Migalhas de Peso

Julgamento pelo STF quanto à responsabilidade subsidiária do ente público, na perspectiva do ônus da prova

“E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade”. (Paulo Freire)

12/6/2025
Benizete Ramos de Medeiros

Introdução

As terceirizações como meios produtivos deslocados, avançaram no capitalismo moderno revelando formas de contratações bem atípicas – atualmente comuns –, onde o destinatário da força de trabalho não é o empregador que dirige e assalaria a prestação de serviços (arts. 2º e 3º da CLT). Sobre o tema terceirização, já produzimos1 alguns textos sobre várias vertentes, que aqui não cabe o retorno.

Mas, discutir a legalidade ou não dessa forma de intermediação de mão de obra, está superado – embora eu continue sustentando que é nociva ao empregado – mesmo porque a lei 13.467/17, que alterou a lei 13.429/17, que por sua vez alterou a lei 6.019/74 ampliou esse tipo de contratação, não mais somente para atividades meios ou temporárias na forma do que permitia a referida súmula, mas, avançando para todas as atividades das empresas.2 

E, a despeito disso, o STF entendeu pela constitucionalidade da lei, o que já discuti em outro texto mais abaixo mencionado.

E, desta feita, mais um passo foi dado pelo STF, transferindo para o empregado terceirizado o ônus de provar que a Administração Pública contratante, fiscalizou ou deixou de fiscalizar o contrato com a empresa contratada, sua empregadora, ou seja foi ou não negligente nas obrigações, quando ele for o autor da ação.

1. O Tema 1.118 no STF

Na sessão extraordinária do dia 13/2/25, foi julgado o RE 1.298.647, que assumiu o Tema 1.118, na relatoria do ministro Nunes Marques. Trata da definição da responsabilidade subsidiária do Poder Público na terceirização, transferindo ao empregado terceirizado o ônus de comprovar a ausência de culpa do ente público por fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas devidas pela empresa contratada, com a seguinte ementa:

Tema 1.118 - Ônus da prova acerca de eventual conduta culposa na fiscalização das obrigações trabalhistas de prestadora de serviços, para fins de responsabilização subsidiária da Administração Pública, em virtude da tese firmada no RE 760.931 (Tema 246)

O julgamento iniciou-se no dia anterior, 12/2/25 e, sem unanimidade foi entendido por maioria que o ônus da prova da fiscalização ou não é do empregado autor da ação. Assim: “se amparada exclusivamente na premissa da inversão do ônus da prova, remanescendo imprescindível a comprovação, pela parte autora, da efetiva existência de comportamento negligente ou nexo de causalidade entre o dano por ela invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público”.

O voto do ministro Edson Fachin, foi de grande alinhamento com a decisão do TST, então reformada, porque entendeu que o empregado não tem ferramentas para fiscalizar, quiçá fazer essa prova. "É a hipertrofia superlativada da terceirização" e mais, como defensor da competência da Justiça do Trabalho afirmou “É sim dever do ente tomador de serviço provar que fiscalizou. Se não o fizer, responde". Absolutamente coerente com os princípios e normas trabalhistas e mesmo o CPC.

Na redação do voto do relator, transfere ainda, ao empregado ou sindicato profissional o dever de notificarem o ente público da ausência de cumprimento dos encargos trabalhistas, requisito para que o ônus seja da administração público e, despeito desse requisito, o ente público permanecer inerte, aí sim a responsabilidade subsidiária se confirma. Ora, isso não funciona na prática, sobretudo quando se trata de empresas pequenas, de municípios pequenos e de sindicatos fragilizados ou grupo de trabalhadores que sequer são organizados em sindicatos.

E, para além disso, deverá fazer a prova de que o ente público não ficou negligente, e que foi avisado, caso tenha sido omisso, portanto, o peso do ônus da prova é deslocado para o empregado. No nosso sentir, tal decisão, além de ser uma prova quase impossível, viola os princípios constitucionais e específicos do processo do trabalho, como o da ampla defesa – art. 5º, LV, CF, que completa o princípio do contraditório; igualdade ou isonomia de tratamento – art. 5º. caput; 1º. e 3º e o princípio específico do processo do trabalho, que é a finalidade social que quebra o princípio da isonomia – art. 5º. LICC.

2. Prova e ônus da prova no processo do trabalho

O direito à prova é um direito fundamental com feição publicista que se alinha ao princípio do acesso à Justiça e tem por escopo formar a convicção do juiz sobre determinado fato do processo. E o ônus não é obrigação é faculdade. A parte corre o risco de não ver provado as suas alegações e não ser vencedora na sua postulação.

