Constitui dúvida corrente entre passageiros - e até mesmo entre profissionais da advocacia – a possibilidade ou não de se cumular a compensação financeira prevista na resolução 400/16 da ANAC com pedidos de indenização por dano material e compensação por dano moral, em casos de overbooking.1
A dúvida ocorre porque os arts. 212 e 233 da norma reguladora impõe às companhias aéreas o dever de oferecer compensação financeira àqueles passageiros que se volunatariarem para que sejam reacomodados em outros voos4, caso sejam preteridos em razão da prática de overbooking.
Em acréscimo, o art. 24 da mesma norma impõe à cia. aérea o imediato pagamento da compensação financeira ao passageiro, em DES - Direitos Especiais de Saque5, nos moldes definidos nos incisos I e II do dispositivo, conforme a natureza do transporte a ser realizado.
Esclareça-se, todavia, que tal compensação ostenta natureza jurídica de cláusula penal compensatória6, sendo devida ao passageiro, independentemente da comprovação de algum prejuízo concreto, funcionando como um instrumento de resposta a falhas no serviço de transporte aéreo. Ademais, por se tratar de compensação genérica e desprovida de individualização, essa compensação não substitui a reparação integral dos danos eventualmente sofridos pelo consumidor.
O CDC consagra, em seu art. 6º, VI, o direito básico do consumidor a efetiva prevenção e reparação integral de danos materiais e morais, individuais, coletivos e difusos, com fundamento no princípio da restitutio in integrum. Em reforço, Claudia Lima Marques, Antônio Herman Benjamin e Leonardo Roscoe Bessa destacam: “Para o Código, de fato, a reparação é ampla, cobrindo todos os danos sofridos pela vítima, patrimoniais (diretos ou indiretos) e morais, inclusive aqueles causados no próprio bem de consumo defeituoso”. (BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 7ª edição. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016, p. 175-176).
Com efeito, há inúmeros casos em que a compensação prevista na norma da ANAC não será suficiente para indenizar ou compensar os danos sofridos pelo passageiro, em razão de overbooking. Imagine-se, por exemplo, o caso de pessoas que, apesar de receberem a compensação pecuniária, perdem um dia de passeio no local de destino, diárias de hospedagem, compromissos profissionais, entre outras hipóteses.
Nesse contexto, o consumidor prejudicado por overbooking que, eventualmente, receber da cia. aérea a compensação disciplinada pela resolução 400/16 da ANAC, não perde o direito de ajuizar eventual demanda de natureza indenizatória contra a cia. aérea, sob pena de se ofender o princípio da reparação integral de danos.
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1 "Podemos denominar como overbooking a consciente atividade de contratar do transportador aéreo que exorbita de sua real e efetiva capacidade de proporcionar acomodamento a todos os passageiros numa determinada aeronave em determinado vôo, culminando com a exclusão de alguns deles.
(...)
Em outras palavras, a empresa de transporte aéreo, mesmo ciente de que celebra contratos de consumo com contingente de pessoas superior à capacidade de ocupação da aeronave, aceita o risco de vir a causar frustrações à legítima expectativa dos consumidores de embarcar no vôo contratado, almejando, com isso, reduzir a taxa de desistência e aumentar seu lucro." (SOUSA, Álvaro. 27. Overbooking: responsabilidade civil do transportador aéreo à luz do Código de Defesa do Consumidor - Capítulo 4 - Práticas Comerciais Abusivas In: MARQUES, Claudia; MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor: proteção da confiança e práticas comerciais. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2011. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/direito-do-consumidor-protecao-da-confianca-e-praticas-comerciais/1510682608. Acesso em: 10 de Agosto de 2023).
2 Art. 21. O transportador deverá oferecer as alternativas de reacomodação, reembolso e execução do serviço por outra modalidade de transporte, devendo a escolha ser do passageiro, nos seguintes casos:
(...)
III - preterição de passageiro.
3 Art. 23. Sempre que o número de passageiros para o voo exceder a disponibilidade de assentos na aeronave, o transportador deverá procurar por voluntários para serem reacomodados em outro voo mediante compensação negociada entre o passageiro voluntário e o transportador”
4 Segundo o disposto no art. 24 da Resolução 400 da ANAC, o valor da compensação financeira devida ao passageiro que aceitar ser reacomodado em outro voo será de 250 DES, no caso de voo doméstico, e de 500 DES, caso se trate de voo internacional.
