Introdução
A origem dessa sociedade no nosso direito comercial (originalmente denominada como sociedade por quotas, de responsabilidade limitada) foi o decreto 3.708 de 10/1/19, cuja vigência se estendeu até a vinda do CC/02. Seu tratamento se fez por apenas 19 artigos, mostrando um caráter eminentemente contratual, tendo se dado largo espaço para sua tutela pelo contrato social, o que permitia a esse tipo societário acomodar-se a diversas situações configuradas nos diversos interesses dos sócios, no seu porte, no tipo de atividade, na gestão social etc. Ela servia tanto a uma pequena empresa, constituída por dois únicos sócios, até uma grande empresa multinacional, com muitos participantes, na qualidade de controladora de um grupo econômico. Versatilidade era uma de suas características principais, a par de uma raridade, pois o seu teor se manteve inalterado por dezenas de anos, até ser revogada pelo CC/02, infelizmente.
Eventuais questões relacionadas a esse tipo societário haviam sido estabilizadas pela jurisprudência, a partir da contribuição da doutrina, e o melhor que se poderia fazer a seu respeito era tê-la deixado quieta no seu canto, bastando, como aconteceu no parágrafo 1º do art. 1.052 do CC, fruto dos novos tempos, permitir a sua constituição por um único sócio, o que de resto já se fazia na prática, pelo recurso a um sócio laranja (esposa, filho, amigo, etc.), detentor de ínfima parcela do seu capital social.
Logo no início da vida do atual Código houve divergência no seio da doutrina a respeito do modelo então adotado para a limitada, tendo sido apontados alguns problemas aos quais acrescentamos outros1: (i) a subordinação inapropriada da sociedade limitada à sociedade simples, para a regência de questões não disciplinadas pelo seu tratamento próprio, tendo para tanto se tornado escrava desta; (ii) a perda da sua flexibilidade; (iii) o estabelecimento de uma estrutura obrigatória de natureza restritiva, como as regras para a designação de administradores não sócios; etc.
Ao longo do tempo de vigência do CC/02 inúmeras questões sobre as sociedades limitadas foram discutidas no Judiciário, cujas soluções não resolveram os seus problemas genéticos.
1) A proposta de reforma pelo projeto
O projeto de reforma do CC, que tem sido largamente combatido por parte importante dos doutrinadores brasileiros e de diversas entidades, poderia ter rompido com o sistema do atual código, na linha do temos aqui defendido, mas apresentou no seu texto inicial o mesmo modelo em vigor e os seus mesmos problemas, tendo trazido potencialmente dificuldades novas. A metodologia utilizada foi a do recurso a enxertos, operações plásticas e amputações. Até aí nada a opor, porque o mecanismo tem sido usado em códigos pertencentes ao ordenamento jurídico romano-germânico, mas jamais com tal envergadura, capaz de levar o usuário a ficar perdido no labirinto construído por um projetista desavisado.
A esse respeito Judith Martins-Costa asseverou que o PL representa não apenas uma reforma, mas uma “substituição integral do sistema jurídico privado”, com impactos que podem comprometer a previsibilidade contratual, a responsabilidade civil e a segurança normativa de setores como infraestrutura, crédito e plataformas digitais. Em outro trecho ela afirma que o projeto é peça de populismo jurídicos, que representa uma hecatombe no direito, na cultura e na economia2.
Por sua vez, Cristiano Zanetti, entre outras críticas, afirma que por meio desse projeto está sendo criado um experimento jurídico sem paralelo no mundo, tendo em vista a adoção de conceitos inexistentes no direito comparado, criando distinções que não têm definição legal, nem critério objetivo de aplicação, resultando em imprevisibilidade3.
Para Paulo Doron o projeto adotou a técnica da terra arrasada, um verdadeiro tsunami jurídico, rompendo com os pilares tradicionais da responsabilidade civil, os substituindo por conceitos fluidos4.