2.1. fatos constitutivos, modificativos, impeditivos e obstativos do direito

Segundo a divisão legal e primária cabe ao autor o fato constitutivo de provar o direito postulado, conforme arts. 818 da CLTe 373 do CPC, que faz a eficácia de dar vida, fazer nascer o direito, portanto, são aqueles que uma vez provados, levam ao êxito do pedido autoral, como por exemplo, a existência de um contrato de emprego, quando negada na defesa qualquer natureza de vínculo; a existência de parte do salário extra recibos (por fora), quando a defesa nega.

Aos réus, cabem os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor (art. 818, II da CLT e 313, II do CPC), portanto, consideram-se fatos impeditivos, as circunstâncias que impedem decorram de um fato o efeito que é normal e esperado, como por exemplo, o empregado postula férias e o empregador alega que o mesmo faltou além do limite legal no período aquisitivo e, portanto, não terá direito ao gozo de férias. Mas, nesse mesmo exemplo pode ocorrer tratar-se de fato modificativo, por exemplo, quando o número de faltas exibidas apenas reduz os dias do período de gozo de férias, porque não exclui ou impede o direito postulado, mas o modifica.

Já os fatos extintivos, são aqueles que fazem cessar a vontade concreta da lei e a consequente expectativa de um bem, como por exemplo a prescrição total quando arguida; o pagamento de uma dívida, que mediante a prova do réu, extingue-se o direito.

A CPC/15, sem alterar os dispositivos legais acima citados e transcritos em nota de rodapé, incluiu a dinâmica do ônus da prova, inserto no art. art. 373, §1º, muito bem tratada por Didier,

A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova (teoria dinâmica do ônus probatório ou carga dinâmica da prova) parte da premissa que “a prova incumbe a quem tem melhores condições de produzi-la, à luz das circunstâncias do caso concreto. Em outras palavras: Prova quem pode 34

Recepcionado pela Justiça do Trabalho, conforme clara redação do art. 3º, inc. VII, da IN 39/16 do C. TST. Nesse sentido, a jurisprudência trabalhista já vinha orientando a inversão do ônus da prova para viabilizar o amplo acesso à justiça, como alguns casos sumulados pelo TST, como a equiparação salarial, inserta na s. 6 do c.TST, segundo a qual “. [...]VIII - É do empregador o ônus da prova do fato impeditivo, modificativo ou extintivo da equiparação salarial”, e, ainda as súmulas 212 e 338, sobre ônus da prova quanto ao término do contrato e do controle de jornada, respectivamente.

Portanto, a par disso, a lei 13.467/17, trouxe esse comando que tem por escopo produzir a prova aquele que estiver em melhores condições de fazê-lo, do ponto de vista fático, técnico, econômico e jurídico, conforme arts. 818 e 852-D, da CLT; 373 CPC e art. 6o VIII do CDC.

Antes mesmo, já se defendia essa tese com base no art. 852-D da CLT, e 139 e 775 do CPC

Ora, é o entendimento que se harmoniza com os princípios que regem o direito material do trabalho. Bezerra Leite, citando Alexandre Freitas Câmara assegura que: Só se justifica essa distribuição dinâmica do ônus da prova, frise-se, quando a parte a quem normalmente incumbiria o ônus não tenha sequer condições mínimas de produzi-la. Desse modo, a aplicação da teoria dinâmica do ônus da prova se revela como uma forma de equilibrar as forças na relação processual, o que nada mais é do que uma aplicação do princípio da isonomia (...). Registre-se, porém, por amor à clareza, que a distribuição dinâmica do ônus da prova não é regra, mas exceção.5 

Ainda para o autor, a distribuição encontra fundamentos nos princípios da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), da igualdade formal e substancial das partes (CF, arts. 3º, III, 5º, caput), do acesso justo à Justiça (CF, art. 5º, XXXV), da lealdade, boa-fé e veracidade (CPC, arts. 77, 79, 80, 81 e 139) e da cooperação (CPC, arts. 378, 379, 386 e 396)6 

No processo do trabalho não cabe a convenção das partes, isso por força da IN 39/16 do TST, já referida.

Mas, não se pode perder de vista a vedação da prova impossível, inserta no parágrafo 1º do art. 373 do CPC, e no parágrafo terceiro do art. 818 da CLT, portanto, do que seu viu até aqui, transferir para o empregado terceirizado o ônus de prova que a Administração Pública não foi negligente na contratação e fiscalização da empresa contratada, é uma prova quase impossível, o que confronta com a proteção constitucional.

