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ADPF 982: Quem julga as contas do prefeito, afinal?

STF reafirma a competência dos TCEs para julgar contas de gestão de prefeitos ordenadores de despesas. Efeitos eleitorais só se a Câmara Municipal rejeitar as contas de governo.

24/6/2025
Hilário de Castro Melo Júnior

A recente decisão do STF na ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 982 reacende um debate de grande relevância para o cotidiano da Administração Pública municipal: afinal, quem julga as contas do prefeito? A Câmara Municipal ou o Tribunal de Contas? A resposta, como demonstrou o STF, depende do tipo de contas em análise — e essa distinção é essencial para garantir segurança jurídica e responsabilidade na gestão pública.

No julgamento da ADPF 982, a Corte analisou decisões judiciais que haviam anulado sanções impostas por Tribunais de Contas a prefeitos que atuaram como ordenadores de despesa. A ATRICON – Associação dos Membros dos Tribunais de Contas sustentou violação aos princípios republicano e da separação de Poderes. O STF acolheu a tese e reafirmou jurisprudência no sentido de que, para fins de responsabilização administrativa e financeira, o Tribunal de Contas possui competência para julgar diretamente as contas de gestão dos chefes do Poder Executivo e dos ordenadores de despesas em geral, sem depender de anuência futura do Poder Legislativo.

Essa decisão se alinha à distinção já construída em precedentes como o RE 729.744/MG (Tema 157), de relatoria do ministro Gilmar Mendes, no qual o STF definiu que o julgamento das contas anuais de governo (contas “globais”) compete exclusivamente à Câmara Municipal, com base em parecer prévio do Tribunal de Contas. Ali, discutia-se a inelegibilidade prevista na LC 64/90 em decorrência da rejeição de contas de governo, sendo reafirmada a natureza opinativa do parecer técnico emitido pelo TCE.

Em paralelo, no RE 848.826/CE (Tema 835), de relatoria do ministro Roberto Barroso (redator para o acórdão ministro Ricardo Lewandowski), a Corte reiterou que, tanto para contas de governo quanto para contas de gestão (ou “contas dos ordenadores de despesas”), a competência para gerar inelegibilidade segundo os termos da “Lei da Ficha Limpa” (cf. art. 1º, I, 'g', da LC 64/1990) é da Câmara Municipal. O Tribunal de Contas atua como órgão auxiliar, mas a decisão política definitiva cabe ao Poder Legislativo Mirim.

Contudo, no ARE 1.436.197/RO (Tema 1.287), de relatoria do ministro Luiz Fux, o STF fez a distinção crucial: nas hipóteses em que o prefeito atua como ordenador de despesa (“Prefeito ordenador”) — ou seja, pratica atos administrativos e executivos diretos na gestão financeira —, o julgamento técnico das contas de gestão e eventual imposição de sanções (como multa e imputação de débito) compete exclusivamente ao Tribunal de Contas, sem necessidade de chancela da Câmara Municipal.

Dessa forma, a Corte reconheceu que a atuação do TCE se restringe à esfera administrativa e financeira, com eficácia plena para responsabilização por má gestão, mas sem interferir diretamente no processo político-eleitoral, que permanece sob competência da Câmara Municipal no que diz respeito às contas de governo, objeto de julgamento político segundo determina a CF/88 (cf. art. 71, I c/c art. 31, §2º, CF/88).

Esse entendimento evita o esvaziamento da competência dos Tribunais de Contas, principalmente em municípios onde prefeitos acumulam funções operacionais. Além disso, reforça a separação entre o controle técnico e o controle político, evitando que irregularidades materiais fiquem impunes sob o pretexto de ausência de manifestação do Legislativo.

Com a ADPF 982, o STF delimita de vez as fronteiras entre as esferas de controle: (i) as «contas de gestão», quando o prefeito é ordenador de despesa, são julgadas diretamente pelo TCE, com possibilidade de sanções administrativas; (ii) já as «contas de governo» seguem para a Câmara Municipal, sendo a única instância autorizada a gerar inelegibilidade.

Hilário de Castro Melo Júnior

Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca, MBA em Governança Pública e Gestão Administrativa, Professor Adjunto UFAC, Desembargador Eleitoral TRE/AC (jurista), Consultor jurídico.

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