As críticas começaram pelo estranho prazo de seis meses, concedidos ao grupo responsável pela elaboração do texto a ser apresentado ao Congresso, ora já em curso. Tratando-se da lei mais importante de nosso ordenamento jurídico depois da CF, não há qualquer justificativa racional para esse prazo tão exíguo, o qual certamente contribuiu para as sérias falhas nele presentes. Agrega-se outra crítica a respeito de não ter havido suficiente debate entre os interessados nos destinos de um novo Código Civil. Como se tem verificado, diversas entidades levantaram a sua voz contrária ao projeto, especialmente quanto ao açodamento que o tem marcado. Como o texto presente é sobre a nova roupagem da sociedade limitada, objeto das críticas acima referidas, passemos a tratar do seu regramento próprio no projeto.
Em primeiro lugar combate-se o texto pelo que ele deixou de fazer para depois se analisar o que de problemático foi feito. Observe-se que atualmente existem no Brasil 6.066.646 (seis milhões, sessenta e seis mil e seiscentos e quarenta e seis sociedades limitadas5, enquanto são aproximadamente 188 mil sociedades anônimas no país, o que o que demonstra a extrema importância das primeiras para a economia e a enorme responsabilidade do direito na sua tutela.
O projeto deveria inicialmente libertar a sociedade limitada dos grilhões da sociedade personificada, na qual foi inserida, para lhe dar vida própria, em um capítulo especial, estabelecendo um regramento geral mínimo e concedendo liberdade aos sócios para a criação de subtipos construídos segundo os seus interesses no caso concreto. Sua natureza deveria ser fundamentalmente contratual e não institucional, tomando como base histórica o decreto 3.708/1919.
É oportuna a lembrança da conclusão extremamente atual à qual chegou Rachel Sztajn quanto à necessidade de se conceder ao empresário a expressão de sua autonomia privada, aplicando-a à sociedade limitada6:
“Portanto, se alguma contribuição pode ser oferecida ao legislador, a análise tipológica das sociedades mostra uma tendência: que as estruturas jurídicas adotadas para o exercício da atividade empresarial se afastam cada vez mais dos modelos primitivos das sociedades e se encaminham para soluções distintas, conforme a integração das atividades ou, ao contrário, a tentacularização dos sistemas de distribuição seja o fator determinante, o fim visado. E, para essas soluções, melhor juiz do que aquele que arca com o risco do empreendimento não há. A certeza e a segurança do direito devem acomodar as manifestações da autonomia privada, motor que impulsiona a atividade econômica e beneficia a coletividade. A função se sobrepõe à estrutura determinando-a e não sendo subjugada em nome de formalismos incômodos”.
Tem-se verificado, como fato notório, que o legislador considera os agentes que atuam no mundo do direito como hipossuficientes na sua quase totalidade, tanto na vida civil como na empresarial. E, por essa razão, tem sido levada a cabo a construção de uma tutela massiva, que torna a vida difícil, cheia de formalidades desnecessárias e criadoras de uma profunda assimetria informacional entre os destinatários das normas, tanto de um lado, como do outro. Tal política legislativa acarreta o surgimento de pesados custos de transação, precisando os interessados que desejarem criar uma sociedade limitada, mesmo de pequeno porte, recorrerem aos préstimos de um advogado empresarial. E a orientação deste profissional, por mais acurada que seja, pode trazer consequências inesperadas em eventual problema que surja, porque estarão diante de interpretações divergentes, tanto na doutrina, como na jurisprudência. Isso leva a um significativo nível de insegurança, da qual decorrem novos custos de transação.
E veja-se no projeto a diversidade de dispositivos na tutela da sociedade limitada, fora do seu capítulo próprio. Observe-se no art. 1.053, § 1º do projeto, que a sociedade limitada é regida, nas omissões do capítulo próprio, pelas normas da sociedade simples, podendo atender o disposto no § 2º, no sentido de que “o contrato social poderá prever que a sociedade limitada seja regida, por além das normas da sociedade simples, também pelas normas da sociedade anônima, naquilo que lhes for compatível”.
