A recente criação da vara Estadual de Organização Criminosa pelo venerável TJ/SC, em maio passado, marca um movimento tecnicamente inovador no enfrentamento ao crime organizado no Brasil.
Trata-se de uma unidade judiciária composta por um colegiado de cinco magistrados – com competência privativa e concorrente para julgar todos os atos concernentes –, atuando sob regime de anonimato parcial, com distorção de imagem e voz durante as audiências, e com sessões realizadas exclusivamente por videoconferência; medida essa voltada à proteção física dos julgadores e demais operadores do sistema.
Inequivocamente, o objetivo é proteger os juízes de represálias em razão da periculosidade dos grupos julgados, mormente facções criminosas com atuação interestadual e internacional; muitas das vezes, envolvidas com tráfico de drogas, de armas, lavagem de dinheiro e homicídios. É o retrato que se enxerga na obra “O Banquete”, de Platão, onde a frase “a necessidade é a mãe da inovação” emoldura a realidade atual.
Diz-se que os clássicos nunca saem de moda e, assim como no diálogo platônico, a solução adotada pelo Judiciário catarinense – reforçada pela lei 13.964/19 (pacote anticrime) –, é baseada na lei 12.694 de 2012 e guarda vieses assertivos de atividades de inteligência.
(Lei 12.694/12) Art. 1º-A. Os TJs e os TRFs poderão instalar, nas comarcas sedes de Circunscrição ou Seção Judiciária, mediante resolução, varas Criminais Colegiadas com competência para o processo e julgamento:
I - de crimes de pertinência a organizações criminosas armadas ou que tenham armas à disposição;
II - do crime do art. 288-A do decreto-lei 2.848, de 7/12/1940 (Código Penal); e
III - das infrações penais conexas aos crimes a que se referem os incisos I e II do caput deste artigo.
§ 1º As varas Criminais Colegiadas terão competência para todos os atos jurisdicionais no decorrer da investigação, da ação penal e da execução da pena, inclusive a transferência do preso para estabelecimento prisional de segurança máxima ou para regime disciplinar diferenciado.
§ 2º Ao receber, segundo as regras normais de distribuição, processos ou procedimentos que tenham por objeto os crimes mencionados no caput deste artigo, o juiz deverá declinar da competência e remeter os autos, em qualquer fase em que se encontrem, à vara Criminal Colegiada de sua Circunscrição ou Seção Judiciária.
§ 3º Feita a remessa mencionada no § 2º deste artigo, a vara Criminal Colegiada terá competência para todos os atos processuais posteriores, incluindo os da fase de execução.
Ela, a solução, retoma e reformula a lógica do "Juiz sem Rosto", que ganhou notoriedade na década de 1990 em países como Itália e Colômbia; posteriormente, no Rio de Janeiro, com a atuação da Justiça Federal no combate ao crime organizado. Quanto às exceções da medida, elas residem nos processos de competência do Tribunal do Júri, de Violência Doméstica e do Juizado Especial Criminal.
Entretanto, o diferencial atual é que a vara não apenas tem competência especializada, mas é também estruturalmente plural, compondo um modelo que busca assegurar o distanciamento institucional e a segurança física de seus integrantes, como dito.
Porém, os debates acerca da constitucionalidade dessa medida são inevitáveis. Toda discussão jurídica acaba por circundar o princípio do juiz natural, previsto no art. 5º, inciso LIII, da Constituição Federal, que impede a criação de tribunais ou juízos de exceção, assegurando que todo cidadão seja julgado por autoridade competente previamente estabelecida por lei.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
Neste caso, não se trata de juízo de exceção ou tribunal de exceção, mas de um órgão regular, integrado à estrutura do Judiciário estadual, com competência funcional e territorial definida e anterior aos fatos sob julgamento. Inclusive, tal especialização é vista como uma forma de garantir maior celeridade, técnica e coerência no julgamento de crimes de elevada complexidade.
Todavia, o aspecto mais sensível da iniciativa diz respeito à publicidade dos atos processuais, uma vez que a Carta Magna em seu art. 93, inciso IX, exige que todas as decisões sejam fundamentadas e que os julgamentos sejam públicos, salvo nas hipóteses legais de segredo de justiça.
Art. 93. LC, de iniciativa do STF, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público pela informação;
Aqui, a publicidade dos atos não é eliminada, mas mitigada quanto à identidade dos julgadores. Outrossim, a atuação do colegiado é registrada, as decisões são motivadas e acessíveis e, por isso, o processo tramita normalmente sob o acompanhamento das partes. Ainda assim, não se pode negligenciar o debate sobre eventuais riscos democráticos de se permitir o anonimato dos juízes; mesmo em nome da segurança institucional.
Isso porque a ausência de identificação individual pode, em tese, supostamente dificultar o exercício pleno do contraditório, uma vez que não se poderia aferir o histórico, a imparcialidade e eventuais impedimentos ou suspeições relacionadas a cada julgador.
