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Partilha de bens financiados e a solução jurisprudencial atual

O artigo analisa a partilha de bens financiados na união, destacando a solução jurisprudencial que privilegia os direitos aquisitivos e o equilíbrio familiar na fixação de indenizações.

24/6/2025
Beatrice Merten

Introdução

Ao celebrarem casamento ou constituírem união estável, os nubentes ou conviventes se deparam com a necessidade de definir o regime de bens que regerá a esfera patrimonial da entidade familiar. Tal regime funciona como pacto normativo, na forma contratual, que disciplina a titularidade, a administração e a partilha do patrimônio durante a união e por ocasião de sua dissolução.

Na ausência de escolha expressa por meio de pacto antenupcial ou contrato de convivência, aplica-se, por força de lei, o regime da comunhão parcial de bens, previsto no art. 1.658 do CC/02. De acordo com esse dispositivo, comunicam-se os bens adquiridos onerosamente durante a constância da união, enquanto permanecem excluídos os bens particulares, tais como os anteriores ao casamento, os recebidos por doação ou herança e os sub-rogados (art. 1.659).

A proposta de reforma do CC, apresentada pela Comissão de Juristas em 2023/2024, preserva essa sistemática e a estende expressamente à união estável, consolidando orientação já consagrada pela jurisprudência. O art. 1.564-B do projeto dispõe, em substituição ao atual 1.725:

"Aplica-se à união estável, salvo se houver pacto convivencial ou contrato de convivência dispondo de modo diverso, o regime da comunhão parcial de bens".

Nesse regime, não apenas os bens adquiridos onerosamente durante a constância da união se comunicam, mas também os ônus e dívidas correlatos que ainda estejam pendentes de amortização no momento da dissolução da sociedade conjugal. Assim, um bem financiado durante o casamento, mesmo que ainda não quitado integralmente, integra o patrimônio comum, e o valor remanescente da dívida deve permanecer sob a responsabilidade de ambos, pela letra fria da lei.

Essa regra decorre do art. 1.664 do CC, que determina expressamente que, ao se dissolver a comunhão, “dividem-se também as dívidas e obrigações contraídas na administração da sociedade e em benefício dela”. Dessa forma, a partilha abrange tanto os ativos como os passivos que compõem o patrimônio comum, assegurando equilíbrio na distribuição dos efeitos patrimoniais da vida conjugal.

Contudo, é justamente no regime legal que reside uma das maiores fontes de litígio no Poder Judiciário quando do fim do relacionamento: a partilha de bens financiados, cuja quitação ainda está pendente. A lei, em sua literalidade, não oferece uma resposta direta e pragmática para essa situação, o que gera profunda sensação de insegurança e prejuízo às partes envolvidas. Diante dessa lacuna normativa, coube à jurisprudência desenvolver entendimento capaz de promover, tanto quanto possível, a pacificação dos conflitos.

1. O impasse da lei e a inviabilidade de sua aplicação literal

Sem uma resposta pronta na lei sobre a questão, foi necessário elaborar uma construção jurisprudencial acerca do tema, que perpassa pela interpretação do art. 648 do CPC: Na partilha, serão observadas as seguintes regras: I - a máxima igualdade possível quanto ao valor, à natureza e à qualidade dos bens; II - a prevenção de litígios futuros; III - a máxima comodidade dos coerdeiros, do cônjuge ou do companheiro, se for o caso.

E assim perfilhou-se a ideia de que nesses casos o que compõe o monte partilhável são as parcelas do financiamento que foram pagas durante a comunhão de vida

O exercício hermenêutico para alcançar a solução nesse caso teve como objetivo evitar a multiplicação de litígios futuros, em respeito aos princípios norteadores da partilha. Imagine-se, por exemplo, a possibilidade de que, em novos relacionamentos, o cônjuge atual de uma das partes pleiteie direitos sobre um bem cuja aquisição ocorreu no matrimônio anterior, mas que ainda está sendo pago. Soma-se a isso a necessidade de discutir judicialmente a fixação de aluguel ou indenização pelo uso exclusivo do imóvel por aquele que permaneceu em sua posse, em prejuízo do coproprietário desalijado. Além disso, o inadimplemento de uma das partes quanto às parcelas vincendas do financiamento poderia ensejar mais uma ação de cobrança contra ambas, agravando o litígio. Por fim, a extinção judicial do condomínio sobre o bem, em hasta pública, dependeria da quitação integral do financiamento para a baixa do gravame, o que, na prática, revela-se financeiramente inviável para a maioria das pessoas que recorrem ao crédito bancário para a aquisição da casa própria.

Fica claro, portanto, que a aplicação da literalidade da lei criaria mais problemas do que soluções, eternizando o dissenso entre as partes. Ninguém sai satisfeito, e a sensação de que o patrimônio construído se transformou em uma nova dívida com o ex-parceiro é inevitável.

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Beatrice Merten

Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro. Pós Graduada e Mestranda em Direito.

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