares de prueba y prueba científica: ensayos de epistemología jurídica. Carmen Vázquez (Ed.). Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 21/39.