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Por que juízes não devem ser eleitos?

A busca por uma justiça mais "democrática" pode, paradoxalmente, destruir a imparcialidade, ameaçar direitos, submeter a toga à influência do poder econômico e do crime organizado.

24/6/2025
Leonardo Soriano de Souza

A proposta de eleger juízes, embora pareça à primeira vista um aprofundamento da democracia, representa um grave risco à independência e à imparcialidade do Poder Judiciário. A história da seleção de magistrados no mundo moderno, especialmente nas nações de tradição jurídica romano-germânica como o Brasil, demonstra uma clara evolução no sentido de afastar a escolha dos juízes das paixões políticas e do clamor popular momentâneo. A adoção de concursos públicos rigorosos não foi um acaso, mas uma conquista civilizatória para garantir que a Justiça seja guiada pela técnica jurídica e pela Constituição, não pela popularidade ou pelos interesses de financiadores de campanha.

Um exemplo alarmante desses riscos materializou-se recentemente no México. Em um caso único no mundo, uma reforma judicial impulsionada pelo governo da presidente Claudia Sheinbaum, que enfrenta acusações de autoritarismo, determinou que mais de 2.600 cargos do Judiciário fossem preenchidos pelo voto direto da população em junho de 2025, incluindo as vagas da Suprema Corte.1

Críticos e analistas imediatamente apontaram para os imensos riscos da medida mexicana, em especial a possibilidade de infiltração do crime organizado, que poderia financiar candidatos para garantir decisões favoráveis a seus interesses. O resultado do pleito confirmou outro temor: uma altíssima taxa de abstenção dominou as eleições, revelando o desinteresse e a falta de preparo da população para escolher técnicos para um poder cujo trabalho desconhece em profundidade, o que compromete a legitimidade e a qualidade técnica do sistema de justiça recém-eleito.2

Historicamente, a figura do juiz esteve atrelada ao poder político. Nos primórdios da formação dos Estados nacionais, os juízes eram, em sua maioria, delegados do monarca ou de senhores locais. Com o advento do Iluminismo e a Revolução Francesa, emergiu a concepção de um Poder Judiciário autônomo. A ideia de separação de poderes, consagrada por Montesquieu, exigia que os juízes não fossem meros apêndices do Executivo ou do Legislativo, pois, como advertiu o filósofo, "não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo".3

No século XIX, nos Estados Unidos, a desconfiança em relação a um Judiciário visto como elitista levou a um movimento em favor da eleição de juízes. Acreditava-se que submeter os magistrados ao escrutínio popular os tornaria mais responsáveis. Contudo, a experiência prática não tardou a revelar as profundas falhas desse modelo. As eleições judiciais rapidamente se tornaram presas de máquinas partidárias e do poder econômico, minando a imparcialidade dos eleitos.

Em contrapartida, as nações da Europa continental, berço da tradição do direito civil, seguiram um caminho distinto, desenvolvendo um modelo de magistratura de carreira, acessível por meio de um rigoroso processo de seleção pública. No Brasil, foi a Constituição de 1988 que sacramentou, em seu art. 93, inciso I, a exigência de concurso público de provas e títulos para o ingresso na carreira, buscando assegurar que o candidato demonstre não apenas saber jurídico, mas também conduta ilibada.

A ideia de um juiz eleito carrega uma contradição fundamental: a natureza do trabalho judicial é, em essência, contramajoritária. Essa concepção foi brilhantemente defendida por Alexander Hamilton em "O Federalista nº 78", onde ele argumenta que a independência dos tribunais é uma salvaguarda essencial contra "os maus humores ocasionais" da sociedade. Para ele, a magistratura serve para proteger a Constituição e os direitos dos indivíduos contra "as maquinações perigosas de facções no legislativo" e a tirania da maioria4. Um juiz que precisa se preocupar com a próxima eleição estará sob constante pressão para proferir decisões populares, em vez de decisões justas.

