O que num primeiro momento entendia-se as síncopes e os compassos como essencial ao samba, posteriormente é percebida a contrametricidade das estruturas musicais originada pelo encontro entre os ritmos das matrizes africanas e europeias, cuja aplicação se faz por toda a música popular brasileira (SANDRONI, p.20-21). Nela, esse efeito de ruptura, a partir de frases rítmicas aplicadas pelo senso comum musical africano, produz alteração na base rítmica europeia utilizada no Brasil, com complementação do vocabulário de termos musicais africanos (SANDRONI, p.25).
A garantia da originalidade e ressignificação da música pelo efeito de ruptura e de acordo com a temporalidade social também deve ser transportada para a hermenêutica constitucional. A interpretação da CF pelo tempo vigente decorre de demandas que impossibilitam qualquer restrição ou retrocesso social em direitos fundamentais, especialmente para grupos de alta vulnerabilidade histórico-social.
É notório que a música popular brasileira “criolizou” os batuques africanos como uma tática de preservação de suas manifestações culturais (SODRÉ, p.13). O sincretismo cultural traz uma adaptação da música à realidade étnica, econômica e social da realidade brasileira, a exemplo da marginalização do negro – translocado para a periferia das cidades em razão de sua subalternidade. Nesse sentido, o samba, de origem africana, é absorvido pela música brasileira como segunda categoria, diante da inferiorização se comparada com os demais ritmos de origem europeia. Para as relações de trabalho, a não mercantilização do negro após a abolição da escravatura simboliza a sua entrada como prestador de serviços remunerado em ocupações estereotipadas que envolvessem a força braçal.
A partir das reflexões de Roberto Lyra Filho, pode-se inferir que a música popular brasileira é um “direito achado na rua”, dado que emerge da população negra para expressão de sua liberdade. Nessa linha, esse processo histórico, político e social necessita ser incorporado pela CF vigente em prol da pluralidade e diversidade de ideias, fato que influenciará diretamente na hermenêutica constitucional.
A título de exemplo, tem-se a decisão do STF de equiparação do crime de injúria qualificada pelo preconceito (art. 140, §3º do CP) ao de racismo (art. 5º, XLII da CF/88), considerando, assim, a imprescritibilidade da conduta para ambos (HC 154.248). In caso, houve uma interpretação ampliativa do art. 5º, XLLII da CF – ainda que no direito penal não seja permitido pelos princípios da reserva legal e da legalidade estrita – em razão do necessário esforço de combate ao racismo estrutural e qualquer tentativa de discriminação racial para a efetividade plena da dignidade humana e da igualdade material.
O samba é um ritmo de resistência em face da marginalização da pessoa negra a fim de ser uma expressão de luta (SODRÉ, p.15-16). Na letra do samba está o cotidiano da vida urbana na significação do provérbio (SODRÉ, p.44), ou seja: a tomada de consciência de grupo enquanto minoria e da perspectiva pedagógica de empatia e combate ao racismo. Logo, a partir de um discurso transitivo (SODRÉ, p. 44), a linguagem é vista como um meio de transformação da vulnerabilidade negra existente.
O pensamento sincopado com sua forma malandra transcende os questionamentos pela filosofia acerca da política e de ideologias opressoras. Há uma transformação do desejo de superar a dor no fazer artístico, nas palavras de Marilena Chauí, perpetuada para as próximas gerações (ROMANELLI, p.41-49). Nessa perspectiva, quatro técnicas de pensar são utilizadas na música popular brasileira, quais sejam: letras irônicas, dúbias e ambíguas; manifestações objetivas e diretas; entrelaçamento entre poesia e reflexão; resgate dos ditados populares (ROMANELLI, p.50).
Portanto, o samba – como estilo raiz da música popular brasileira – é reconhecido pelo contexto cultural pós-abolição da escravidão, sendo um instrumento ao empoderamento negro. Não se trata apenas do reconhecimento do ritmo sincopado, pois seria lugar comum não reconhecer a autenticidade que remontam às tradições africanas (GRAEF, p.134). Por último, o movimento dos corpos produzido pela canção melódica do ritmo sambista representa a hermenêutica constitucional diante da realidade histórico-social da população brasileira.
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1 SANDRONI, Carlos. A síncope brasileira. In: Idem. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p.17-26.
2 SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p.11-18; 25-27; 43- 47.
3 ROMANELLI, Francisco Antônio. Roda de samba, roda da vida: filosofia de botequim em Noel, Paulinho e Chico. Três Corações, 2014, p.40-63 (Dissertação. Mestrado em Letras)
4 GRAEFF, Nina. O samba de roda na roda de samba. In: Idem. Os ritmos da roda: tradição e transformação no samba de roda. Salvador: EDUFBA, 2015, p. 125-136
5 VITORDSG. Documentário “O Direito Achado na Rua – UnB” – Youtube, 29 de maio de 2018. Disponível em: Acesso em 07 maio 2025.