Migalhas de Peso

Manual de instruções para recorrer - Com a ajuda da cultura pop!

Um passeio criativo pelos princípios recursais, com séries e filmes para ajudar a entender, sem perder a técnica. Ideal para quem iniciou os estudos processo civil.

8/5/2025
Manasses Lopes

O sistema recursal brasileiro, estruturado a partir do CPC/15, é uma engrenagem complexa e fundamental para a garantia de um processo jurisdicional justo e dialético.

Não se trata apenas de um conjunto de instrumentos técnicos para impugnar decisões, mas de um subsistema processual autônomo, regido por princípios próprios, com função de viabilizar o reexame, a correção e a estabilidade das decisões judiciais.

O ensino da teoria recursal, sobretudo na graduação em Direito, apresenta um desafio recorrente: como tornar acessível um conteúdo técnico sem perder a profundidade teórica que o tema exige.

Como professor universitário, reconheço a necessidade de estratégias pedagógicas que promovam engajamento e compreensão crítica.

É com esse propósito que proponho, neste texto, um itinerário interpretativo que alia cultura pop e dogmática processual: uma leitura dos princípios recursais orientada por frases provocativas, inspiradas em títulos de filmes e séries que espelham, em chave simbólica, os fundamentos do sistema recursal brasileiro.

1. “The Staircase” (HBO)

Toda decisão merece uma segunda análise

O duplo grau de jurisdição é frequentemente tratado como um "princípio implícito" na CF/88. 

De fato, embora não esteja expressamente elencado entre os direitos fundamentais, decorre da estrutura escalonada do Judiciário brasileiro (arts. 102, 105 e 108) e da previsão de recursos como instrumentos de garantia processual (art. 5º, LV).

O duplo grau deve ser compreendido não como um “dever de reexame”, mas como uma garantia de reexame. É dizer, o Estado deve prover meios para que a decisão possa ser revista, desde que a parte manifeste essa vontade.

Trata-se de um direito subjetivo de provocar um segundo juízo, e não de uma obrigação institucional de revisar toda e qualquer decisão.

2. “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” (A24)

Nem tudo pode ser atacado... e nunca tudo ao mesmo tempo

O princípio da taxatividade recursal impõe uma contenção formal. É dizer, só são recursos aqueles previstos em lei Federal.

O art. 994 do CPC fornece um rol exemplificativo, mas não exaustivo, desde que a natureza recursal decorra de norma com status de lei ordinária Federal (art. 22, I, da CF).

Dessa maneira, as partes não podem criar recursos via negócio jurídico processual (art. 190 do CPC), tampouco legislações estaduais ou municipais podem fazê-lo.

Já a singularidade — também chamada de unirrecorribilidade — estabelece que, contra cada decisão, cabe apenas um recurso.

Exceções existem (como o art. 1.029 do CPC, que permite RE e RESP simultâneos), mas são positivadas e sistemicamente justificadas.

A conjugação entre taxatividade e singularidade preserva a funcionalidade e integridade do sistema, evitando a dispersão de esforços jurisdicionais e garantindo que as vias recursais cumpram sua função sem se tornarem instrumentos de tumulto processual.

3. “Dark” (Netflix)

Nem sempre é claro qual caminho seguir. E, quando não for, não se penaliza por isso.

O princípio da fungibilidade recursal é expressão da instrumentalidade das formas e da primazia do julgamento de mérito. Ele opera como válvula de escape frente à rigidez do sistema, permitindo que um recurso erroneamente interposto, diante de dúvida objetiva e ausência de má-fé, seja conhecido como outro.

A aplicação do princípio da fungibilidade não se presta à indulgência, mas ao reconhecimento de que o ordenamento jurídico nem sempre oferece respostas inequívocas quanto ao recurso cabível. 

Divergência jurisprudencial, classificação controvertida da decisão ou lacunas normativas podem gerar erro escusável.

A doutrina costuma exigir três condições para a aplicação do referido princípio:

O CPC/15 não traz regra geral sobre fungibilidade, mas acolhe o instituto pontualmente (arts. 1.024, §3º; 1.032; 1.033).

O princípio, portanto, é legítimo como técnica de superação do formalismo, desde que fundado em boa-fé processual e incerteza normativa real.

4. “Breaking Bad” (AMC)

Tudo começa com uma escolha. E a escolha é sua.

O sistema recursal brasileiro é essencialmente dispositivo, de modo que, o impulso recursal depende da vontade da parte.

O princípio da voluntariedade consagra que ninguém é obrigado a recorrer, e que a reanálise da decisão não se dá de ofício, salvo previsão excepcional (como na remessa necessária, art. 496).

O recurso é ato processual de autonomia técnica e estratégica, com finalidade e extensão determinadas pela parte que o interpõe (arts. 996 e 1.013 do CPC).

A voluntariedade também estrutura os limites do efeito devolutivo: devolve-se ao tribunal apenas aquilo que foi objeto de insurgência expressa, e não a totalidade da decisão recorrida.

5. “House of Cards” (Netflix)

Quer derrubar uma decisão? Ataque seus fundamentos.

A dialeticidade recursal é regra de racionalidade argumentativa: o recurso deve impugnar, de forma fundamentada e específica, os pontos da decisão que se pretende reformar ou invalidar.

O recurso não é um novo pedido genérico de justiça; é uma resposta crítica à decisão anterior.

O art. 932, III, do CPC estabelece que o relator pode não conhecer do recurso que “não impugna especificamente os fundamentos da decisão recorrida”. Outros dispositivos (arts. 1.010, III; 1.016, III; 1.021, §1º; 1.029, III) reforçam essa exigência.

A jurisprudência também é firme no sentido de que a ausência de dialeticidade configura inépcia recursal (cf. súmulas 182 do STJ e 284 do STF).

A dialeticidade reforça o contraditório e valoriza a motivação decisória, de modo que, o recurso deve dialogar com a decisão impugnada, sob pena de inviabilidade técnica.

6. “Stranger Things” (Netflix)

O que está do outro lado pode ser... pior. Mas só se alguém abrir o portal.

O princípio da proibição da reformatio in pejus assegura que o recorrente não será prejudicado exclusivamente por sua iniciativa recursal.

Se apenas uma parte recorre, a decisão não pode ser reformada em seu desfavor, sob pena de desestímulo à impugnação legítima e de violação ao contraditório.

A única hipótese de mitigação ocorre quando matéria de ordem pública é identificada, com possibilidade de conhecimento de ofício (arts. 485, §3º; 487, II).

Mesmo nesses casos, o contraditório (art. 10 do CPC) deve ser previamente assegurado, evitando-se a chamada “decisão-surpresa”.

O último ato...

A principiologia recursal não é mera abstração doutrinária. Ela condiciona a própria existência, admissibilidade e resultado dos recursos. Cada princípio tem função delimitadora e garantidora, assegurando que o direito de impugnar decisões não se converta em caos procedimental, nem em ficção simbólica.

Manasses Lopes

Advogado e professor universitário. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília.

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