A eleição pode transformar o cargo de juiz em uma plataforma política e o submete à necessidade de financiamento de campanha, abrindo portas para a influência indevida de doadores e grupos de interesse. O Judiciário é o guardião dos direitos fundamentais, especialmente os de grupos minoritários. Um juiz eleito pode hesitar em garantir o direito de uma minoria, temendo a reação de seu eleitorado. A pressão por uma imagem de "duro com o crime" afeta diretamente as decisões. Um estudo de 2022 sobre juízes de primeira instância no estado de Washington, por exemplo, demonstrou que as sentenças para crimes violentos aumentam em média 10% no ano anterior a uma eleição contestada para o cargo.5

Ao contrário do que a defesa das eleições judiciais possa sugerir, a vasta maioria dos países democráticos não elege seus juízes. O modelo de magistratura de carreira, acessível por concurso, é o padrão nas democracias da Europa, como Alemanha, França e Portugal, e em grande parte da América Latina.

Nesses sistemas, o indivíduo ingressa na carreira por mérito e recebe formação específica. A progressão se dá por critérios técnicos, avaliados por órgãos de controle do próprio Judiciário. Este modelo garante que o juiz deva sua lealdade unicamente à Constituição e às leis. É a materialização do conselho de Rui Barbosa em sua célebre "Oração aos Moços": "Não vos deixeis desencorajar pela superioridade numérica dos adversários, nem pela sua força aparente. [...] O bem é teimoso; e a verdade não se abala"6. O juiz de carreira, protegido pela vitaliciedade e inamovibilidade, tem as condições para ser teimoso na defesa do bem e da verdade legal, mesmo contra tudo e contra todos.

A defesa da eleição de juízes, embora possa ser embalada em um discurso de ampliação democrática, representa, na prática, um perigoso retrocesso. Ela ignora as lições da história e a complexa função do Poder Judiciário em uma democracia constitucional, como demonstra o recente e malfadado experimento mexicano. A justiça não pode ser um concurso de popularidade; ela exige conhecimento técnico, serenidade, imparcialidade e, acima de tudo, a coragem de ser impopular quando a defesa da lei e dos direitos fundamentais assim o exigir.

O sistema brasileiro de seleção de juízes por meio de concurso público não é perfeito e pode, sem dúvida, ser aprimorado para ser mais diverso e conectado à realidade social. Contudo, sua base fundamental – a seleção por mérito técnico - é a que melhor protege a sociedade contra os perigos da parcialidade e da politização da Justiça. Renunciar a esse modelo em favor de eleições seria trocar a busca pela justiça pela incerteza da política, um passo que colocaria em risco os próprios alicerces do Estado de Direito.

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1 G1. México escolherá juízes da Suprema Corte por voto popular em eleições neste domingo. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/06/01/mexico-escolhera-juizes-da-suprema-corte-por-voto-popular-em-eleicoes-neste-domingo.ghtml. Acesso em: 17 jun. 2025.

2 G1. Alta abstenção domina eleições do Judiciário no México. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/06/02/alta-abstencao-domina-eleicoes-do-judiciario-no-mexico.ghtml. Acesso em: 17 jun. 2025.

3 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis. Tradução de Cristina Murachco. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 168.

4 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Tradução de Viriato Soromenho-Marques, João C. S. Duarte e José Pedro T. Ribeiro. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 2021, p. 483.

5 BRENMAN, Alicia; MILITELLO, Isabelle; RICHARDSON, Matthew. How Judicial Elections Impact Criminal Cases. Brennan Center for Justice, 18 de maio de 2022. Disponível em: https://www.brennancenter.org/our-work/research-reports/how-judicial-elections-impact-criminal-cases. Acesso em: 17 jun. 2025.

6 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. 5. ed. Campinas: Russell, 2009, p. 32.

Leonardo Soriano de Souza

Associado ao IBCCRIM, integrante do Grupo de Estudos Avançados. Membro do Grupo de Pesquisa da PUC Minas "Mídia e Garantismo Penal".

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