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Adicional de penosidade e o Tema 1.307 do STJ: Motoristas e cobradores

STJ define futuro da aposentadoria especial para motoristas: Tema 1.307 pode revolucionar direitos previdenciários de milhares de trabalhadores expostos à penosidade..

24/6/2025
Alan da Costa Macedo

1. Introdução

A questão do reconhecimento da atividade especial para motoristas e cobradores de ônibus, bem como motoristas de caminhão, representa uma das controvérsias mais complexas e relevantes do direito previdenciário contemporâneo. O Tema 1.307 do STJ, afetado para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, busca definir se há possibilidade de reconhecimento da especialidade dessas atividades por penosidade, após as alterações promovidas pela lei 9.032/1995.1

A relevância do tema transcende os aspectos meramente jurídicos, alcançando dimensões sociais e econômicas significativas. Milhares de trabalhadores brasileiros exercem essas profissões em condições que, historicamente, foram reconhecidas como penosas, insalubres ou perigosas. A alteração do paradigma legal em 1995, que extinguiu o enquadramento automático por categoria profissional, criou um vácuo normativo que tem gerado insegurança jurídica e dificultado o acesso desses trabalhadores aos benefícios previdenciários especiais.2

O presente estudo propõe-se a examinar essa controvérsia sob múltiplas perspectivas: a evolução histórica da legislação previdenciária, a jurisprudência consolidada pelos tribunais superiores, os precedentes regionais que têm admitido o reconhecimento da penosidade, e o contexto constitucional mais amplo que envolve o direito fundamental ao adicional de penosidade. Busca-se, assim, contribuir para o debate jurídico e oferecer subsídios para uma interpretação que concilie a segurança jurídica com a proteção social dos trabalhadores expostos a condições laborais especialmente gravosas.

A metodologia adotada baseia-se na análise doutrinária e jurisprudencial, com especial atenção aos precedentes do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que tem se destacado no reconhecimento da penosidade mediante critérios técnicos objetivos. Examina-se, ainda, o impacto da recente decisão do STF na ADO 74, que reconheceu a omissão inconstitucional do Congresso Nacional em regulamentar o adicional de penosidade, estabelecendo prazo de 18 meses para suprir essa lacuna legislativa.3

2. Contexto histórico e evolução legislativa

2.1. O regime anterior à lei 9.032/1995

Antes das alterações promovidas pela lei 9.032, de 28 de abril de 1995, o sistema previdenciário brasileiro adotava o critério de enquadramento por categoria profissional para o reconhecimento de atividades especiais. Esse modelo, estabelecido pelos decretos regulamentares da época, permitia que determinadas profissões fossem automaticamente consideradas especiais, independentemente da comprovação específica de exposição a agentes nocivos.4

O decreto 53.831/1964 e suas posteriores alterações listavam expressamente as atividades de motorista de ônibus e motorista de caminhão como especiais, conferindo aos trabalhadores dessas categorias o direito à aposentadoria com tempo reduzido. Esse enquadramento baseava-se no reconhecimento de que tais atividades, por suas características intrínsecas, submetiam os trabalhadores a condições laborais diferenciadas e potencialmente prejudiciais à saúde e à integridade física.5

A fundamentação para esse tratamento especial residia na compreensão de que os motoristas profissionais enfrentavam jornadas extenuantes, exposição a vibrações mecânicas, ruídos excessivos, gases de combustão, estresse decorrente do trânsito urbano e rodoviário, além dos riscos inerentes à atividade de transporte. No caso específico dos cobradores de ônibus, somavam-se os riscos de assaltos e a exposição constante ao público, em ambientes frequentemente superlotados e com ventilação inadequada.6

2.2. As alterações da lei 9.032/1995

A lei 9.032/1995 promoveu uma reforma significativa no sistema de reconhecimento de atividades especiais, alterando substancialmente o art. 57 da lei 8.213/1991. A principal mudança consistiu na extinção do enquadramento automático por categoria profissional, substituindo-o pela exigência de comprovação objetiva de exposição a agentes nocivos.7

O novo § 4º do art. 57 estabeleceu que “o segurado deverá comprovar, além do tempo de trabalho, exposição aos agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou associação de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física, pelo período equivalente ao exigido para a concessão do benefício”8. Essa alteração representou uma mudança paradigmática, transferindo o foco da categoria profissional para a efetiva exposição a agentes específicos.

A justificativa para essa modificação baseava-se na necessidade de maior rigor científico na caracterização das atividades especiais, evitando-se o reconhecimento automático de profissões que, em determinados contextos, poderiam não apresentar efetiva nocividade. Contudo, a implementação dessa nova sistemática gerou controvérsias significativas, especialmente para categorias que tradicionalmente eram reconhecidas como especiais9.