Desta feita, tal preocupação não é trivial, especialmente no que tange o princípio da identidade física do juiz que, embora mais robusto no processo civil, também se manifesta no âmbito penal como um ideal de continuidade e pessoalidade na jurisdição.
Contudo, a solução catarinense não rompe essa lógica, pois os cinco juízes atuarão de forma conjunta desde a origem do processo, participando dos atos de instrução e decisão, sem substituições arbitrárias no curso da marcha processual.
Assim, pontua-se que, embora inédito, o modelo está juridicamente fundamentado e é compatível com o sistema normativo brasileiro, desde que sua aplicação seja feita com rigor técnico e fiscalização contínua.
Afinal, o debate sobre a temática é amplo. E essa amplificação não se esgota na esfera judicial. Ele, o debate, ganha corpo também no plano legislativo, especialmente com a tramitação do PL 212/24, cuja sugestão legislativa é deste escritor, catarinense.
O hoje PL 212/24 – cuja propositura se deu junto ao Conselho Federal da OAB e a seccional barriga verde, em 2022 –, visa prover um maior lastro de proteção à Advocacia brasileira. O objetivo é incutir qualificadoras aos tipos penais de lesão corporal e homicídio praticados contra advogados no exercício da profissão ou em decorrência dela; medida extensiva aos cônjuges, companheiros e parentes consanguíneos até terceiro grau, em razão dessa condição.
Nessa senda, a pertinência de se traçar um paralelo entre o novo modelo de vara colegiada implantada pelo egrégio TJ/SC e o PL 212/24 é manifesta. Ambos se inserem em um contexto mais abrangente de fortalecimento institucional diante da crescente violência contra operadores do Direito; sejam advogados ou magistrados.
Aqui, se aponta para o horizonte de proteção e salvaguarda dos pilares constitucionais do Estado Democrático de Direito, como arguido no texto da sugestão legislativa:
[...] Ademais, vilipendiar estes operadores da justiça, além de expor o desprezo que os criminosos têm para as instituições e para o sistema jurídico e constitucional do Brasil, fragiliza e coage a atuação funcional dos homens e mulheres que, diuturnamente, buscam defender a Justiça e o Estado Democrático de Direito.[...]
[...]Por isso, incluir tais hipóteses qualificadoras ao regramento penal promoverá, ao menos, a concreta sinalização estatal no sentido de prover maior segurança funcional e tutela institucional aos importantes patronos que laboram perante a Justiça brasileira.
Portanto, é imperioso que, ao mesmo tempo em que se busca proteger os agentes do sistema de justiça, não se prescinda a transparência, a imparcialidade e a possibilidade de fiscalização dos atos judiciais. Diante disso, o Estado ao enfrentar o crime organizado deve responder de forma contundente, cirúrgica, legal, efetiva e constitucional; assim como nas expectativas depositadas na louvável criação da vara especializada em solo catarinense.
Quanto à iniciativa legislativa prezando pela advocacia brasileira, o PL 212/24 encontra-se em regime de urgência, aguardando votação no plenário da Câmara dos Deputados.
Enquanto isso, faz-se poesia. Olha-se para o horizonte, onde nada distante, pairamos corpos nesta “sala de espera” chamada Democracia. E por falar nisso, Vinícius, que “Com as lágrimas do tempo e a cal do meu dia, eu fiz o cimento da minha poesia”.
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BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23/5/25.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 23/5/25.
BRASIL. Lei nº 12.694, de 24 de julho de 2012. Dispõe sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas; altera dispositivos dos Códigos Penal, de Processo Penal, de Trânsito e do Estatuto do Desarmamento. Diário Oficial da União, seção?1, p.?3, 25 jul. 2012. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2012/lei-12694-24-julho-2012-773906-norma-pl.html. Acesso em: 9/6/25.
MORAES, Vinicius de. Antologia poética. 27. ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Conselho Federal. Gabinete da Vice-Presidência. Ofício n. 004/2022 – GVP, de 29 de mar. de 2022. Propõe e apoia sugestão de Projeto de Lei que qualifica os crimes de Homicídio e Lesão Corporal praticados contra Advogados de iniciativa do Sr. Thiago de Miranda Coutinho. Endereçado a Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch, Presidente da Comissão Especial de Estudo do Direito Penal. Brasília, 2022. 1 f.
PLATÃO. O Banquete. Tradução de Carlos Alberto Nunes; texto grego baseado em John Burnet; editor convidado Plínio Martins Filho; coordenação de Benedito Nunes e Victor Sales Pinheiro. 4. ed. bilingue (grego-português), revista. Belém: Editora UFPA, 2018.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Judiciário de SC inova ao criar Vara Estadual de Organizações Criminosas. Florianópolis: TJSC, maio 2025. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/judiciario-de-sc-inova-ao-criar-vara-estadual-de-organizacoes-criminosas-. Acesso em: 9/6/25.