Então o operador do direito, frente à sociedade limitada, precisará fazer um trabalho exegético de pesquisa, mais ou menos profundo, passando pelos seguintes caminhos: (i) verificar quais são as omissões do tratamento específico da sociedade limitada para aplicar a essa as normas da sociedade simplesmente; e (ii) se houve opção no contrato social pela regência da sociedade anônima, quais são as normas pertinentes a esse tipo social para a solução do problema. E aí se pergunta, quais as normas desta última aplicáveis à primeira? Abre-se, dessa forma, outra porta para um segundo trabalho exegético, voltando o intérprete à primeira casa do jogo. O resultado é a necessidade de um esforço intenso que poderia ser solucionado, como se tem aqui defendido, pela liberdade contratual, respeitada a estrutura mínima desse tipo social que a lei poderia especificar. Mas mínima mesmo!
Vamos a um exemplo construído a partir do projetado art. 1.076, onde fica disposto que “todas as deliberações, salvo disposição contratual diversa, serão tomadas por votos correspondentes a mais da metade do capital social, impliquem ou não em alteração do contrato”.
Esse dispositivo, que altera o regime em vigor, quebra a regra geral do atual art. 1.053, § 1º, segundo o qual nas omissões do capítulo sobre a Limitada, ela se rege pelas normas da sociedade simples. O problema se apresenta precisamente na possível inexistência de regra ou nas limitações contratuais no tocante ao conteúdo da disposição contratual diversa, que possa ser considerado suficiente para o deslinde da questão surgida. Nesse caso o jogador volta atrás no tabuleiro até chegar de novo ao §1º do art. 1.053. Vamos fazer outra jogada para chegarmos ao art. 1.010, que não foi alterado pelo projeto, valendo o conteúdo do mesmo dispositivo do Código atual, então mantido, devendo nós pularmos para outro tabuleiro. Pela conjugação dos dois tabuleiros, chegamos à conclusão no sentido de que o projeto manteve o caput do art. 1.010 e o parágrafo terceiro, mudado o parágrafo segundo a acrescentado o parágrafo quarto.
O nosso leitor cansou do jogo? Pode parar um pouco para tomar um chá de camomila.
Veja que o critério de deliberação que era de mais da metade do capital social passou para a maioria do capital, precisando se verificar ainda qual o critério para a formação da maioria absoluta e, no caso de empate, sem solução contratual e sem a indicação de superação da disputa por meio de arbitragem, ela será encaminhada ao Judiciário, que a decidirá sempre no interesse da sociedade, observação totalmente desnecessária.
Caro leitor, veja que estamos jogando uma partida complicada, na qual nós podemos nos perder a cada passo e não chegarmos a resolver o problema, a um custo extremamente elevado.
Por tudo isso e por muito mais que se poderia dizer sobre o projeto no tocante à sociedade limitada, ela tem de ser cuidada em capítulo próprio, dando-se primazia à liberdade das partes.
Mas o melhor mesmo a se fazer é declarar o projeto morto, enterrá-lo bem enterrado, para que nunca mais possa nos assustar.
_______
1 Vide a esse respeito o texto “O Triste Fim das Sociedades Limitadas no novo Código Civil”, de Vera Helena de Mello Franco, in RDM 12/81-85; e o item 5.1 do vol. 1º de nossa Coleção de Direito Comercial, Ed. Dialética, São Paulo, 2022.
2 Cf. In “Tsunami e populismo jurídico: as críticas de especialistas à reforma do Código Civil”, em evento na Fundação Fernando Henrique Cardoso, cf. “JOTA” DE 19.05.2025.
3 Cf. texto citado acima.
4 Idem.
5 Cf. o Mapa de Empresas do Governo Federal, consultado em 19.05.2025
6 In “Atipicidade de Sociedades no Direito Brasileiro”, Tese apresentada na Faculdade de Direito da USP em concurso de livre docência do Departamento de Direito Comercial, p. 255.