5 No sítio eletrônico do Banco Central do Brasil, o Direito Especial de Saqueé conceituado como “(...) a unidade contábil utilizada pelo Fundo Monetário Internacional - FMI e tem sua taxa referenciada em uma cesta de moedas que são livremente utilizáveis em transações internacionais, atualmente o euro (ECU), o iene (JPY), a libra esterlina (GBP) e o dólar norte-americano (USD)”. (disponível em: https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/legado?url=https:%2F%2Fwww.bcb.gov.br%2Fhtms%2FinfFina%2Fbe200406%2F2notaexplic.asp. Acesso em 10/06/2025)
6 APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS - CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO - NECESSIDADE DE READEQUAÇÃO DO PESO DA AERONAVE - OVERBOOKING CARACTERIZADO - RESOLUÇÃO 400 DA ANAC - ART. 24 - COMPESAÇÃO FINANCEIRA - NATUREZA JURÍDICA - CLÁUSULA PENAL COMPENSATÓRIA - CUMULAÇÃO COM PERDAS E DANOS - IMPOSSSIBILIDADE - DANOS MORAIS - OCORRÊNCIA - ARBITRAMENTO RAZOÁVEL - MANUTENÇÃO. I - A preterição do embarque de passageiro, em virtude da necessidade de readequação de peso da aeronave, enquadra-se no conceito de overbooking, na medida em que houve erro no gerenciamento do limite operacional de voo. II - A companhia aérea deverá ser diligente na venda de passagens, para que a quantidade de passageiros e suas respectivas bagagens não excedam o limite operacional da aeronave, visto que a impossibilidade de realização da viagem adquirida pelo consumidor, em virtude de necessidade de readequação do peso, configura fortuito interno. III - Inexistente ressalva no Código da Reserva de passagem aérea acerca da necessidade de prestação de informações no momento de realização do check in, não há que se falar em culpa do consumidor pela não realização da viagem. IV - A compensação financeira tarifada estabelecida pela ANAC, prevista no art. 24, inciso I, da Resolução Nº. 400, tem por objetivo ressarcir, de maneira geral, as despesas decorrentes do impedimento de embarque, não havendo que se falar em acréscimo a título de perdas e danos, sob pena de enriquecimento sem causa do consumidor. V - Não há ilegalidade na aplicação de multa compensatória por agência reguladora, na medida em que se trata do exercício do poder regulamentar pela autarquia. VI - A impossibilidade de embarque por overbooking, que sujeita o consumidor a atraso prolongado, configura falha na prestação de serviço da companhia aérea passível de ensejar indenização por danos morais. VII - O valor da indenização por danos morais deverá atender aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade. (TJ/MG - Apelação Cível 1.0000.23.290348-4/001, Relator (a): Des. (a) Luiz Gonzaga Silveira Soares , 20ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 7/2/2024, publicação da súmula em 8/2/2024). No mesmo sentido: Transporte aéreo. Venda de passagens em número superior aos assentos disponíveis. Overbooking. Informações enganosas ao consumidor. Dano moral indenizável presumido (in re ipsa). Precedentes STJ. Remarcação do voo para o dia seguinte. Ausência de assistência material. Chegada com atraso de quase 9 horas do voo originariamente contratado. Perda de compromisso e da carona agendada. Necessidade de novo meio de transporte. Cumprimento imperfeito do contrato. Condutas reprováveis da Tam Linhas Aéreas S/A. Dano moral particularmente qualificado. Indenização arbitrada em R$ 10.000,00, que atende bem aos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade. Precedentes. Em razão da preterição do autor no embarque, cabível a cumulação com a compensação financeira prevista nos artigos 22 e 24 da Resolução 400/2016 da ANAC. Precedentes. Recurso provido, em parte. Honorários incabíveis (art. 55 da Lei 9.099/95). (TJ/SP - Recurso Inominado Cível: 1001789-33 .2023.8.26.0609, Relator.: Carlos Ortiz Gomes - Colégio Recursal, Data de Julgamento: 8/3/2024, 3ª turma Recursal Cível, Data de Publicação: 8/3/2024)