2.3. O impacto da mudança legislativa

A extinção do enquadramento por categoria profissional afetou diretamente milhares de trabalhadores que exerciam atividades tradicionalmente reconhecidas como especiais. No caso específico dos motoristas e cobradores, a mudança criou uma situação de insegurança jurídica, uma vez que a mera atividade profissional deixou de ser suficiente para o reconhecimento da especialidade.10

Essa alteração legislativa coincidiu com um período de modernização do transporte público e de cargas no Brasil, com a introdução de veículos mais modernos, equipados com sistemas de ar-condicionado, direção hidráulica e outras tecnologias que, em tese, poderiam reduzir a exposição a determinados agentes nocivos. Contudo, a realidade laboral de grande parte desses profissionais permaneceu caracterizada por condições adversas, especialmente considerando-se a diversidade de situações encontradas no território nacional.11

A jurisprudência dos tribunais regionais federais passou a divergir quanto à interpretação da nova legislação. Enquanto alguns entendiam que a ausência de enquadramento por categoria profissional impedia qualquer reconhecimento de especialidade para essas atividades, outros começaram a desenvolver critérios técnicos para avaliar a efetiva exposição a agentes nocivos, considerando as condições concretas de trabalho.12

3. A controvérsia jurídica: Penosidade como agente nocivo

3.1. A natureza jurídica da penosidade

A penosidade, enquanto conceito jurídico, tem suas raízes no direito constitucional do trabalho, especificamente no art. 7º, inciso XXIII da Constituição Federal, que assegura aos trabalhadores urbanos e rurais o “adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei”13. A distinção entre essas três modalidades de atividades especiais revela a intenção do constituinte de proteger os trabalhadores expostos a diferentes tipos de condições laborais adversas.

Enquanto a insalubridade relaciona-se à exposição a agentes que podem causar danos à saúde, e a periculosidade refere-se a atividades que colocam em risco a vida do trabalhador, a penosidade caracteriza-se por atividades que, embora não necessariamente insalubres ou perigosas, são particularmente desgastantes, sofríveis ou extenuantes14. Essa conceituação etimológica da penosidade como aquilo “que dá pena”, que causa sofrimento ou desgaste, encontra respaldo na doutrina trabalhista e previdenciária.

A doutrina especializada tem buscado delimitar os contornos da penosidade, distinguindo-a das demais modalidades de atividades especiais. Segundo Martinez15, a penosidade caracteriza-se por “atividades que, por suas condições especiais, causam desgaste físico ou mental acentuado, fadiga excessiva ou sofrimento ao trabalhador, mesmo que não configurem risco direto à saúde ou à vida”. Essa definição amplia o espectro de proteção para além dos agentes nocivos tradicionalmente reconhecidos.

Leia o artigo na íntegra.

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1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Tema 1307. Definir se há possibilidade do reconhecimento da especialidade da atividade de motorista/cobrador de ônibus ou motorista de caminhão, por penosidade, após o advento da Lei n. 9.032/1995. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/. Acesso em: 21 jun. 2025.

2 IEPREV. Entenda o Tema 1307 afetado pelo STJ: aposentadoria do motorista de ônibus e caminhão. Disponível em: https://www.ieprev.com.br/blog/entenda-o-tema-1307-afetado-pelo-stj-aposentadoria-do-motorista-de-onibus-e-caminhao. Acesso em: 21 jun. 2025.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADO 74. Congresso deve editar lei sobre adicional por atividades penosas, decide STF. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/congresso-deve-editar-lei-sobre-adicional-por-atividades-penosas-decide-stf/. Acesso em: 21 jun. 2025.

4 BRASIL. Lei nº 9.032, de 28 de abril de 1995. Dispõe sobre o valor do salário mínimo, altera dispositivos das Leis nº 8.212 e nº 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9032.htm. Acesso em: 21 jun. 2025.

5 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Aposentadoria Especial. 4. ed. São Paulo: LTr, 2018.

6 IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 26. ed. Niterói: Impetus, 2021.

7 BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 21 jun. 2025.

8 Ibid.

9 SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

10 KERTZMAN, Ivan. Novo Regulamento da Previdência Social. 18. ed. Salvador: JusPodivm, 2019.

11 VIANNA, João Ernesto Aragonés. Curso de Direito Previdenciário. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

12 LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Manual de Direito Previdenciário. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

13 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 21 jun. 2025.

14 OLIVEIRA, Aristeu de. Manual de Prática Trabalhista. 56. ed. São Paulo: Atlas, 2022.

15 MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

Alan da Costa Macedo

Mestre em Direito Público, Especialista em D. Constitucional, Previdenciario, Processual e Penal. Servidor da Justiça Federal, Of. de Gabinete na 1ª Turma do TRF1. Coordenador Científico do IPEDIS.

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