A cada semana acompanho atentamente as decisões proferidas pelos tribunais brasileiros que envolvem o superendividamento. Trata-se de uma atuação que exerço com responsabilidade, tanto como pesquisador do tema quanto como integrante do Grupo de Trabalho instituído pelo CNJ para monitorar a aplicação da lei 14.181/21.
Por isso, não poderia silenciar diante de dois recentes julgados - um do TJ/RN e outro do TJ/DFT - que, com o devido respeito, revelam uma preocupante incompreensão da estrutura e da finalidade da legislação que trata do superendividamento do consumidor.
No julgamento proferido pela 3ª câmara Cível do TJ/RN, sob relatoria do desembargador Vivaldo Pinheiro, no bojo da apelação cível 0801050-22.2024.8.20.5121, entendeu-se que “a repactuação judicial compulsória de dívidas depende da comprovação de conduta abusiva das instituições financeiras, o que não se verifica quando os contratos foram regularmente pactuados com autorização expressa para desconto em conta”.
Já no julgamento da 7ª turma Cível do TJ/DFT, relatado pela desembargadora Gislene Pinheiro (Acórdão 07204215720218070003), decidiu-se igualmente que, “a despeito da situação econômica da consumidora, não restou minimamente comprovada qualquer conduta abusiva por parte da instituição financeira que respalde a pretensão de repactuação”.
Ambas as decisões, embora proferidas por câmaras distintas, repetem a mesma premissa equivocada: consideram que o deferimento da repactuação compulsória das dívidas estaria condicionado à comprovação de abusividade nas condutas das instituições financeiras.
O raciocínio é falho em sua origem, pois confunde, de maneira estrutural, o regime jurídico do superendividamento com a lógica tradicional das ações revisionais de contrato. Trata-se de um erro técnico grave que compromete não apenas a efetividade da norma, mas também a confiança da população em um sistema de Justiça que deve, acima de tudo, proteger a dignidade da pessoa humana.
A lei 14.181/21 não instituiu uma nova modalidade de ação revisional. Ela criou, com autonomia própria e objetivos específicos, um procedimento voltado à repactuação global das dívidas de consumo, com vistas a assegurar ao consumidor a possibilidade de reorganizar sua vida financeira sem abrir mão do seu mínimo existencial.
A finalidade do procedimento, regulado nos arts. 104-A e seguintes do CDCr, é restaurativa. Trata-se de permitir que o consumidor de boa-fé - que se encontra impossibilitado de pagar suas dívidas sem sacrificar sua subsistência - apresente, com auxílio do Poder Judiciário, um plano de pagamento viável, transparente, coletivo e solidário.
Em nenhum momento a lei exige, como requisito para o processamento da repactuação, a demonstração de conduta abusiva por parte dos credores. Ao contrário, o que se exige é a demonstração da boa-fé do consumidor e da existência de um cenário objetivo de superendividamento, caracterizado pela impossibilidade de adimplir as dívidas de consumo - vencidas e vincendas - sem comprometer o mínimo existencial.
Exigir, como fizeram os votos vencedores nos acórdãos mencionados, que o consumidor demonstre a abusividade dos contratos firmados, é esvaziar completamente a ratio da norma. É transformar um procedimento de reestruturação social e econômica em uma mera ferramenta de sanção contratual, o que não corresponde à lógica protetiva nem à inspiração constitucional da lei. Trata-se de um reducionismo jurídico perigoso, que ignora a função social do crédito e o papel do Estado na prevenção da exclusão econômica do cidadão superendividado.
A analogia com o regime da falência empresarial é útil para demonstrar o absurdo da exigência. Imagine-se se, para admitir o processamento de uma recuperação judicial ou mesmo da falência de uma empresa, fosse necessário que esta comprovasse condutas abusivas praticadas por seus credores. Tal requisito seria não apenas impraticável, mas absolutamente incompatível com os objetivos do instituto. O mesmo vale para o superendividamento da pessoa natural. O foco do procedimento é o estado financeiro do devedor, e não a conduta de seus credores.
Além disso, há outro ponto preocupante. Ao sustentar que os empréstimos foram regularmente pactuados com autorizações expressas e que não houve afronta à margem consignável, os julgados do TJ/RN e do TJ/DFT adotam uma concepção meramente formalista da legalidade, afastando-se do princípio da dignidade da pessoa humana.
A boa-fé objetiva, o dever de cooperação, a vulnerabilidade estrutural do consumidor e o mínimo existencial são todos preceitos que compõem a moldura interpretativa da lei 14.181/21. Ignorá-los significa tornar o sistema jurídico incapaz de dar resposta às demandas concretas da sociedade.
A situação exige, portanto, uma reação institucional. É urgente que os tribunais promovam a capacitação técnica e teórica de seus magistrados sobre os fundamentos, os objetivos e os procedimentos trazidos pela lei do superendividamento. A ausência dessa compreensão tem resultado em decisões que não apenas negam proteção ao consumidor vulnerável, mas também disseminam interpretações equivocadas que tendem a ser replicadas por outras instâncias judiciais, gerando insegurança jurídica e distorcendo o sentido da lei.
Concluo com um apelo aos tribunais brasileiros. A lei 14.181/21 foi fruto de longos debates acadêmicos, institucionais e legislativos. Ela representa um avanço civilizatório na proteção do consumidor superendividado. Sua finalidade não é punir fornecedores, mas resgatar a dignidade de pessoas que, mesmo agindo com boa-fé, se viram soterradas por um ciclo de endividamento insustentável. Sua aplicação exige sensibilidade, conhecimento e compromisso com os valores constitucionais.
Negar esse entendimento é negar o próprio espírito da lei. É tempo de consolidar uma jurisprudência que compreenda o superendividamento como um fenômeno social complexo, que exige respostas jurídicas humanizadas e estruturantes. O Judiciário precisa ser parte da solução - e não da perpetuação do problema.