Essa decisão, contraria princípios do Direito Processual do trabalho, viola os princípios constitucionais e específicos do processo do trabalho, como o da ampla defesa – art. 5º, LV, CF, que completa o princípio do contraditório; igualdade ou isonomia de tratamento – art. 5º. caput; 1º. e 3º da CF.; e o princípio especifico do processo do trabalho, que é a finalidade social que quebra o princípio da isonomia – art. 5º. LICC além da vedação da prova impossível (art. 333, parágrafo 1º do CPC e o art. 818 parágrafo 3º CLT).

A distribuição do ônus da prova constante da legislação – fatos constitutivos do direito do autor, modificativos, impeditivos ou extintivos, não são herméticos, mesmo porque há a dinâmica do ônus da prova e centra-se em produzir a prova quem pode, com fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), da igualdade formal e substancial das partes (CF, arts. 3º, III, 5º, caput), do acesso justo à Justiça (CF, art. 5º, XXXV), da lealdade, boa-fé e veracidade (CPC, arts. 77, 79, 80, 81 e 139) e da cooperação (CPC, arts. 378, 379, 386 e 396). É um instituto que se lê no conjunto.

Nessa hipótese, transferir para o empregado o ônus de uma prova tão difícil e tão inacessível é desprotegê-lo, e desrespeitar princípios fundamentais, além de ficar evidente a proteção ao ente público contratante que, a partir de tal decisão, reduzirá os critérios quanto às escolhas das empresas quando das contratações e certamente, voltar-se ao campo de batalha do trabalhador na execução E o STF, avança na contramão da proteção.

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1 MEDEIROS, Benizete Ramos.Terceirização, um projeto de marginalização que deu certo. In Administração de conflitos e cidadania. Problemas e Perspectivas VI. Amorim. Maria Stella Faria de; Lima. Roberto Kant de ; Lima. Michel Lobo Toledo e Figueira. Hector Luiz Martins (organizadores). RJ: Autografia. 2022. p.58-60. 

2 MEDEIROS, Benizete Ramos. A agenda 2030 da ONU. Reflexões sobre o trabalho decente e a sustentabilidade econômica. In: Reconfiguração dos Modos de Trabalhar – Olhares Diversos. Benizete Ramos de Medeiros (org). SP: Ltr. 2023

3 MEDEIROS.. Benizete Ramos. Velhos hábitos, nova roupagem e uma reforma sob encomenda e a luta das associações e instituições para evitar o retrocesso. Revista do IAB. IX, série 44, 2017.

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, 2007, v. 2, p. 62

LEITE. Carlos Henrique Bezerra . Curso de Direito Processual do Trabalho.  15ª Edição:   SP: Ltr. 2018.p.1097

6 LEITE. Carlos Henrique Bezerra . Curso de Direito Processual do Trabalho.  15ª Edição:   SP: Ltr. 2018.passim

7 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, v. 2. 2016.

8 LEITE. Carlos Henrique Bezerra . Curso de Direito Processual do Trabalho.  15ª Edição:   SP: Ltr. 2018.

9 ______________ Terceirização, um projeto de marginalização que deu certo. In Administração de conflitos e cidadania. Problemas e Perspectivas VI. Amorim. Maria Stella Faria de; Lima. Roberto Kant de ; Lima. Michel Lobo Toledo e Figueira. Hector Luiz Martins (organizadores). RJ: Autografia. 2022. p.58-60.  

10 ______________ A agenda 2030 da ONU. Reflexões sobre o trabalho decente e a sustentabilidade econômica. In: Reconfiguração dos Modos de Trabalhar – Olhares Diversos. Benizete Ramos de Medeiros (org). SP: Ltr. 2023 .

Benizete Ramos de Medeiros

Advogada Trabalhista; Pós-doutora em Direitos Humanos (Coimbra,PT); Doutora em Direito e Sociologia (UFF); Mestre em Direito (FDC); professora de graduação e pós-graduação stricto sensu (PPGD/UVA); ex- diretora (2022-2024) e atualmente membro da Escola Superior da Advocacia Trabalhista da ABRAT; diretora de Educação do IAB (2022-2025) e membro da Comissão de Direito do Trabalho do IAB; diretora e ex-presidente da Associação Luso-brasileira de Juristas do Trabalho: JUTRA, pesquisadora.

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